domingo, 1 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 30

CAPÍTULO XXII

Às nove horas da noite Teobaldo partira para Botafogo dentro de um cupê, em cuja boléia o Coruja e mais o Sabino empertigavam-se denodadamente como se foram legítimos cocheiros.

Era para ver o grave professor enfronhado naquela libré já russa, de botões enverdecidos de azinhavre, e todo austero, inalterável, possuído da mesma gravidade com que se assentava ao lado da noiva ou recolhia na aula as lições dos seus rapazes.

Não se lhe desfranzira o sobrolho, nem lhe fugira dos lábios a triste rispidez favorita, como também os seus pequeninos olhos mal abertos conservavam aquela dura expressão antipática e sem graça, que a todos desagradava e repelia. Pelas aproximações da casa do comendador o carro seguiu mais lentamente e abordou-a pelos fundos, sem se lhe ouvir o rodar, porque a rua era de areia.

A certa altura, Teobaldo segredou uma palavra ao amigo, saltou em terra e dirigiu-se para o portão traseiro da chácara; aí escondeu-se atrás de uma árvore que havia e assoviou três vezes. Só no fim de alguns minutos um leve rumor de saias fê-lo compreender que alguém se aproximava.

— Teobaldo... Disse uma voz medrosa e tímida.

— Estás pronta?

E ele viu desenhar-se na escadaria de pedra, frouxamente iluminado pelas estrelas, o gracioso vulto de Branca. Ela desceu trêmula e confusa, apoiando-se ao corrimão engrinaldado de verdura, a olhar espavorida para todos os lados, até chegar embaixo.

— Vem, disse Teobaldo a meia voz.

— Tenho medo... Balbuciou a menina, encostando-se ao pilar da escada, sem ânimo de dar um passo em frente.

O rapaz abriu cautelosamente o portão e foi ter com ela.

— Não tenhas receio, minha Branca, segredou-lhe, passando-lhe um braço na cintura. — Lembra-te de que, se não aproveitarmos esta ocasião, nunca mais seremos um do outro. Dei já todas as providencias: uma família espera por ti e ao raiar do dia estaremos casados. Vem! Nada de hesitações, vem, antes que nos surpreendam aqui.

— Vê como estou gelada... Balbuciou ela, pousando a sua mãozinha fria sobre o rosto do namorado. O coração parece que me quer saltar de dentro do peito... Oh! Não pensei que me custaria tanto a dar este passo...

Teobaldo puxou-a brandamente até à rua e, com um sinal, fez aproximar-se o carro, para onde ele a levou nos braços.

— Deus me proteja!... Suspirou Branca, deixando--se cair sobre as almofadas, como se perdera os sentidos.

— Toca! Ordenou o raptor ao Coruja.

O carro disparou. Então a menina deixou pender a cabeça sobre o colo do amante e abriu a soluçar.

D. Margarida e a filha esperavam por eles.

Não foi, porém, sem dificuldade que o Coruja logrou capacitar a velha de que não devia fugir a semelhante obséquio, e é de crer que ela cedesse mais por espírito de curiosidade do que pelo simples gosto de servir ao futuro genro: aquilo, afinal, era um escândalo, e a mãe de Inês dava o cavaquinho pelos escândalos.

Branca chegou lá às dez e meia da noite, e D. Margarida, ao dar com o Coruja muito sério e disfarçado em cocheiro, exclamou benzendo-se — Credo, seu Miranda! Que trajos são esses, homem de Deus?

Teobaldo despediu o carro, fez servir uma ceia que mandara trazer do hotel e ordenou ao Sabino que tornasse a Botafogo e ficasse até pela madrugada a rondar a casa do comendador, para ver se haveria alguma novidade. Puseram-se todos à mesa e, a despeito da crescente aflição da foragida, riram e conversaram, sem cuidar nas horas que fugiam, porque estavam mais que dispostos a passar a noite inteira na palestra e na bisca de sete.

— Vê!... Disse Margarida, dirigindo-se a André e apontando para Branca e Teobaldo, que alheados conversavam juntos, quando a gente quer as coisas deveras faz como aqueles...

O Coruja remexeu-se ao lado de Inês, e a velha acrescentou:

— E note-se que estes para casar topavam outras dificuldades que já o senhor não encontra para casar com minha filha!...

— O meu caso é muito diferente... resmungou por fim o Coruja — mas muito diferente... Quanto a mim, não se trata de vencer oposições de família; trata-se é de obter os meios necessários para que a senhora e sua filha não venham a sofrer dificuldades depois do meu casamento...

— Ora! Quem tudo quer, tudo perde!

Teobaldo interveio a favor da velha, aconselhando ao amigo que acabasse por uma vez com aquela história, que se casasse logo com a moça, e, depois de apresentar em linguagem colorida as vantagens do matrimonio, fechou o discurso oferecendo a sua casa e a sua mesa ao amigo, apesar de não saber ainda onde havia de se refugiar com Branca depois que a igreja os tivesse legalmente unido.

André abanou as orelhas a tais palavras.

— E por que não? insistiu o outro — não temos porventura conseguido viver juntos até hoje e em perfeita harmonia?... Para que havemos, pois, de separar-nos daqui em diante...

— Para não termos o desgosto, contraveio André, de vermos nossas famílias em guerra constante. Dois rapazes viverão eternamente em boa paz debaixo do mesmo teto; com duas senhoras a coisa é mais difícil e com mais de duas é impossível.

— Agora, isto é exato... Confirmou a velha.

— É! Arriscou Inês — Quem casa, quer casa!...

Mas declarou logo que, apesar disso, estaria por tudo que deliberassem.

— Pois eu, replicou Teobaldo, afianço desde já que não estou disposto, seja pelo que for, a dispensar a companhia do Coruja, ache-se ele casado, solteiro ou viúvo!

— Se sua mulher ou a dele estiverem por isso!... Observou a velha, já em tom de contenda e disposta a armar questão.

— Ora! D. Inês não me parece das mais difíceis de contentar... Disse Teobaldo sorrindo.

— Ah! Eu estou sempre por tudo... Confirmou Inês.

— E quanto a Branca... Prosseguiu aquele.

— Desde que me case, atalhou a filha do comendador. — Serei sempre da opinião de meu marido. Só a ele compete decidir.

D. Margarida, pela cara, mostrou não gostar de semelhante teoria; mas a filha em compensação por uma risonha careta que fez ao Coruja, deu a entender que subscrevia as palavras de Branca.

E por este caminho, a conversa deu ainda algumas voltas, até cair de novo no principal assunto: — o rapto, e, às cinco da manhã, quando se dispunham a levantar o vôo para a igreja, ouviram bater à porta da rua.

Teobaldo foi logo abrir.

Era o Sabino. Vinha a botar os bofes pela boca, e com muito custo declarou que estivera por um triz a cair nas unhas da Polícia.

— Mas fala por uma vez! Disse-lhe o senhor impacientando-se. — Houve alguma novidade?

— Já se sabe de tudo na casa do homem! Explicou o moleque.

— O diabo!

— Ali pela volta das três horas, prosseguiu aquele, ouvi rumor dentro da casa, e, com poucas, era gente a passar com luz para uma banda e para outra, assim como coisa que caçassem alguém; eu me escondi na rua, atrás de uma árvore; eles desceram à chácara, deram com o portão aberto e, pelo jeito, toparam um lenço ou coisa que o valha, porque tudo ficou assanhado!

— E depois?

— Depois vieram á rua, não me bisparam e, tudo seguiu outra vez para riba, e aí foi um berreiro de todos os diabos, que nem se tivesse morrido alguém.

— Mas que teria sucedido, não sabes?

— Não sei não senhor, porque vim me embora...

Embalde procurou Teobaldo esconder de Branca o que acabava de ouvir: foi preciso dizer-lhe tudo, e ela desde então pôs-se a chorar, dominada por terríveis apreensões.

Daí a algumas horas boquejava-se em toda a cidade que a filha do comendador Rodrigues de Aguiar fugira de casa com um vadio de marca maior chamado Teobaldo, o qual a desposara clandestinamente às cinco e meia da madrugada na igreja de Santana; e que o pai da moça, assim que eu por falta desta e quando soube quem era raptor, caíra fulminado por uma congestão cerebral, morrendo logo em seguida, sem dar uma palavra.

Bem dizia o Aguiar que o homem, se lhe chegassem um charuto aceso à ponta do nariz — Estourava. E, com efeito, estourou.

FIM DA SEGUNDA PARTE

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continua…

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