sábado, 14 de setembro de 2013

Folclore dos Estados Unidos (O Coiote e a Tartaruga)

Uma noite, o Bebê Tartaruga estava com muita fome então ele decidiu deixar a segurança do rio em busca de alimento.

Logo ele encontrou um cacto com frutas muito doces.

O bebê tartaruga andou sozinho, comendo e rindo.

O sol forte se levantou e começou a bater no deserto.

Quando o Bebê Tartaruga procurava por mais comida,  percebeu que estava perdido.

A tartaruguinha começou a chorar.

O coiote ouviu o choro e foi investigar.  O Bebê Coiote estava escondido debaixo de um arbusto e  rapidamente o coiote fez planos para o jantar.

“Era uma canção bonita que você estava cantando. Por favor, continue enquanto eu construir uma grande fogueira para cozinhar você”

“Eu não estava cantando. Enfim, meu casco é muito duro. Mesmo o fogo mais quente não pode penetrá-la.”

“Bem, então, eu vou levá-lo ao topo da mais alta montanha e deixá-lo cair sobre as rochas abaixo.”

“Pff! Eu já lhe disse. Meu casco é tão espesso que eu vou simplesmente cair fora das rochas e fugir.”

Coiote pensou muito sobre como botar o Bebê Tartaruga em sua barriga.

“Eu vou te levar para o rio, afogá-lo, e então eu vou te comer.”

“Oh não, por favor, me afogar no rio. Tudo menos isso!”

“Ha! Eu sabia disso.”

“Por favor, continue cantando, é muito agradável”.

“Eu não estou cantando.”

Logo ele que chegou ao rio, o Bebê Coiote jogou a tartaruga na água.

“Coiote bobo. Obrigado por me trazer para casa.”

O coiote tinha sido enganado pelo Bebê Tartaruga. Ele ficou tão irritado que ele pulou no rio, mas a corrente era forte e que levou o coiote rio abaixo.

O Bebê Tartaruga estava seguro agora e nunca se afastou demais das margens do rio.

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Notas:

A Estória do Coiote e da Tartaruga foi um vídeo feito por Tim F. Salinas da tribo Navajo e colocado no YouTube.com em 10 de dezembro de 2006.  Não se sabe exatamente o local onde foi gravado, mas uma equipe do Pasadena City College fez a gravação em 2003.

Como outras histórias nativo americanas, a história do Coiote e da Tartaruga tem uma lição para o público. As crianças também podem aprender que não é sábio se desviar para longe do local onde você está seguro, e esta lição é voltada principalmente para crianças, comparando elas com a tartaruguinha, que também é inexperiente e acaba por afastar-se do rio. Todas as tradições orais servem a um propósito na sua cultura, e além de entretenimento, essa estórias ensinam muitas lições.


Fonte:
http://casadecha.wordpress.com/category/estados-unidos/

I Jornada Literária do Vale Histórico (18 a 20 de Setembro, em Lorena e Guaratinguetá/SP)

clique sobre a imagem para ampliar
Jornada Literária discute literatura e oralidade no Vale do Paraíba
Evento contará com a presença de escritores como Pedro Bandeira e Thiago Mello

Entre os dias 18 e 20/09 acontece em Lorena e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, a I Jornada Literária do Vale Histórico. Realizada pelo Instituto Uka, do Pólo de Leitura Vale Lendo e da Academia de Letras de Lorena, o evento reúne importantes nomes da literatura infantil e juvenil. O tema desta primeira edição da Jornada Literária será “Tradições Orais e Literatura”. Segundo o escritor Daniel Munduruku, o tema é uma referência necessária à discussão sobre literatura e oralidade. “Quis iniciar com este tema por entender que antes da escrita existiu e existe a oralidade. Ela é a mãe da escritura. Pensando assim quis unir autores que vêm de uma tradição oral e que agora estão usando a escrita como instrumento de divulgação da oralidade. Também quis convidar autores negros que trabalham a questão africana em seus escritos. Estes são os que irão ter um contato direto com as crianças leitoras”, contou Munduruku à Liga Brasileira de Editoras (Libre).

PROGRAMAÇÃO

Dia 18/9
 
Manhã

08h00 - EE Regina Bartelega recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

09h00 - EM Fernando Alencar Pinto recebe (Guaratinguetá):
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

08h00 – EE Geraldo Alckimin recebe:
Cristino Wapichana e Matè

Tarde

14h00 - Instituto Santa Teresa recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

16h00 - EM Mário Covas recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 – EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

Noite

Palestra Magna com Pedro Bandeira
Tema: “Como conquistar o aluno que não gosta de ler?”
Local: Teatro São Joaquim

Dia 19/9

Manhã
 
07h30 - CAIC recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

10h00 - EE Francisco Marques recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

07h30 - EM Mário Covas recebe
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

07h30 – EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Cristino Wapichana

Tarde

14h00 - CAIC recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 - EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Cristino Wapichana e Matè

16h00 - EE Francisco Marques recebe:
Cristino Wapichana e Matè

15h00 - Obra Auxiliar de Santa Cruz recebe
Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Noite

Mesa redonda: A presença do feminino nas mitologias
Heloisa Pires, Maria Inez do Espírito Santo e Matè
Mediação: Rogério Andrade Barbosa
Local: Auditório São José - FATEA

Dia 20/9

Manhã

Instituto Santa Teresa Recebe:
08h00 - Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Patrocínio de São José recebe:
10h00 – Daniel Munduruku e Heloisa Pires

09h00- EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Maria Inez do E. Santo e Tiago Hakiy

Tarde

14h00 – EM Geraldo Alckmin recebe:
Matè e Cristino Wapichana

Noite

19h00 - Apresentação teatral: “Meu avô Apolinário” baseada na obra de Daniel Munduruku

20h00 – Palestra Magna com Thiago de Mello

Seminário Valelendo – 20/09
Local: Auditório Luís Pasin – FATEA

09h00 - Abertura oficial do evento

09h15 – Abertura cultural com Cristino Wapichana e criança leitora

09h30 – Roda de Conversa sobre políticas públicas regionais para o livro, a leitura e a literatura (representantes de instituições do Vale Histórico)

11h30 – Palavras encantadas – com Thiago de Mello

12h45 – Almoço

14h00 – sorteio da pontualidade (sorteio de livros para os presentes)

14h10 – Oficinas diversas

1ª Oficina:  “Diário de Leitura: a ideia é simples”
Prof. Cida

2ª Oficina: Literatura Indígena e Afro no cardápio de Leitura
Heloisa Pires e Maria Inez do Espírito Santo

3ª Oficina: “Ilustração e Poesia”
Denise Poeta

4ª Oficina: “Mediação de Leitura - Uma ponte entre o Livro e o Leitor.”
Marcilene Dutra Bispo e Mediadores Mirins do Projeto Lervida

Serviço
I Jornada Literária do Vale Histórico
18 a 20 de Setembro - 2013
Lorena e Guaratinguetá (SP)
Realização: Instituto UKA - Pólo de Leitura ValeLendo - Academia de Letras de Lorena.
Parceria: Instituto C&A - Prefeitura Municipal de Lorena - SP - Instituto Santa Teresa/FATEA - Unisal

Fonte:
Daniel Munduruku

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VI

foi mantida a grafia original.
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FLOR DA MODA

Alice, o turbilhão das salas elegantes,
Começa a entristecer; ninguém sabe porquê!
Aquela flor doente amava muito dantes
As festas, o ruído, as coisas deslumbrantes,
Agora é desolada e penso que descrê.

Que tédio se abrigou na vaga transparência
Dum todo tão subtil, aéreo, divinal,
— moderna criação da santa decadência,
Que alia gentilmente às pompas da regência
Os indecisos tons dum ar sentimental?!

Arcanjo por quem és! Desvenda esse mistério
Das vagas opressões da tua insónia má,
E diz-me o teu sonhar visão do baixo império,
Vestal que amas o gás e tens o fogo etéreo
Na conta duma cousa um tanto usada já!

No idílio pastoril das noites venturosas
Não sonhas tu decerto, e raro o hão de sonhar
Num mundo todo nosso, as belas desditosas
Que em trinta anos de fogo as suas velhas rosas
Nos grandes vendavais sentiram desbotar!

E quando a augusta voz do mar ou das florestas
Abala o coração dos justos e dos bons,
Bem sei que tu não vais, fugindo às grandes festas,
No amor das castelãs cismar entre giestas
Com medo que te acorde a bulha dos wagons!

Eu sei talvez teu mal! A febre que hoje sentes
Abrasa a geração de lírios ideais
Que passam, como tu, galantes e doentes,
Dum amor desordenado às causas dissolventes,
Às vozes da guitarra e aos cantos sensuais!...

E tem de os consumir a grande nostalgia
Dum mundo mais à moda e menos trivial,
Onde haja um grande caso, ao menos, cada dia
E se possa esquecer a vil monotonia
De tudo que nos cerca: — Alice eis o teu mal!

No entanto eu sei que és boa: apenas das insónias
A febre, mãe cruel de estranhas sensações,
Na fria placidez do gás e das begónias
Constrói na tua mente as grandes babilónias
Dum mundo extraordinário e monstro de visões!

Tocou-te um mal galante: és ténue e caprichosa:
És boa e fazes gala em que te julguem má.
E sentes sobretudo uns tédios cor-de-rosa
E os êxtases cruéis duma mulher nervosa:
Se existe a mulher-flor, tu és a flor de chá!

E chame-te o bom Deus ao foco aonde brilha
Aquela eterna luz, amor dos imortais,
Que tu amortalhada em rendas e escumilha
Achar deves, talvez, da moda, ó terna filha,
O céu modesto um pouco e os anjos triviais!

Ó máquinas febris! Eu sinto a cada passo,
Nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
Que a nova geração nos lábios traz suspenso
Como a estância viril duma epopeia de aço!
Enquanto o velho mundo arfando de cansaço

Prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
Levanta-se a espiral desse moderno incenso
Que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!

Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
Que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
Mordeis o pedestal da velha Majestade!

E as grandes combustões que sempre vos consomem
Começam, num cadinho, a refundir o homem
Fazendo ressurgir mais larga a Humanidade!

Fonte:
http://luso-livros.net/

Rafael Zenato (Desconstrução)

Rafael é aluno da Oficina On Line de Escrita Criativa, de Marcelo Spalding (http://www.marcelospalding.com/wwcursosCRIATIVA.php)
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Já era tarde quando encontrou Chico. Quieto, retraído, numa mesa de bar. Papel e caneta na mão.

- Vem cá, você não é o cantor, aquele?

Chico bebia uma dose de uísque num copo improvisado, daqueles de boteco. Levantou os olhos de curiosidade.

- Você é o cantor, sim. Olha bem pra mim. Aquele do olho azul, como é mesmo o nome?

Chico esboçava um sorriso, se divertindo com a dúvida do desconhecido. Seu uísque não tinha gelo. Nem uma pedrinha sequer.

- Caetano! É Caetano! Não, espera. Caetano é aquele outro, o baiano.

Os olhos azuis eram encarados com atenção pelo homem.

- Chico... Chico Buarque! Rá! Eu sabia! Muito prazer - e estendeu a mão.

Chico bebeu o último gole do seu uísque. Cumprimentou o homem.

- Muito prazer. E você, quem é?

- Ah, eu não sou ninguém, não. Sou um desconhecido. Tenho a minha família, meus filhos, essas coisas. Meu emprego, graças a Deus. Trabalho no ramo de construção, sabe? Essa casa aí do outro lado da rua, tá vendo? Fui eu que ergui. Quer dizer, não tá pronta ainda. Mas a gente tá erguendo, eu e os colegas aí.

- Bacana, bacana mesmo - respondeu Chico.

- Olha, desculpa eu me meter assim... mas o que o senhor tava escrevendo aí? É letra de música? - perguntou o desconhecido.

- É, é uma letra, sim. Uma canção nova que eu tô trabalhando.

- Sobre o que é? - perguntou o homem, curioso.

- É sobre você - respondeu Chico.

O desconhecido ri.

- Ah, você é um brincalhão, Chico. Não é à toa que é artista.

Chico rabisca mais um verso sobre o papel. O desconhecido estende a mão mais uma vez.

- Não quero atrapalhar, não, viu? Vou deixar você fazer a sua música. Foi um prazer.

Enquanto o pedreiro seguia em direção à rua, Chico murmurava, como se falasse com a folha de papel.

- Toma cuidado ao atravessar a rua, hein. Vê se não vai morrer aí na contramão.

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Di%C3%A1logos

Lya Luft (A Mentirosa Liberdade)

"Liberdade não vem de correr atrás de 'deveres' impostos de fora, mas de construir a nossa existência"
Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do "ter de". Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda agüenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de "deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.

Fonte:
http://arquivoetc.blogspot.com/2009/03/lya-luft-mentirosa-liberdade.html

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos :Ao Charuto)

Ode

Vem, ó meu bom charuto, amigo velho,
Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo
Entre ilusões me embalas.

Oh! que nem todos sabem quanto vale
Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente
Às regiões da lua.

E por lá embalado em rósea nuvem
Vagueia pelo espaço,
Onde amorosa fada entre sorrisos
O toma em seu regaço;

E com beijos de requintado afeto
A fronte lhe desruga,
Ou com as tranças d’ouro mansamente
As lágrimas lhe enxuga.

Ó bom charuto, que ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm
Cuidados enfadonhos!

Quantas penas não vão por esses ares
Com uma só fumaça!...
Quanto negro pesar, quantos ciúmes,
E quanta dor não passa!

Tu és, charuto, o pai dos bons conselhos,
O símbolo da paz;
Para em santa pachorra adormecer-nos
Nada há mais eficaz.

Quando Anarda com seus caprichos loucos
Me causa dissabores,
Em duas baforadas mando embora
O anjo e seus rigores.

***
Quanto lastimo os nossos bons maiores,
Os Gregos e os Romanos,
Por não te conhecerem, nem gozarem
Teus dotes soberanos!

Quantos males talvez não pouparias
À triste humanidade,
Ó bom charuto, se te possuísse
A velha antigüidade!

Um charuto na boca de Tarquínio
Talvez lhe dissipara
Esse ardor, que matou Lucrécia linda,
Dos mimos seus avara.

Se o peralta do Páris já soubesse
Puxar duas fumaças,
Talvez com elas entregara aos ventos
Helena e suas graças,

E a régia esposa em paz com seu marido
Dormindo ficaria;
E a Tróia antiga com seus altos muros
Inda hoje existiria.

***

Quem dera ao velho Mário um bom cachimbo
Que lhe abrandasse as sanhas,
Para Roma salvar, das que sofrera,
Catástrofes tamanhas!

Mesmo Catão, herói trombudo e fero,
Talvez se não matasse,
Se a raiva que aos tiranos consagrava,
Fumando evaporasse.

***

Fumemos pois! — Ambrósio, traze fogo...
Puff!... oh! que fumaça!
Como me envolve todo entre perfumes,
Qual véu de nívea cassa!

Vai-te, alma minha, embarca-te nas ondas
Desse cheiroso fumo,
Vai-te a peregrinar por essas nuvens,
Sem bússola, nem rumo.

Vai despir no país dos devaneios
Esse ar pesado e triste;
Depois, virás mais lépida e contente,
Contar-me o que lá viste.
 
Ouro Preto, 1857

Edgar Allan Poe (O Poço e o Pêndulo)

Ficara esgotado, mortalmente prostrado com aquela prolongada agonia; e quando por fim me desamarraram e me deixaram sentar, tive a sensação de que todos os sentidos me abandonavam. A sentença, a medonha sentença da morte, foram as últimas palavras que me chegaram com nitidez aos ouvidos. Depois disso, o som das vozes dos inquisidores pareceu abismar-se no sussurro indefinido de um sonho. Trouxe-me aquele som ao espírito a ideia de rotação - talvez porque o associava na imaginação com o ruído da roda de um moinho. Durou isto breves instantes, porque eu já nada ouvia. Contudo, durante algum tempo pude ver; mas com que terrível exagero! Vi os lábios dos juízes de togas negras. Eram brancos - mais brancos do que a folha de papel onde escrevo estas palavras - e delgados até ao grotesco, adelgaçados pela expressão de firmeza, de imutável resolução, de severo desprezo pelo sofrimento humano. Vi que as ordens do que para mim era o destino continuavam a desprender-se daqueles lábios. Vi-os torcerem-se numa frase mortal. Vi-os formar as sílabas do meu nome; e estremeci, porque som algum se lhes seguiu. Vi também durante alguns minutos de delirante horror o ligeiro e quase imperceptível ondular das negras colgaduras que revestiam as paredes da sala. E então caiu-me a vista sobre sete círios que estavam sobre a mesa. A princípio tinham o aspecto da caridade e pareceram-me anjos brancos e esbeltos que me salvariam; mas logo e repentinamente me invadiu o espírito uma repugnância mortal, e senti todas as fibras do meu ser estremecerem como se as tocasse o condutor de uma bateria galvânica, pois que as formas angelicais se transformaram em espectros sem significação, com cabeças de chamas, e compreendi perfeitamente que não me viria deles nenhum socorro.

Então insinuou-se-me na imaginação, como agradável nota de música, a ideia do delicioso descanso que devemos ter no túmulo. Acudiu-me esta ideia suave e furtivamente, e parece-me que decorreu muito tempo antes que pudesse apreciá-la plenamente: mas no próprio instante em que o meu espírito começava a senti-la e a afagá-la, as figuras dos juízes desvaneceram-se da minha vista, como por obra de magia; os altos círios ficaram reduzidos a nada; as suas chamas extinguiram-se completamente; sobreveio o negrume das trevas; todas as sensações pareceram tragadas no louco despenhar das almas no Hades. O Universo era apenas silêncio, imobilidade e trevas.

Tinha desmaiado, mas não direi que tivesse perdido de todo a consciência. O pouco que me restava, não tentarei defini-lo, nem sequer descrevê-lo; ainda não estava porém tudo perdido. No sono mais profundo... não! No delírio... não! No desmaio... não! Na morte... não! Nem no próprio túmulo está tudo perdido. Doutro modo, não haveria imortalidade para o homem. Despertando do mais profundo sono, rompemos os fios da teia de algum sonho. Todavia, passado um segundo - tão frágil era aquela teia -, não nos lembramos de ter sonhado. Ao voltar à vida após um desmaio, há dois períodos: o primeiro é o do sentimento da existência moral ou espiritual; o segundo, o do sentimento da existência física. Julgo provável que se, depois de atingir o segundo período, pudermos relembrar as impressões do primeiro, achá-las-emos abundantes em recordações do abismo de além-mundo. E que abismo será este? Como havemos sequer de distinguir as suas sombras das sombras da morte? Mas se as impressões do que chamei primeiro período desobedecem à invocação da vontade, não aparecem elas sem chamamento, após longo intervalo, enquanto perguntamos maravilhados de onde é que podem surgir? Aquele que nunca desmaiou não descobre decerto palácios exóticos e rostos extravagantes e familiares nos carvões incandescentes; não contempla, pairando no ar, as tristes visões que a maioria não descobre; não medita sobre o perfume de uma flor nova - nem o cérebro se lhe desvaira com o significado de alguma cadência musical que nunca dantes lhe prendera a atenção.

No meio de esforços frequentes e concentrados para recordar, no meio da intensa luta para colher alguns indícios daquele nada aparente em que a minha alma mergulhara, houve momentos em que imaginei conseguir o que desejava; houve breves períodos, períodos brevíssimos em que evoquei recordações que, posteriormente, a razão lúcida me afirmou poderem apenas relacionar-se com aquele estado de inconsciência aparente. Estas sombras da memória falam-me indistintamente de grandes vultos que me erguiam e me mergulhavam silenciosamente para baixo, sempre para baixo, cada vez mais fundo, até que uma horrível vertigem me oprimiu à simples ideia da interminável descida. Falam-me também de um vago horror no meu coração, em virtude da sua desnaturada tranquilidade. Depois, um sentimento de repentina imobilidade em todas as coisas; como se aqueles que me transportavam (cortejo de fantasmas) tivessem ultrapassado, na descida, os limites do ilimitado, e parassem vencidos pelo cansaço. Mais tarde ainda, acode-me ao espírito certa insipidez e umidade; e depois, tudo é loucura - a loucura de uma memória que se intromete em coisas vedadas.

De repente, voltam-me ao espírito um som e um movimento - o movimento tumultuoso do coração e, nos ouvidos, o ruído daquele pulsar. Sucede-se uma pausa em que tudo é vazio. Depois, outra vez o som, o movimento e o tato - uma sensação que me abala e invade o corpo. Depois, a simples consciência da existência, sem pensamento - estado que durou muito. Depois, repentinamente, o pensamento, um terror que produzia calafrios e um esforço violento para compreender a minha verdadeira condição. Depois, um desejo intenso de recair na insensibilidade. Depois, um impetuoso renascimento da alma e uma tentativa feliz de mover-me. De seguida, a recordação completa do processo, dos juízes, das colgaduras negras, da sentença, da prostração e do desmaio. Depois, o completo esquecimento do que se seguira, e que só mais tarde, por um esforço enérgico da inteligência, pude recordar vagamente.

Até ali, não tinha aberto os olhos. Sentia que estava deitado de costas e desamarrado. Estendi a mão, que caiu pesadamente sobre qualquer coisa dura e úmida. Deixei-a assim ficar por alguns minutos, fazendo esforços por imaginar onde me encontrava e o que tinha sido feito de mim. Ansiava mas não ousava servir-me da minha vista. Tinha medo do primeiro olhar que lançasse aos objetos que me cercavam. Não que receasse ver coisas horríveis, mas aterrava-me a ideia de que não teria nada para ver. Finalmente, com irado desespero no peito, abri rapidamente os olhos. Os meus piores pensamentos confirmaram-se então. Cercava-me a escuridão da noite eterna. Fiz um esforço para respirar. A intensidade das trevas parecia oprimir-me e sufocar-me. A atmosfera era intoleravelmente pesada. Continuei imóvel e fiz um esforço por empregar a razão. Trouxe à memória o processo inquisitorial, e a partir dele tentei deduzir a minha verdadeira situação. A sentença fora proferida e afigurou-se-me que tinha decorrido desde então um longo intervalo de tempo. Contudo, nem por um momento supus que estivesse realmente morto. Tal suposição, apesar de toda a ficção literária, é totalmente incompatível com a existência real - mas onde e em que estado me achava eu? Os condenados à morte - bem o sabia - morriam normalmente nos autos-de-fé, e tinha-se realizado uma dessas cerimônias na própria noite do meu julgamento. Será que me tinham mandado de novo para o cárcere, à espera do próximo sacrifício, que só se realizaria meses mais tarde? Logo tive consciência de que tal hipótese não era viável. As vítimas haviam sido imediatamente requeridas. Além disso, o cárcere onde eu tinha estado, como todas as celas de condenados em Toledo, era lajeado e sempre recebia alguma luz.

De súbito, um pensamento medonho fez-me afluir tumultuosamente o sangue ao coração e durante alguns instantes voltei a cair na insensibilidade. Logo que recuperei os sentidos, pus-me de pé, tremendo convulsivamente em todas as fibras do meu corpo. Estendi com ímpeto os braços para cima e à roda de mim, em todas as direções. Não senti nada, mas receava dar um passo, com medo de que mo impedissem as paredes de uma tumba. O suor brotava-me de todos os poros e aglomerava-se-me na testa em bagas frigidíssimas. A agonia da incerteza tornou-se por fim intolerável, e avancei com cautela, de braços estendidos e com os olhos saltando das órbitas, esperançado em vislumbrar um tênue raio de luz. Dei muitos passos, mas encontrei apenas a escuridão e o vácuo. Respirei mais livremente. Dir-se-ia que o destino que me reservavam não era o mais horrível de todos.

E então, continuando a caminhar cautelosamente, acudiram-me de tropel à memória mil rumores vagos acerca dos horrores de Toledo. Contavam-se coisas extraordinárias daqueles cárceres - coisas que eu sempre julgara fabulosas -, mas tão extraordinárias e medonhas que só em voz baixa se podiam repetir. Deixar-me-iam ali morrer de fome, naquele mundo subterrâneo de escuridão, ou será que um destino mais terrível ainda me esperava? Não podia já duvidar de que o resultado seria a morte, e uma morte cuja crueldade iria muito além da usual, conhecendo bem o caráter dos meus juízes. O modo e a ocasião era quanto me preocupava e atormentava.

As minhas mãos estendidas encontraram por fim um obstáculo sólido: era uma parede que parecia de alvenaria, muito lisa, fria e viscosa. Fui-a seguindo, mas caminhando sempre com a meticulosa desconfiança que certas histórias antigas me tinham inspirado. Este processo, porém, não me fornecia maneira de me certificar das dimensões do meu cárcere pois eu podia dar-lhe uma volta em redor e tornar ao sítio donde tinha partido, sem ter consciência do fato, tão perfeitamente uniforme se afigurava a parede. Por isso procurei a faca que tinha na algibeira quando me conduziram à sala de audiências; mas verifiquei que desaparecera com o fato que eu então levava, e que fora trocado por uma vestimenta de sarja grossa. Tinha pensado em cravar a lâmina da faca nalguma minúscula fenda de alvenaria, para assim deixar marcado o meu ponto de partida. Se a dificuldade, porém, era banal, na confusão em que eu tinha o espírito parecia-me insuperável. Rasguei uma tira de bainha da túnica e coloquei-a estendida a todo o comprimento, formando um ângulo reto com a parede. Ao dar a volta à cela, não deixaria de encontrar o pedaço de fazenda, quando fechasse o círculo. Foi pelo menos o que julguei, mas não contara com a extensão do cárcere nem com a fraqueza que se apoderara de mim. O chão estava úmido e escorregadio. Durante algum tempo caminhei para a frente, cambaleando, até que tropecei e caí. A extrema fadiga em que me encontrava levou-me a ficar deitado, e em breve adormeci na posição em que estava.

Quando despertei e estendi um braço, achei ao pé de mim um pão e uma bilha de água. Estava tão exausto que não refleti nesta circunstância e comi e bebi com avidez. Logo depois, retomei a volta à roda do cárcere e com muita dificuldade cheguei junto do pedaço de sarja. Até cair, tinha contado cinqüenta e dois passos, e depois de continuar a andar contara mais quarenta e oito. Eram portanto, ao todo, cem passos, e admitindo que dois passos dão uma jarda, calculei que a masmorra tivesse cinquenta jardas de circuito. Porém, como havia encontrado muitos recantos na parede, não consegui fazer nenhuma conjectura sobre a forma da cripta, visto que não podia deixar de supor que de uma cripta se tratava.

Tinha pouco interesse - esperança decerto nenhuma - nestas pesquisas, mas um vaga curiosidade impelia-me a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a superfície  por ela limitada. Avancei a princípio com o maior cuidado, porque o chão, parecendo embora de um material sólido, era traiçoeiro de viscoso. Por fim, recobrei ânimo e não hesitei em caminhar com firmeza, esforçando-me por seguir uma linha tão reta quanto possível. Teria dado assim uns dez ou doze passos, quando o resto da bainha rasgada se me prendeu nas pernas, tropecei e caí violentamente de bruços.

Na confusão da queda, não notei imediatamente uma circunstância bastante assustadora, mas que me prendeu a atenção alguns minutos depois, enquanto continuava caído. Era a seguinte: tinha o queixo pousado no pavimento da masmorra, mas os lábios e a parte superior da cabeça, não obstante parecerem estar mais baixos do que o queixo, não tocavam em coisa alguma. Ao mesmo tempo afigurou-se-me que me banhava a testa um vapor viscoso, e um cheiro peculiar de fungos podres subindo-me às narinas. Estendi o braço e estremeci ao descobrir que tinha caído mesmo ao pé da boca de um poço circular, cujas dimensões não tinha qualquer possibilidade de avaliar naquele momento. Apalpando a alvenaria, logo abaixo da borda, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair no abismo. Durante muitos segundos escutei com atenção os ricochetes que fez na descida, batendo de encontro às paredes do sorvedouro. Por fim mergulhou lugubremente na água e sucederam-se ecos retumbantes. Ao mesmo tempo senti um som, como que de uma porta situada por sobre a minha cabeça, que fora tão depressa aberta como fechada. Um tênue raio de luz atravessou a escuridão para logo se desvanecer.

Vi claramente a sorte que me haviam preparado e alegrei-me com o oportuno acidente que me salvara. Um passo mais, e o mundo não me tornaria a ver. E a morte que acabava de evitar era exatamente da índole das que eu antes julgava fabulosas e absurdas nas histórias a respeito da Inquisição. Às vítimas da sua tirania deixava-se a escolha entre a morte com as mais cruciantes agonias físicas e a morte com os mais horríveis tormentos morais. Tinha sido reservado para esta última. O longo sofrimento distendera-me os nervos, de sorte que o som da minha própria voz me fazia estremecer, tornara-me, a todos os respeitos, um paciente perfeitamente indicado para a tortura que me esperava.

Todo a tremer, voltei para junto da parede, antes resolvido a morrer ali que a afrontar os horrores dos poços, que a minha imaginação figurava em grande número pelos vários pontos do cárcere. Noutras disposições de espírito, teria tido a coragem de acabar de vez com as minhas misérias, precipitando-me num daqueles abismos; mas naquele momento eu era o mais completo dos covardes. Nem pude tampouco esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a extinção repentina da vida não fazia parte dos seus mais horríveis planos.

A agitação de espírito manteve-me acordado durante muitas horas, mas acabei finalmente por adormecer. Ao despertar, achei ao pé de mim, como antes, um pão e uma bilha com água. Cheio de sede ardente, esgotei a bilha de um trago. A água tinha forçosamente algum narcótico, porque, mal a bebi, senti um desejo irresistível de dormir. Um sono profundo se abateu sobre mim - um sono igual ao da morte. Claro que não sei quanto tempo durou; mas quando voltei a abrir os olhos, tinham-se tornado visíveis os objetos que me cercavam. Uma claridade singular, sulfúrea, cuja origem a princípio não pude descobrir, permitia-me ver o tamanho e o aspecto da masmorra.

Tinha-me enganado muito acerca das suas dimensões. O perímetro total das paredes não excedia vinte e cinco jardas. Por alguns minutos, este fato confundiu-me em vão - muito em vão, realmente, pois que, nas terríveis circunstâncias que me cercavam, que haveria de menor importância que as dimensões do cárcere? Mas o meu espírito tomava especial interesse por estas frivolidades e empreguei os maiores esforços para saber como me tinha enganado na medida. Por fim, a verdade surgiu como um relâmpago.  Na primeira tentativa de exploração, contara cinquenta e dois passos até à ocasião em que caí; devia estar então a um ou dois passos de distância do pedaço de sarja e quase tinha completado a volta da cripta. Adormeci então, e ao acordar voltei decerto para trás, supondo assim o circuito aproximadamente duplo do que era realmente. A confusão em que se achava o meu espírito não me deixou notar que começara a dar a volta com a parede à minha esquerda e que a completara com ela à direita.

Também me enganara a respeito da forma do recinto. Andando às apalpadelas, sentira muitos recantos na parede e daqui deduzira a ideia de grande irregularidade; tão potente é o efeito da escuridão completa sobre quem desperta do letargo ou do sono! Esses recantos eram apenas resultantes de ligeiras depressões ou nichos a intervalos desiguais. A forma geral da prisão era quadrada. O que tomara por alvenaria parecia-me agora ferro ou qualquer outro metal, em enormes chapas, cujas suturas ou juntas ocasionavam as depressões. Por toda a superfície deste invólucro metálico estavam grosseiramente pintados numerosos emblemas medonhos e repugnantes, gerados pela sepulcral superstição dos frades. Figuras de demônios com aspecto ameaçador e em forma de esqueletos e outras imagens realmente mais horrorosas desfiguravam as paredes e cobriam-nas por completo. Observei que os contornos destas monstruosidades estavam bastante nítidos, mas que as cores pareciam apagadas e alteradas, como que por efeito de uma atmosfera carregada de umidade. Vi também que o chão era de pedra. No centro, escancarava-se o poço circular a cujas goelas eu escapara, e vi que era o único em todo o cárcere.

Tudo isto eu vi, indistintamente e muito a custo, porque a minha condição física se tinha alterado muito durante o sono. Estava agora deitado de costas e com o corpo todo estendido sobre uma espécie de cavalete de madeira, ao qual me achava solidamente amarrado por meio de uma comprida correia, que parecia uma sobrecilha. Dava-me várias voltas aos membros e ao tronco, deixando somente livres a cabeça e o braço esquerdo, de modo que me fosse possível, ainda que com grande dificuldade, tirar o alimento de um prato de barro que estava a meu lado, no chão. Notei, cheio de terror, que tinham levado a bilha. E digo cheio de terror porque me consumia uma sede insuportável. Creio que era intenção dos meus carrascos estimularem-me a sede, visto que o alimento contido no prato era carne fortemente salgada.

Levantei os olhos e examinei o teto da prisão. Estava a uns trinta ou quarenta pés de altura e era construído de modo muito semelhante ao das paredes. Num dos painéis havia uma figura singularíssima, que me fixou completamente a atenção. Era a representação do Tempo, como normalmente o representam, com a diferença, porém, de que em vez da foice tinha um objeto que à primeira vista julguei ser um grande pêndulo, idêntico aos que vemos nos relógios antigos. Havia contudo na aparência desta máquina alguma coisa que me levou a fitá-la com mais atenção. Enquanto a observava olhando para cima, pois estava precisamente por cima de mim, pareceu-me vê-la mover-se. Um instante depois confirmava-se a minha suspeita. O seu movimento era curto e naturalmente muito vagaroso. Observei-o durante alguns minutos com certo receio, mas principalmente com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu oscilar fastidioso, voltei os olhos para os outros objetos do cárcere.

Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi muitos ratos enormes. Saíam do poço, que ficava dentro do meu campo de visão, à direita. Nesse mesmo instante, enquanto olhava para eles, subiam aos magotes, apressadamente, com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi-me então necessário um esforço enorme e muita atenção para conseguir afastá-los de mim.

Ter-se-ia passado meia hora, talvez até uma hora (pois não me era possível ter perfeita noção do tempo), quando ergui novamente os olhos para o teto. O que então vi deixou-me atônito e surpreso. A amplitude do movimento do pêndulo tinha aumentado cerca de uma jarda. Como consequência natural, a sua velocidade era também maior. Mas o que principalmente me perturbou foi a ideia de que o pêndulo tinha baixado visivelmente. Observei então - inútil será dizer com que horror - que a sua extremidade inferior era formada por uma meia-lua de aço brilhante com cerca de um pé de comprimento, de ponta a ponta, com as extremidades viradas para cima e o gume inferior afiado, evidentemente, como uma navalha de barba. Tal como uma navalha, parecia pesada e maciça, alargando-se a partir do gume, numa estrutura larga e sólida. Estava ligada a uma pesada vara de bronze e o todo sibilava balançando-se no ar.

Não pude duvidar por mais tempo da sorte que me preparara o engenho dos frades para quanto fosse tortura. Os agentes da Inquisição souberam que eu já conhecia o poço - o poço, cujos horrores tinham sido destinados a tão ousado herege como eu - o poço, símbolo do inferno e considerado pelo vulgo como a última Tule de todos os seus castigos. Tinha escapado de mergulhar no poço pelo mais simples dos acasos, e sabia que a surpresa ou o estratagema no tormento formava parte importante de quanto havia de grotesco naquelas execuções misteriosas. Não tendo caído, não entrava no plano diabólico lançarem-me no abismo; e assim (sem haver outra alternativa), esperava-me uma destruição diferente e mais suave. Mais suave! Esbocei um sorriso, na minha agonia, ao pensar na aplicação que dava a semelhante palavra.

De que me servirá falar das longas horas de horror mais que mortal, durante as quais contei as oscilações precipitadas do aço! Polegada a polegada, linha a linha, baixando imperceptivelmente, a intervalos que pareciam séculos, baixava cada vez mais, baixava sempre! Passaram-se dias - podem ter-se passado muitos dias - antes que o pêndulo viesse balançar tão perto de mim que me bafejasse com o seu sopro acre. O cheiro do aço aguçado entrava-me pelas narinas. Roguei aos Céus, cansando-os com as minhas súplicas, para que fizessem com que o aço descesse mais depressa. Tornei-me freneticamente doido e forcejei por levantar-me e ir ao encontro da terrível cimitarra. E afinal caí repentinamente em sossego e quedei-me sorrindo para a morte brilhante, como uma criança para um brinquedo raro.

Houve outro intervalo de perfeita insensibilidade; foi curto, porque quando voltei à vida o pêndulo não tinha descido quantidade apreciável. Mas podia também ter sido longo, porque sabia que havia demônios que, notando o meu desmaio, poderiam ter feito parar, a seu bel-prazer, a oscilação. Ao recuperar os sentidos achei-me tão doente e debilitado – nem posso exprimi-lo - como se tivesse sofrido uma longa inanição. Até na angústia daqueles instantes a natureza humana implorava alimento. Num esforço penoso estendi o braço esquerdo, tão longe quanto me permitiam as amarras, e apoderei-me dos restos insignificantes que os ratos me tinham deixado. Ao pô-los entre os lábios acorreu-me subitamente ao espírito um informe pensamento de alegria, de esperança. Contudo, que teria eu a ver com a esperança? Era, como disse, um pensamento informe, como tão frequentemente sucede, um daqueles pensamentos que nunca se completam. Sentia que era de alegria, de esperança, mas percebi também que morria ao formar-se. Debalde tentei completá-lo, recuperá-lo. Os sofrimentos por que passara tinham-me aniquilado quase por completo as faculdades usuais do espírito. Estava feito um imbecil, um idiota.

O sentido de oscilação do pêndulo fazia um ângulo reto com o comprimento do meu corpo. Vi que tinham colocado a meia-lua por forma a interceptar a região do coração. Roçaria pela sarja da minha túnica, voltaria atrás para repetir esta operação mais uma vez, e outra ainda. Conquanto a oscilação fosse terrivelmente ampla (de uns trinta pés ou mais) e a sibilante energia da descida do pêndulo suficiente para cortar aquelas muralhas de ferro, ainda assim, tudo quanto ele poderia fazer durante alguns minutos seria roçar-me pela túnica. Detive-me neste pensamento, Não me atrevi a ir além desta reflexão. Demorei-me nela com uma atenção persistente, como se com isto pudesse deter então a descida do pêndulo. Forcei-me a mim próprio a imaginar o som que faria a meia-lua ao atravessar-me a roupa - a pensar na sensação particular e penetrante que a fricção do tecido produz sobre os nervos. refleti em todas estas banalidades até me rangerem os dentes.

Mais baixo, cada vez mais baixo. Sentia um prazer frenético em estabelecer um contraste entre a velocidade com que descia e a sua velocidade lateral. Ora para a direita, ora para a esquerda, agora longe e logo perto, com o guinchar de uma alma danada, perto do meu coração, com furtivos passos de tigre. Eu ria e rugia alternadamente, conforme uma ou outra idéia me dominava.

Mais baixo, invariavelmente, inexoravelmente mais baixo! Vibrava agora a menos de três polegadas do meu peito! Debatia-me violentamente, furiosamente, tentando soltar o braço esquerdo. Tinha-o apenas livre da mão ao cotovelo. Podia levar a mão, do prato situado a meu lado, até à boca, com grande esforço, e não mais longe. Se conseguisse cortar as correias acima do cotovelo, agarraria o pêndulo e tentaria fazê-lo parar. Tentaria do mesmo modo deter uma avalanche!

Mais baixo, constantemente mais baixo, inevitavelmente mais baixo. Respirava com dificuldade e agitava-me a cada vibração. Encolhia-me convulsivamente a cada oscilação. Os meus olhos seguiam-lhe os voos ascendentes e descendentes com o ardor do mais insensato desespero; fechavam-se espasmodicamente no momento da descida, embora a morte fosse um alívio indizível! E contudo eu estremecia em todos os meus nervos, ao pensar como bastava baixar apenas um pouco o maquinismo para precipitar no meu peito aquele gume afiado e brilhante. Era a esperança que impelia os nervos a tremer e todo o meu corpo a contrair-se; a esperança que triunfa no patíbulo, e que segreda ao ouvido dos condenados à morte, até nos cárceres da lnquisição.

Vi que umas dez ou doze oscilações poriam o aço em contato com a minha roupa, e esta observação logo me infundiu no espírito a tranquilidade  aguda e condensada do desespero. Pela primeira vez durante muitas horas - ou talvez dias - pus-me a pensar. Ocorreu-me então que a ligadura ou sobrecilha que me envolvia era de uma só peça. Não estava preso por nenhuma corda separada. A primeira mordedura da navalha em forma de meia-lua, numa parte qualquer da ligadura, soltá-la-ia o bastante para me poder desprender, com o auxílio da mão esquerda. Como era terrível neste caso a proximidade do aço! E como seria mortal o resultado do mais ligeiro impulso! Demais, era acaso provável que os validos do carrasco não tivessem antevisto e prevenido esta circunstância? Era possível que a ligadura envolvesse o peito na trajetória do pêndulo? Tremendo de ver frustrada a minha frágil e, ao que parece, última esperança, levantei a cabeça de modo a ver bem o peito. A correia envolvia-me os membros e o corpo em todos os sentidos, salvo no percurso do pêndulo destruidor.

Mal deixara cair a cabeça para trás, que assim voltava à posição inicial, brilhou-me no espírito o que não posso definir melhor do que como a outra metade da ideia informe de libertação a que aludi anteriormente, e cuja primeira metade apenas me acudira indistintamente ao cérebro quando ia a levar a comida aos lábios ardentes. Agora me surgia o pensamento completo - fraco, débil, mal definido - mas, não obstante, completo. Com toda a energia do desespero, entreguei-me imediatamente à tentativa de executa-lo.

Havia muitas horas que a vizinhança do catre de pouca altura onde eu jazia pululava literalmente de ratos. Eram bravios, atrevidos, vorazes, e dardejavam contra mim os seus olhos vermelhos, como se esperassem apenas que eu estivesse imóvel para me tomarem sua presa. «A que alimento», pensei estremecendo de terror, «estarão eles acostumados dentro do poço?»

Tinham devorado, não obstante os meus esforços para o impedir, todo o conteúdo da gamela, salvo um resto diminuto. A minha mão adquirira um movimento de vaivém até ao prato, e a uniformidade inconsciente do movimento acabou por torná-lo inútil. Na sua voracidade, aquela praga várias vezes me cravara os dentes agudos nos dedos. Com as migalhas da carne gordurenta e apimentada esfreguei vigorosamente as ataduras em todos os sítios onde pude chegar e, levantando a mão do chão, permaneci imóvel e sem respirar.

A princípio, os vorazes animais ficaram espantados e receosos com a mudança - com a cessação do movimento. Retrocederam assustados; muitos procuraram o poço. Mas isto durou apenas um instante. Não contara debalde com a sua voracidade. Observando que eu permanecia imóvel, um ou dois dos mais atrevidos treparam para o catre e puseram-se a cheirar a correia. Dir-se-ia que foi o sinal para uma invasão geral. Do poço saíram em novo tropel. Agarraram-se à madeira, espalharam-se sobre ela e saltaram às centenas para cima de mim. O movimento compassado do pêndulo não os incomodava absolutamente nada. Evitando-o, ocupavam-se da correia. Apertavam-se, enxameavam constantemente sobre mim. Agitavam-se-me em cima da garganta; com os beiços frios procuravam os meus lábios; quase me sufocavam com o peso; uma repugnância sem nome fazia-me arfar o peito e gelava-me o coração, com uma pesada viscosidade. Um minuto mais, e sabia que a luta chegaria ao fim. Senti claramente a correia a dar de si. Sabia que devia estar cortada em mais de um lugar. Num esforço sobre-humano permaneci imóvel.

Não me enganara nos meus cálculos, nem tinha padecido em vão. Senti finalmente que estava livre. A correia pendia-me do corpo, em pedaços. Mas já o pêndulo me atacava o peito; tinha-me cortado a sarja da túnica, chegado à camisa. Por mais duas vezes voltou a oscilar, e uma sensação de dor aguda percorreu-me todos os nervos. Porém, o instante de salvação chegara. A um aceno que fiz com a mão, os meus libertadores fugiram em tumulto. Com um movimento resoluto, cauteloso, lateral, contraído e demorado, escapei ao amplexo da correia e ao alcance da cimitarra. Por então, ao menos, estava livre.

Livre!, e nas garras da lnquisição! Mal tinha saído daquele horrendo leito e dado alguns passos pelo chão da masmorra, deteve-se o movimento do maquinismo infernal, que vi arrastado para cima por efeito de alguma força invisível, através do teto. Com isto, o desespero invadiu-me o coração. Era evidente que espiavam todos os meus movimentos. Livre! Escapara à morte sob uma forma de agonia, para ser entregue a uma coisa pior do que a morte, sob outra forma. Com este pensamento relanceei convulsivamente os olhos para as muralhas de ferro que me cercavam. Obviamente, uma coisa extraordinária - uma mudança que a princípio não pude apreciar claramente - sucedia no cárcere. Durante alguns minutos de abstração repassada de sonhos e estremecimentos, perdi-me em vãs e incoerentes conjecturas. E foi durante este período que notei pela primeira vez a origem da luz sulfurosa que alumiava a masmorra. Provinha ela de uma longa fissura, da largura de um centímetro, pouco mais ou menos, que se estendia a toda a volta da prisão, na base das paredes, que deste modo pareciam, e estavam, com efeito, separadas do chão. Procurei, como decerto se imagina, olhar através daquela abertura, mas nada pude ver.

Quando me levantava desanimado, revelou-se-me de repente à inteligência o mistério da alteração do cárcere. Eu tinha notado que, embora os contornos das figuras murais fossem suficientemente distintos, as cores pareciam deterioradas e indecisas. Pois tais cores acabavam de tomar um brilho singular e intensíssimo, sempre crescente, que dava àquelas imagens espectrais e diabólicas um aspecto que faria estremecer nervos mais firmes do que os meus. Olhos de demônios de uma vivacidade feroz e medonha, dardejavam sobre mim, vindos de mil direções, nenhuma delas até então visível, e brilhavam com o lúgubre fulgor de um fogo que, por mais que forçasse a imaginação, não podia considerar irreal.

Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor do ferro aquecido! Espalhou-se pela masmorra um cheiro sufocante! Um ardor cada vez mais profundo se refletia naqueles olhos cravados na minha agonia. Um tom carmesim cada vez mais intenso se espalhava sobre aquelas horríveis pinturas de sangue! Eu arquejava! Respirava com dificuldade! Não havia que duvidar do plano dos meus algozes - oh!, os mais impiedosos, os mais diabólicos de todos os homens! Recuei para longe do metal candente, para o centro do cárcere. Em presença daquela destruição pelo fogo, a ideia da frescura do poço veio-me ao espírito como um bálsamo. Corri para a borda mortal. Lancei o olhar para o fundo. O brilho da abóbada inflamada iluminava-lhe os mais afastados recessos.
 
Contudo, durante um instante de desvario, o meu espírito recusou-se a compreender o significado do que eu via. Por fim, entrou-me na alma à força, triunfantemente; imprimiu-se como fogo na minha trêmula razão. Oh! Uma voz para falar - oh!, horror - oh!, todos os horrores menos aquele. Com um grito, afastei-me da borda do poço e, ocultando o rosto entre as mãos, chorei com amargura.

O calor aumentava rapidamente, e uma vez mais levantei os olhos, tremendo como num acesso de febre. Houve segunda mudança no cárcere - e tratava-se desta vez de uma evidente mudança na forma. Como antes, debalde intentei a princípio avaliar ou compreender o que estava sucedendo. Mas pouco tempo estive em dúvida. A vingança inquisitorial fora acelerada pelo fato de eu lhe escapar duas vezes, e não era possível afrontar por mais tempo o Rei dos Terrores. O cárcere tomara a forma de um quadrado. Vi que dois dos seus ângulos de ferro se tinham tornado agudos - e, consequentemente os outros dois eram obtusos. A temerosa diferença aumentava com um ruído surdo, abafado e plangente. Num momento, a masmorra mudara a sua forma em losango. Mas a alteração não se deteve aí - nem eu desejava, nem esperava, que parasse. Poderia aplicar as rubras paredes de encontro ao peito, como um vestuário de eterna paz. «A morte», disse eu, «qualquer morte, menos a do  poço».

lnsensato! Acaso podia ignorar que o motivo do ferro candente era impelir-me para dentro do poço? Poderia acaso resistir ao seu calor? E ainda quando tal acontecesse, poderia acaso resistir à sua pressão? E agora o losango ia-se achatando, achatando cada vez mais, com uma velocidade que não deixava tempo para refletir seu centro, e portanto a sua maior largura, coincidia justamente com o abismo hiante. Recuei, mas as paredes, apertando-se, impeliam-me irresistivelmente. Por fim, para o meu corpo queimado e contorcido nem sequer restava uma polegada de espaço no chão da masmorra. Não lutei mais: mas a agonia da minha alma exalou-se num forte, prolongado e derradeiro grito de desespero. Senti que cambaleava à beira do poço, desviei os olhos...

Subitamente, ouviu-se uma discordante explosão de vozes humanas! Um poderoso ruído, como que de mil trombetas! Um áspero rugido, como que de mil trovões! Os muros incandescentes recuaram! Um braço estendido me tomou pelo braço quando ia a cair, inerte, no abismo. Era o do general Lassale. As tropas francesas tinham entrado em Toledo. A lnquisição estava nas mãos dos inimigos.
FIM

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 39

CAPÍTULO XII

A singularíssima posição de Teobaldo, entre a chamada melhor sociedade do seu tempo, vinha pura e simplesmente das graças dele, do seu espírito e de seu talento de saber, como ninguém, dar a cada um indivíduo aquilo que lhe era mais lisonjeiro ou agradável; vinha de conseguir agradar ao gosto de todos, desde o Imperador até ao último dos copeiros, sem aliás desgostar a ninguém, o que é muito difícil. A sua invejável atitude de homem raro e desejado por todos procedia em linha reta da sua excepcional habilidade de transformar-se sem o menor esforço, sem que ninguém desse por isso, e amoldando-se ao gosto da pessoa que tinha defronte de si, como a nuvem que percorre uma cordilheira e vai tomando o feitio de cada montanha que atravessa.

Pândego para os pândegos, homem sério para os homens sérios, ele a todos agradava e com todos se afinava, sem aliás perder uma linha da originalidade do seu tipo e da esquisitice do seu gênero, assim como um pintor de talento conserva o seu estilo próprio em mil diversas fisionomias que lhe saem da palheta. Além dessas, havia uma outra razão, talvez não menos poderosa, e com certeza menos legítima. Era a paternidade que lhe davam (e contra a qual ele protestava muito frouxamente) de uma famosa série de artigos, então publicados em várias revistas científicas e várias folhas diárias.

A história desses artigos é a seguinte: Coruja, havia muito, entregara-se por gosto e por necessidade de sua índole ao estudo sério e acurado de umas tantas matérias a que em geral chamam áridas, e com as quais Teobaldo não seria capaz de entestar.

Sem imaginação, nem talento inventivo e nem arte, André só assim encontrou meio de usar da sua grande atividade intelectual e foi aos poucos se familiarizando com os estudos econômicos e sociológicos. Pode ser que esse apetite fosse ainda uma conseqüência da sua idéia fixa e dominante — a história do Brasil, obra esta a que ele se escravizara desde os seus vinte anos e da qual nunca se distraíra investigando sempre, inalteravelmente, com a calma e a paciência de um sábio velho que se dedica ao trabalho só pelo prazer de trabalhar, sem a menor preocupação de elogio ou glória. Essa obra ainda estava longe de seu termo, mas representava já uma soma enorme de serviço: compilações de todo o gênero e apontamentos de toda a espécie.

— Se eu não conseguir levá-la ao cabo, dizia ele. aí fica bom material para quem o souber aproveitar, dando-lhe a forma literária, que é só o que lhe falta.

E isto que ele dizia a respeito da carcassa da sua obra capital, verificou-se logo com os seus apontamentos sobre questões sociais: um dia Teobaldo fez-lhe algumas perguntas a respeito de elemento servil, locação de serviços e colonização.

Coruja satisfez as perguntas do amigo e declarou que tinha consigo algumas notas tomadas nesse sentido. Os dois subiram ao cubículo de André, e este sacou de uma gaveta de sua velha secretária um grosso pacote, composto de pequenos maços de tiras escritas, sobre cada uma das quais via-se metodicamente lançado um título diverso.

Teobaldo começou a manusear os maços.

Leu o primeiro: "Indústrias", no segundo: "Manufaturas", leu em outro: "Escravidão" e em outro: "Instrução pública". E continuando a percorre-los, foi encontrando: "Pequena lavoura — Nacionalização do comércio a retalho — Nunes Machado e seu tempo — Economia rural, decadência do açúcar, nota sobre o inquérito do governo — Exploração do gado lanígero — Administração dos correios — Legislação territorial — Cultura do bicho-da-seda — Plantação da vinha — Colonização, reflexões sobre as cartas do marquês de Abrantes — Discursos sobre o elemento servil por Bernardo de Vasconcelos, Eusébio de Queiroz e João Maurício Vanderley — Guerra do Rosas."

E assim por diante.

— Que diabo tencionas tu fazer disto? perguntou Teobaldo.

— Nada, respondeu André, são notas de considerações, que às vezes acodem e que a gente vai colecionando, para, se algum dia precisar...

— Mas é um tesouro isto que aqui tens!... Deves publicar estas notas!

— Qual! Não despertariam interesse em ninguém; falta-lhes forma literária, não passam de apontamentos; datas, nomes, citações, discursos políticos e nada mais.

— Ora! A forma literária é o menos. Isso arranja-se brincando.

— Pois se quiseres arranjá-la...

— Homem! Está dito! Publicam-se com um pseudônimo. Vais ver o barulhão que isto faz aí!

— Não creio.

— E eu tenho certeza; só com uma vista d’olhos já percebi que tomaste nota de todos os fatos mais curiosos de nossa administração pública nestes últimos tempos.

— Ah! Isso é exato; estas notas foram escritas à proporção que se sucediam os fatos, e cada uma tem ao lado as considerações que a respeito dela fez a imprensa.

— São minhas! Resumiu Teobaldo, guardando na algibeira as notas do Coruja.

Daí a dias surgia em público o primeiro artigo dos de uma longa série que então se publicaram e que estavam destinados a dar ao marido de Branca uma nova reputação, uma reputação que ele ainda não tinha: — A de homem de bom senso prático e econômico.

As conscienciosas notas de André, floreadas pelas lantejoulas da retórica do outro, converteram-se no objeto da curiosidade pública. Foi um verdadeiro sucesso; o jornal que as publicou viu a sua tiragem aumentada e os artigos, uma vez colecionados em volume, deram várias edições. Daí nasceu o prestígio de Teobaldo entre os homens públicos do seu tempo, que desde então começaram a respeitá-lo, se bem que o habilidoso jamais declarasse positivamente ser o autor dos célebres artigos.

Branca, porém, sabia ao certo a quem eles pertenciam de direito e ficou muito seriamente indignada contra o marido uma vez em que este, depois de negar a pé junto que não era o autor dos tais artigos, respondera a um tipo que exigia nesse caso que ele desse a sua palavra de honra.

— Não! Isso não! Afianço que os artigos não são meus, mas, quanto a dar palavras de honra, não dou!

O fato é que ele ficou sendo desde então considerado uma das primeiras ilustrações do Brasil, tendo ao seu dispor o jornalismo em peso e ao seu serviço a proteção dos homens mais influentes na política. Podia enfim alargar os seus horizontes e desejar mais largos apesar do seu espírito ser tão inconstante e a sua ambição tão desnorteada.

Agora já não pensava mais em se fazer dono e redator de um jornal; vivia só para uma idéia: entrar na câmara dos deputados.

Um terrível contratempo veio, porém, alterar-lhe a vida.

Nessa ocasião, em vista dos efeitos da guerra, esperava-se que o preço das libras esterlinas subisse extraordinariamente, e Teobaldo, fiado nisso, empregou a melhor parte do que lhe restava em comprar uma boa porção delas para as revender com lucro fabuloso; eis, porém, que a subida inesperada do partido conservador, firmando o crédito do estado, elevou o papel-moeda, deixando o câmbio quase ao par, depois de verificado o empréstimo do Visconde de Itaboraí, do qual se conservou a popular denominação de "bonde em ouro".

Por conseguinte, o dinheiro arriscado nessa especulação de cambiais não foi recuperado; as libras, que aliás haviam chegado excepcionalmente ao valor de 15$ cada uma, desceram de repente e foram vendidas por muito menos do custo. Teobaldo viu-se perdido. Além de ficar completamente despido de dinheiro, ainda tinha de apresentar seis contos de réis ao seu fornecedor de café em certo dia convencionado, sob pena de perder também o crédito, que era a coisa única com que podia ainda contar para a sua reabilitação.

No entanto só o Coruja, o Aguiar e Branca sabiam da verdade inteira a respeito disso; de todos os mais Teobaldo escondeu a sua crítica situação, convencido de que tudo perdoam aos homens, menos a infelicidade. Este fato de ter de esconder o seu desespero ainda mais o fazia sofrer, enchendo-lhe as horas de amargura e sobressalto.

Foi então que o Aguiar se chegou para ele e disse, batendo-lhe no ombro:

— Ora, se a questão é de seis contos de réis, não tens que te afligir, eu tos empresto; teu crédito não ficará abalado!

Teobaldo abraçou-o, declarando que o Aguiar acabava de lhe salvar a honra.

— És um verdadeiro amigo! Disse-lhe. Se não foras tu, era natural que eu metesse uma bala nos miolos!

Quando Branca se achou a sós com o primo, apertou-lhe a mão muito comovida e repetiu pouco mais ou menos as palavras do esposo.

— Engana-se, respondeu o Aguiar, não foi por ele aquilo, foi simplesmente em honra da senhora.

— Não é então amigo de Teobaldo?

— Eu o detesto.

— Foi nesse caso só por mim que o socorreu?

— Bem sabe que sim.

E chegando-se para ela, acrescentou em voz baixa:

— E que não faria eu por sua causa? Terei porventura alguma outra preocupação que não seja tornar--me aos seus olhos cada vez mais digno? Terei maior ambição do que vê-la satisfeita comigo e perdoando-me o estimá-la mais do que me é permitido... E tanto assim que nada mais lhe peço além de declarar com franqueza o que quer que eu faça; ordene e ver-me-á submisso e escravo a seus pés cumprindo as suas leis.

— Não tenho ordens para lhe dar, nem direito para isso, apenas desejo que meu primo continue a ser meu amigo, e, visto que não está nas mesmas circunstâncias em que eu estou para com Teobaldo, perdoe-lhe as franquezas e as maldades.

— Não! Eu só perdoaria àquele vaidoso se ele a deixasse em paz!

— Não o compreendo e peço licença para retirar-me, sinto-me indisposta; meu marido não tarda aí e far-lhe-á companhia.

Branca afastou-se tranqüilamente, sem se mostrar nem de leve receosa das seduções do primo; ao passo que este, sufocando a sua impaciência, deixou-se ficar imóvel no lugar em que estava, a fitá-la pelas costas com o seu comprido olhar de homem teimoso e vingativo.

Que pensará de mim esta mulher? Interrogou ele intimamente, cruzando os braços no meio da sala. — Que idéia fará da minha vontade e do meu querer? Pois não perceberá ela que eu, odiando o marido, não faria por este o menor sacrifício, se não fora a esperança de saciar o amor que me põe louco? É impossível que Branca, tão inteligente e tão lúcida, não me compreenda e não perceba as minhas intenções! É impossível que ela me suponha tão fácil de contentar que eu só exija de sua pessoa um casto e fraternal reconhecimento! Ah! Mas agora, agora que os tenho seguros por uma dívida de meia dúzia de contos de réis, hei de chegar aos fins a que desejo ou muito terão eles de amargar!

Fazia tais reflexões, quando Teobaldo entrou da rua.

Vinha extremamente pálido e, pelos modos, bastante contrariado.

— Oh! Que tens tu? Perguntou-lhe o outro, indo ao encontro dele. Estás com uma cara! Alguma coisa te contraria ainda?

— Nada!

— Desconheço-te, homem!

— Nada! Não tenho nada! Necessidade de repouso.

— Nesse caso, retiro-me...

— Não. Fica à vontade.

— Julgas que é muito agradável suportar-te neste estado?...

— É exato. Confesso que estou preocupado. Mais tarde saberás por que.

— Bem; não falemos mais nisso e conversemos sobre outra coisa.

Mas, daí a meia hora, dizia o Aguiar:

— Não! Tem paciência! Hoje não posso contigo. Adeus. Voltarei quando estiveres mais admissível.

Teobaldo, mal viu sair o amigo, meteu-se no seu gabinete de trabalho, acendeu o gás, fechou-se por dentro e pôs-se a reler uma carta, que tirara da algibeira.

Era uma carta anônima e dizia o seguinte:

Meu adorável Teobaldo.

O feitiço vira-se às vezes contra o feiticeiro: tu, que tens destelhado a valer a honra de vários maridos, estás agora com a tua exposta à chuva e aos ventos... Olha que lhe fazem cada rombo, que até da rua a gente os vê!...
E a graça, adorável Teobaldo, é que deves esse obséquio ao teu melhor amigo, ao teu intimo, ao teu unha com carne! Coitado do meu Teobaldo!
Se exiges provas do que dizemos, estamos dispostos a dar-tas quando quiseres.
Assinava — Uma das vítimas dos teus encantos.

CAPÍTULO XIII

Depois da nova leitura da carta anônima, Teobaldo mergulhou mais profundamente na sua preocupação.

— O meu melhor amigo... O meu íntimo!... Repetia ele, como um sonâmbulo. Trata-se por conseguinte do Coruja ou do Aguiar! O Aguiar!... Não! Não é possível!... E contra o outro não me animo sequer a levantar a ponta de uma suspeita!

Mas o seu espírito, como se pactuasse com o autor da covarde denúncia, escapava-se das convicções dele a favor daqueles dois amigos e punha-se na pista das probabilidades do que afirmava a carta.

— Oh! Dizia por dentro da sua experiência. As mulheres são tão dissimuladas, tão vingativas e tão traiçoeiras, que às vezes aquela, que supomos mais anjo e mais virtuosa, é justamente a mais capaz de matar-nos a alfinetadas, se lhe ofendermos o amor-próprio e a vaidade!

E, porque ele julgava de todas as mulheres pelas que até aí tivera por amantes, isto é, pelas fracas, pelas vulgares e gafadas de velho romantismo, seu pensamento ia ainda mais longe e dizia-lhe:

— Ah! São todas as mesmas! Perdoam-nos tudo, as maiores baixezas e as maiores maldades; só o que cada uma de per si não nos perdoa nunca, é não lhe darmos a primazia da nossa ternura e da nossa dedicação! Cada qual quer sempre ser a melhor e a mais digna de amor, e ai daquele que não obedece ou não finge obedecer a esse capricho, quando ligou o seu nome a qualquer dessas egoístas!

E, depois de agarrar-se a este princípio, Teobaldo perguntou a si mesmo:

— Qual dos dois, o Coruja ou o Aguiar, teria Branca preferido para cúmplice de sua vingança contra mim?

— O Aguiar, sem dúvida, porque o outro nada tem de amável.

— Que importa, porém, a ferrenha antipatia do Coruja, se não é o amor que se trata, mas simplesmente de uma vingança? E a vingança com o Coruja seria muito e muito mais completa e mais cruel!

E então, como para explicar esta terrível hipótese, o espírito de Teobaldo começou a fazer desfilar defronte de si todas as esquisitices que se notavam em Branca ultimamente; vieram os caprichos, as transformações de gênio, as excentricidades, que ela, a despeito do seu reconhecido bom senso, apresentava de tempo a essa parte.

— Sim, sim, insistia o pensamento de Teobaldo. Desde aquela célebre noite da entrevista da mulher do conselheiro. Branca já não é a mesma senhora ajuizada e boa dona de casa!... Está completamente transformada, ao ponto de não dar idéia do que fora... Agora tem extravagâncias que parecem de louca; dá para fechar-se no quarto dias inteiros, a ler ou a escrever, sem se importar com o que vai pelo resto do mundo; agora toma-se de simpatias por criaturas, que até aí não podia suportar; agora veste-se mal, um pouco disparatadamente, desleixa-se em questões de asseio, não capricha em trazer a cabeça penteada; falta à mesa nas horas consagradas à refeição e levanta-se à noite, fora de horas, para cear em companhia do velho Caetano...

Esse nome como que o despertou.

— Ah! Disse, e correu a vibrar o tímpano.

Surgiu logo um criado.

— O Caetano que venha aqui, imediatamente! Ordenou.

E já passeava a passos medidos em toda a extensão do gabinete, quando o velho criado lhe apareceu, arrastando os pés, a cabecinha toda branca e vergada para a terra, como se andasse à procura dos oito palmos que esta lhe destinava no seu seio.

— Velho amigo! Disse-lhe o amo, passando-lhe o braço pelo ombro. Sabes para que te chamei? Foi para que me relatasse minuciosamente tudo o que tens visto fazer minha mulher nestes últimos tempos.

— Nunca a espreitei... respondeu Caetano, franzindo as sobrancelhas.

— Bem sei, replicou o amo, e não te perdoaria se o fizeras; quero, porém, que me contes minuciosamente como Branca tem vivido, quais são agora os seus hábitos, os seus gostos e as suas propensões.

— Ah! Muito mudada de gênio, coitadinha! Principiou o criado; não lembra quem era! Está triste, frenética e caprichosa, que mete dó! Já não cuida das suas flores; mandou retirar da sala os passarinhos que ela tanto estimava dantes e parece disposta a não conservar nenhum dos hábitos antigos; já não se deita, nem se levanta dois dias seguidos à mesma hora; nega-se às visitas que recebia com mais prazer e só se mostra deveras entretida quando ouve a leitura do Sr. André.

— Do Coruja! Ah! Explica-me isso!

— O Sr. André, quase todas as noites e aos domingos durante algumas horas do dia, desce à sala de jantar, assenta-se ao lado dela e põe-se a ler. A senhora o ouve com toda a atenção e parece tomar nisso grande interesse porque às vezes, quando ele termina a leitura, ela tem os olhos cheios d’água e suspira.

— E o que mais tens observado entre os dois?

— Mais nada. O Sr. André, termina a leitura, conversa ainda um pouco com a Sra. D. Branca e retira-se depois para o seu quarto.

— E ela?

— Ela nunca faz o que fez na véspera e sim o que lhe vem à fantasia.

— Sim, mas explica o que é!

— Oh! Mas são tantas as coisas... Uma vez, por exemplo, quando toda a casa já estava recolhida, ela mandou-me chamar, fez preparar o carro e saímos a passeio.

— Onde foram?

— À toa. A Sra. D. Branca disse ao cocheiro que desse algumas voltas até o Catete.

— E foi só essa vez que passeou?

— Não, senhor: fez o mesmo várias vezes...

— E sempre em tua companhia?

— Creio que sim, senhor.

E o Coruja nunca os acompanhou?

Não, senhor; se bem que a Sra. D. Branca o convidasse mais de uma vez.

— Ah!

— O Sr. André apenas a acompanhou uma ocasião em que a Sra. D. Branca foi à missa à igreja de S. João Batista.

— Há muito tempo?

— Há coisa de dois meses.

— E o outro, o Aguiar, tem vindo aqui muitas vezes?

— Tem sim, senhor; mas a Sra. D. Branca parece não estimar tanto a companhia do Sr. Aguiar como estima a do Sr. André, visto que às vezes deixa-se ficar no quarto e não lhe aparece, e de outras retira-se da sala antes que ele se tenha ido embora.

— E o Aguiar trata-a com muita amabilidade?

— Muita; e parece respeitá-la extraordinariamente.

— Bem. E quem mais aparece?

— Nestes últimos tempos, quase que ninguém a não ser o Sr. Aguiar, porque há muito que a Sra. D. Branca não se quer mostrar a pessoa alguma. Quem muita vez passa o dia aqui e parece distrair muito a Sra. D. Branca é o filhinho da costureira, um pequeno de uns cinco anos. A Sra. D. Branca mostra certa estima por ele, faz-lhe roupas, leva-o consigo dentro do carro, compra-lhe brinquedos, sapatos, chapéus e às vezes passa horas esquecidas ao lado do menino.

Teobaldo fez ainda várias perguntas ao velho Caetano, intimamente envergonhado por não saber o que ia por sua própria casa e mais ou menos aturdido pela dúvida e pela desconfiança em que se achava contra a esposa e os dois únicos homens a quem tinha por amigos verdadeiros.

Disse ao criado que se retirasse. Depois foi à gaveta da secretária buscar um revólver que lá estava.

— Hei de descobrir, pensou ele, o que há de verdade em tudo isto, e juro que meterei uma bala na cabeça do miserável que me atraiçoa!
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continua…

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Raquel Ordones (Distribuindo Pérolas)

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Fernando Sabino (O Bar da Esquina)

A designação de bar sugere características que o lugar não tinha - e não tem; continua lá até hoje, na Avenida Copacabana, esquina da Francisco Sá. Embora eu já não seja assíduo, creio que nada, além dos frequentadores, haja mudado.

É um balcão semicircular ao longo da esquina, no qual se serve tudo, do café ao sanduíche de presunto, passando por um traçado para os adeptos.

Em geral não bebíamos, a não ser um raríssimo chope. Tomávamos mesmo era um cafezinho, ou vários, três, quatro, renovando o pretexto de estarmos ali de conversa noite adentro, pois nem o café era lá essas coisas. Carlos Castello Branco, Evandro Carlos de Andrade, Fernando Lara Resende, Cláudio Mello e Souza Autran Dourado, Wilson Figueiredo, Carlos Alberto Tenório, Pedro Gomes - estes e outros, não necessariamente ao mesmo tempo, faziam parte da patota do Bar Bico, aberto dia e noite. De preferência à noite, até a madrugada. Éramos quase todos homens de jornal, e os jornais naquela época fechavam tarde, nunca liberando o pessoal antes de 11 horas, meia-noite.

Ao fim de duas horas de papo, já estávamos mortos de sono, em pé "como cavalo velho de rifa em barraquinha do interior" (na imagem de Marco Aurélio Matos, também frequentador assíduo). Quando nos dispúnhamos finalmente a ir para casa, surgia outro, trazendo bagagem nova de assuntos. Não tinha cabimento passar a noite inteira de pé, conversando fiado. Concordávamos com ele, mas estávamos ali apenas por alguns minutos, não era isso mesmo? Só mais um cafezinho para virgular o papo... E íamos ficando.

Otto Lara Resende - o que mais tempo nos retinha, arrastando-nos até o sol nascer com o sortilégio da sua boa conversa. Era também o que mais reclamava contra o tardio da hora, protestando sempre que já devia estar em casa há muito tempo. Certa época chegou mesmo a estabelecer com sua mulher um sistema de multas progressivas, como nos estacionamentos rotativos; pagaria a ela uma quantia preestabelecida por toda meia hora que excedesse a meia-noite. Era o limite que impunha a si mesmo, prometendo de trinta em trinta minutos não ultrapassá-lo um minuto sequer. Antes de iniciar novo assunto, perguntava-nos as horas. Cena noite, éramos três numa daquelas conversas de nos deixar com a língua de fora, quando um vulto se deteve no meio da rua e pôs-se a gritar:

- Faltam cinco para as duas.

- Bem - conformava-se ele, com um suspiro. - Então lá se vão mais cem pratas. Mas este caso que eu vou contar vale bem outra meia hora.

Despedia-se, enfim, de todos, quando via alguém mais se aproximando - o Borjalo, que morava ali perto, ou o Armando Nogueira, ou ambos. Era Burle Marx, o paisagista, que raramente aparecia:

- Só faltava esta - lastimava-se ele. - Com esses dois eu hoje vou à falência.

Paulo Mendes Campos era outro que sempre aparecia, em geral indo para algum lugar onde se pudesse sentar e tomar coisa melhor. Segundo sustentava, não tinha cabimento passar a noite inteira de pé, conversando fiado. Concordávamos com ele, mas estávamos ali apenas por alguns minutos, não era isso mesmo? Só mais um cafezinho para virgular o papo... E íamos ficando.

Certa noite, éramos três, numa daquelas conversas de nos deixar com a língua de fora, quando um vulto se deteve no meio da rua e pôs-se a gritar:

- Paulo! Otto! Fernando! Que coisa antiga, minha Nossa Senhora!

Ficamos apreensivos, pois ali perto já funcionava uma delegacia de polícia: não fossem nos prender, por conta de semelhante atoarda com o nosso nome no silêncio da madrugada.

Era Burle Marx, o paisagista, que raramente aparecia:

- Vocês três conversando aí nessa esquina a noite toda! Há quantos anos isso, meu Deus! Vão para casa, que vocês não têm mais nada que conversar! Que coisa antiiiga!

Para Rubem Braga, entretanto, o exemplo mais acabado de dissipação era passar a noite inteira junto a um café em pé discutindo futebol com o próprio pai, como fazia o crítico de cinema Moniz Viana.

Sobre o quê conversávamos? Sobre futebol, política, literatura, anedotas, amenidades. Tudo o que pode fazer o melhor da convivência entre amigos, que é o próprio sal da terra. Uma conversa enfiada na outra, abrangendo uma generalidade de assuntos que fossem do interesse de todos.

E de todos sei o destino que tiveram. Venceram na vida, casaram e mudaram. Mas continuam meus amigos e, desafiando os prudentes conselhos de Burle Marx, que coisa antiiiga! - a conversa também continua. Não mais no Bar Bico, mas onde quer que eu os encontre hoje em dia – ainda que sejam apenas figuras nascidas da lembrança, na solidão da noite...
                                          
Fontes: 
SABINO, Fernando. A Chave do Enigma.
Imagem = http://www.allartsgallery.com

Eça de Queiroz (O Senhor Diabo)

Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensanguentam o corpo. E, todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu!

Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens. Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo. Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates.

Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula. E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio.

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a coreografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.

O Diabo amou muito. Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antiguidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.

Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha. /Feminae in illius amore delectantur/, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II; com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.

Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida!

Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto. A casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm. Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo.

E todo o dia fiava.

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro. Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros. As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali - consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado. Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!

- Se tu soubesses! - dizia um olhar. - A alma dela é imaculada.

- Se tu visses! - dizia o outro. - O coração dele é sereno, forte e vermelho.

- É consolador, aquele peito onde há estrelas!

- É purificador, aquele seio onde há bênçãos!

E olhavam ambos, silenciosos, estáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as árvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras. E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas.

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar:

/Os teus olhos, bem-amada, / São duas noites cerradas. E por aí vai.../

 E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto. Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

- A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?

E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:

/Quem de pena um rouxinol / E rasga uma triste flor,/
/Mostra que dentro do peito / Só tem farrapos de amor./

 E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz.

Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus.

- A toutinegra voou - disse jovialmente. E indo para Jusel:

- É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel?

Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.

- No meu tempo, senhor Suspiro - disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços - já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel!

Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito.

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão.

- Bacharel Ternura - disse - há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil.

 - Era o pajem. - É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo.  Rabil, toca na guitarra o rondó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas!

E batendo heroicamente nos copos da espada:

- Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?

- Ali! - respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas.

- Ah! - disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte?

- Eram os meus irmãos - disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra.

- Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado ao pilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul.

Maria disse suspiradamente:

- Vem.

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços de um Deus. As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia:

- Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: "Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram no coração daquela mulheres." Outros diziam: "Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio." E então adiantei-me e disse: "Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem." Que sonho tão mau, tão mau!

- Por que estás tu - dizia ela - todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas?

- Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem.

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.

- Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. - Nem eu sei!

E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.

E inclinando o corpo:

- Conheces meu pai? - disse ela.

- Não. Que importa?

- Ai, se tu soubesses!

- Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixavas me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe; deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que te prende o cabelo. Será a nossa estola.

E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas - J. e M.

- É o nosso noivado - disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia.

E ajoelhados, estáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça. E as suas almas falavam cheias de mistério.

- Vês tu? - dizia a alma dela - Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus!

- O meu coração - suspirava a alma dele - é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor!

- Olha - dizia a alma dela - eu sou como um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares!

- Sabes tu? - dizia a alma dele - No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo – quando cairás tu nos meus braços?

E a alma dela dizia: "Cala-te". Não falavam. E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as
orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas - para Deus passar por cima!

E então à porta da varanda houve uma risada metálica, imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros, vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo, sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.

O pai lentamente foi para Jusel e disse, com escárnio:

- Onde queres ser enforcado, vilão?

- Pai, pai! - E Maria, aflita, com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho. - Não. É meu marido, casamos as almas. Olhe, ali está. Veja! Ali, na imagem!

- O quê?

- Ali, no peito, veja. Os nossos nomes enlaçados. É meu marido. Só me quer bem. Mas seja, sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida!

O velho olhava as letras como uns esponsais divinos que se tinham refugiado no seio de Cristo.

- Raspa, meu velho, que isso é marfim! - gritou o homem dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca no cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!

E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.

- É ele, Rabil! - gritou o homem da flor de cacto.

O velho soluçava.

E então o homem pálido, que tocava guitarra, veio tristemente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai:

- Abençoa-os, velho!

E saiu batendo rijamente nos copos da espada.

- Mas quem é? - disse o velho apavorado.

- Mais baixo! - disse o pajem da ânfora de Mileto - É o senhor Diabo... Mil desejos, meus noivos.

Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros dizia ao pajem:

- Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu. Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria diz que me vendi a Deus.

- A bela Impéria! - disse o pajem. - As mulheres! Vaidades, vaidades! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados, trovadores. As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incômoda, e uma carne tão diáfana que se vê através do lodo primitivo.

- Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando - para não  morrer de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer.

- Também os diabos se vão. Adeus, Satã!

- Adeus, Ganímedes!

E o homem e o pajem separaram-se na noite.

A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra.

- Estás também deserto - disse, olhando para a cruz. Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste calado.

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio:

Quem vos desfolhou estrelas, / Dos arvoredos da luz?
E com uma risada melancólica: / Chegará o Outono ao Diabo? / Virá o Inverno a Jesus?

 Fonte:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/download/O_Senhor_Diabo.pdf