domingo, 8 de setembro de 2013

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) V

foi mantida a grafia original.
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AS VÍTIMAS

Eu vejo muita vez e raro já me assombro
— minha alma tanto afiz às tristes comoções! -
Na rua, junto a mim, passar ombro com ombro
No trânsito penoso as longas procissões,

De vítimas da sorte e vítimas do mundo!
Umas boas, gentis, outras feias, cruéis,
Envoltas num sudário ou num burel imundo;
Nas pompas teatrais, nas galas dos bordéis,

Não são filhas do sonho ou criações quiméricas
Da mente alucinada, ou vagos ideais;
São magros peitos nus, são faces cadavéricas,
São as tristes, as vis desolações carnais.

São pequenos sem pão que vão pedindo esmola
Nas lamas encharcando os regelados pés:
Que dormem nos portais, que nunca vão à escola
— flores que enfeitarão a noite das galés!

São aquelas gentis e pobres costureiras
De peito comprimido; anémica expressão;
Que passam a tossir, cansadas, com olheiras,
Ganhando em todo o dia apenas um tostão,

Curvadas a coser o lânguido veludo,
O irritante cetim dos grandes enxovais,
Das princesas do Banco, herdeiras disto tudo;
Depois indo morrer nos tristes hospitais!

São os pobres heróis que os seus irmãos combatem;
Que morrem sob o peso enorme dos canhões,
E o cortejo de mães pedindo aos reis que as matem
E os reis fazendo rir das suas maldições!

São da lúgubre noite umas flores sem nome
Batidas muito já dos grandes vendavais,
Que, porque sentem frio ou porque sentem fome,
Derramam pelo seio aromas triviais

E fingem depois ser aparições divinas,
Erguendo um pouco a saia, a fímbria sensual,
Abrindo um vil leilão de beijos, nas esquinas,
Aos apetites vis da multidão brutal!

São mineiros sem luz; são velhos britadores,
Que o contacto da pedra um dia endureceu,
Queimados pelo sol, gelados nos horrores
Do túmulo cruel que em vida os recebeu!

São aqueles heróis, enfim, dos grandes sonhos,
Que sentiram na terra as vastas corrupções
E às turbas apontando uns mundos mais risonhos
Tentaram espedaçar os últimos grilhões

E que passam também um tanto contristados,
Talvez cheios de tédio, ao verem que hoje, nós,
Os deixamos seguir ainda apedrejados
Não raro desprezando a sua augusta voz!

E a grande multidão de mártires sublimes,
De tristes seminus, constante a caminhar,
Aos céus erguendo as mãos, queixando-se dos crimes
Dos déspotas que aos pés não cessam de os calcar!

A fila tenebrosa, a procissão de vítimas,
Aumenta mais e mais; não deixa de crescer!
E do estigma cruel das penas mais legítimas
Em muita fronte bela um traço podeis ver!

Caminhe muito embora: a sorte é sempre vária
E a turba sofredora, ó grandes bem sabeis,
Podia dividir a túnica cesárea
Lançando aos que estão nus a púrpura dos reis!

EVOCAÇÃO

Levanta-te Romeu do túmulo em que dormes
E vem sorrir de novo à boa, à eterna luz!
De noite, ouço dizer que há sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!

Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto: — assim, que bem que estás!
Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruído
Nas horas vis do tédio e das insónias más.

O mundo transformou-se; aquele fundo abismo
Do antigo amor fatal, fechou-se duma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prosaísmo
No berço onde sonhava a doce candidez!

No entanto podes crer; faz muito menos frio
À luz do novo sol; do gás provocador;
E o século apesar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cântico sombrio
Que fala de ideais e cousas sem valor!

Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos céus ainda por ti levanta as brancas mãos;
E enquanto por mim corre a tétrica ampulheta,
Da musa alegre e vil da torpe cançoneta
Saudemos a nudez a par dos bons pagãos!

Nas praças, tu bem vês; a turba prazenteira
Inunda-se na luz de mil constelações!
E os arcanjos da rua assomam na poeira
Que exala o macadame, trazendo em cada olheira
O astro criador das grandes sensações!

E quando a cotovia à estrela matutina
Mandar a saudação. Lá fora, em pleno céu,
Romeu tu beijarás, que é tua eterna sina,
A trança da beleza anémica e franzina
Que entre os fumos da festa, a amar, adormeceu!

Boas noites coveiro: a tua enxada
Não cessa há tanto tempo de cavar?!
Cavaleiro da morte, ó fronte desolada,
Não sentes a mão trémula e cansada
De tanto trabalhar!

Tu esperas hoje as legiões sombrias
De mortos, que eu suponho ao longe ver?
Os felizes caídos nas orgias
E os tristes que além todos os dias
O gelo vem colher?!

Que imensa vala aberta! São medonhos
Os risos dessa boca infame, alvar!...
Descansa dos teus dias enfadonhos!
— Eu cavo a sepultura dos teus sonhos
Não posso descansar!

Fonte:
http://luso-livros.net/

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