quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Arthur Quiller-Couch * (O Natal de um Ladrão)

Ilustração: R. Zamboni
Esperava que aquele negócio rendesse muito, pois o senhor Félix, o velho solteirão em cuja casa acabava de me introduzir, passava por ter consagrado trinta anos a adornar de boas coisas o seu gabinete. Qualquer nababo ou milionário pode dar-se ao luxo de colecionar; mas, o sr. Félix, pessoa de modesta fortuna, devia ter feito uma escolha cuidadosa. Só deveria ter comprado coisas de valor. E todas elas estavam dispostas dentro de lindas e pequenas vitrinas, com as respectivas etiquetas e defendidas por fechaduras, que eu teria podido abrir com um alfinete de. cabelo.

A vitrina superior continha amuletos, mas disso eu nada entendo. A segunda, vinte ou trinta camafeus, sobre os quais eu projetava a luz da minha lanterna surda. Examinei cinco ou seis deles antes de os meter na maleta; reconheci Europa e o Touro; Ganimedes e a Águia; Agavé levando a cabeça de Penteu; Ícaro com as suas asas partidas, caindo de cabeça para o mar, aí representado por uma linha ondulada. . . Todas essas jóias eram de um valor inestimável.

Na terceira vitrina, havia uma esmeralda desmontada, digna de um resgate real; um broche com duas ametistas e um colar de pérolas negras. Tudo isso me demonstrava claramente que tinha de me haver com um artista que não amontoava coisas ao acaso, na sua coleção. "Que pena — pensava eu — ver-me na necessidade de dar um desgosto a um homem tão inteligente!"

A quarta vitrina era reservada às miniaturas, quase todas orladas de diamantes. A quinta guardava as tabaqueiras: tabaqueiras de ouro, ostentando monogramas reais; tabaqueiras de concha de tartaruga e ouro; tabaqueiras de esmalte azul, incrustadas de diamantes. Duas destas, ao caírem juntas na maleta chocaram-se. Este ligeiro ruído fêz-me estremecer, e detive-me um momento a olhar para trás.

A janela continuava aberta, tal como eu a tinha deixado. Fora, na noite calma e gelada, a neve dos telhados brilhava à luz clara do luar. Mas, embora não houvesse vento, a corrente de ar, que entrava pela janela aberta, havia avivado uma pequena chama na lareira, onde, três minutos antes, mal se via luzir o carvão. No andar de baixo, nalgum salão afastado, os violinos tocavam uma valsa e um violoncelo marcava o compasso, pois o senhor Félix dava uma festa de Natal.

Não perdi muito tempo escutando e observando o local: comecei o trabalho e peguei noutra tabaqueira. No momento em que esta caía na maleta, a música ressoou um pouquinho mais forte; uma das portas se abriu, e um homenzinho rechonchudo, de casaca, apareceu no umbral.

— Oh, lá! — exclamou com um ligeiro estremecimento de surpresa. — Não, não, meu amigo; o senhor enganou-se de sala.

Sem me dar tempo a que pudesse dominar os nervos, dirigira-se à janela fechando-a.

— O melhor que o senhor tem a fazer é não se mexer — disse. — Poderemos conversar. Há criados na escadaria, e se o senhor tentasse sair por onde entrou, encontraria três policiais, que mandei vir, para assegurar a ordem à entrada. Mas, agora que os meus convidados já entraram, devem estar precisamente aqui por baixo de nós e tenho um apito para os chamar. Tenho também um revólver.

Num abrir e fechar de olhos, tinha ido a um armário e pegara na arma.

— E está carregado — acrescentou, sempre com a mesma voz, fria e indiferente, na qual passada a primeira exclamação de supresa, eu não tinha podido distinguir nenhum sinal de espanto.

— Pois bem, seja; falemos — disse eu.

Avançou para a lareira, mas deteve-se ao ouvir a minha voz, e, voltando-se vivamente:

— Eh! Dir-se-ia que é um perfeito cavalheiro!

Pousou o revólver sobre a chaminé, tirou de um cesto um pedaço de papel, chegou-o ao fogo e julgou do seu dever acender as luzes de um antigo candelabro, que adornava a parte superior da lareira. Havia ali cinco velas c ele acendeu-as todas.

Até então não tínhamos tido outra luz senão a claridade, era distante, que vinha do corredor; mas à luz daquelas velas, pude ver que o meu interlocutor era um velho, de cara rapada, cabelos brancos e muito bem vestido. Como a princípio só o vira de perfil, as enormes dimensões do seu nariz tinham-me surpreendido. Porém, agora, verificava que a sua cabeça era suficientemente forte para manter as proporções e tirar-lhe todo o aspecto de caricatura. Os seus ombros largos eram suporte digno daquela volumosa cabeça. E enquanto ele se mantinha encostado à chaminé, pude ver que apesar do peito arqueado e do busto de atleta, não era isento de certa delicadeza de atrativos, quase femininos. Naquela atitude, fêz-me pensar num matador que linha visto diante de um touro numa praça de Sevilha. Por trás dele, a luz da lareira desenhava, claramente, o contorno das suas pernas nervosas. Tinha no braço esquerdo um sobretudo e na mão uma claque fechada, apoiada contra o peito. Ao cerrar a janela e ao pegar no revólver, bem como ao acender as velas, só se servira da mão direita.

— Será o senhor um cavalheiro? — tornou a perguntar.

— Sim; e então? — respondi-lhe nervosamente. — O senhor é certamente daqueles que associam o cavalheirismo à moralidade. . .

— Até certo ponto. . . — disse. — Além disso, todo o mundo pensa assim.

— Seja como fôr, não tenho pretensões ao título de gentleman — respondi. — Mas o senhor se engana se julga que não recebi nenhuma educação. Fui aluno de Oxford, embora não tivesse obtido todos os graus. . .

— Ah! — disse, inclinando a cabeça. — E foram as cartas que. . . ?

— De maneira alguma! — repliquei, vivamente. — Reconheço que as aparências são contra mim; mas as cartas nunca me atraíram. Na realidade, o que me deitou a perder foi. um cavalo.

Ele fêz um gesto de assentimento.

— De maneira que o senhor — retorquiu ele — embora não tenha a pretensão de ser um gentleman, reconhece também que há certa relação entre a educação e a conduta da vida. . . Ah Oxford! Se não me engano os estudantes estão, neste momento, no grande vestíbulo, a celebrar o Natal, escutando o Glória de Pergolése.

— Essa recordação me é penosa — disse eu. — Pode acreditar, quer isso lhe seja agradável ou não.

— E, além de tudo, o senhor é um sentimental! — exclamou o senhor Félix, cujos olhos brilhavam. — Ótimo! Tenho uma tarefa para o senhor. . . mas disso falaremos depois. Deixe-me apenas dizer-lhe que me apareceu aqui como que caído do céu, mesmo na hora. Vejo que até agora tenho dado demasiada importância à minha coleção, visto que há outros que a cobiçam mais do que eu. . . Por exemplo, essa tabaqueira que o senhor tem aí na mão…, em determinado momento da sua história, valia por si só cerca de duzentos x milhões. . .

Comecei a pensar que tinha de me haver com um louco.

— Ou, melhor ainda, — corrigiu: — os duzentos milhões representavam o valor de uma pitada do rapé que ela continha. Abra-a com cuidado, peço-lhe, e nela verá autêntico tabaco de cheirar, que ateou uma guerra entre a França e a Áustria. Como diz Virgílio? Sim. Si motus animorum atque haec certamina tanta Pulveris exigtii jacto. Sim, mas no meu exemplo verá que a pitada do tabaco foi realmente a causa. Ora, ouça, senhor: O embaixador da Áustria recusou-se numa tarde fatal, a cheirar o conteúdo dessa tabaqueira, e eu ouso afirmar que, três semanas depois, ele teria dado milhões para ter a honra de introduzir nela a ponta dos dedos. Repare na coroa imperial que a ornamenta e que. rodeada de abelhas, dir-se-ia estar aí para ilustrar a advertência de Virgílio. Comprei esse objeto pela módica quantia de seis ducados, mas o seu valor aumentará, atingindo provavelmente uma dezena de milhares de francos na altura da minha morte, e esses dez mil francos servirão, de certa maneira, para 0 meu monumento.

— O seu monumento?

Teve um novo gesto de assentimento.

— A seu tempo, me ouvirá falar disso, pois vejo que sabe escutar. O senhor tem qualidades, e mesmo mais do que as que julga. Quanto a mim, sou um sentimental como o senhor. Por isso, nunca quis casar-me. . . mas agora não disponho do tempo necessário para lhe expor os meus pontos-de-vista, pois, segundo ouço, parece que

O baile está no fim, e os meus convidados vão impacientar-se. . .

Calou-se, aproximou-se de mim. . . e agarrou-me vigo rosamente pela gola do casaco.

Esse movimento, que por nada eu esperava, fêz-me cambalear. Retrocedi um passo, fechando instintivamente os punhos, mas percebi que a sua mão se afrouxara, sentindo, logo a seguir, uma série de pequeninos toques no pescoço, como se o senhor Félix estivesse entretido a tocar piano sobre a minha nuca. Ouvia-o rir-se, e antes que pudesse adivinhar o que se passava, ele afastou-se. tendo na mão um coelho branco.

— Um velho truque, não é verdade? É tão simples!

Abriu a claque, meteu dentro o coelho, tornou a meter a mão, e de lá tirou os dois coelhos brancos.

— Tudo isto vai divertir os meus jovens convidados! Estudei muito prestidigitação nos meus momentos de ócio.

Pôs os coelhos no chão e dirigiu-se de novo para o armário.

~ O senhor é exatamente a pessoa que me fazia falta — disse — e vou lhe dar oportunidade de ganhar a sua ceia.

Abriu o armário e tirou uma grande capa vermelha, guarnecida de arminho.

— Eu mesmo pensava em vesti-la — disse, mostrando-~ma, .— mas. . .

Deteve-se ao ver que o meu rosto tomava uma expressão lastimosa, e desatou a rir, de uma maneira que me deu vontade de lhe deitar as mãos ao pescoço.

— Meu caro senhor — exclamou — compreendo-o perfeitamente. Pura associação de idéias com o Supremo Tribunal, não é assim? Pura analogia fortuita, pois isto não é toga de juiz, mas, muito simplesmente o traje do Papai Noel. E aqui tem agora a sua cabeleira encimada pela sagrada coroa e também a barba enorme, maravilhosamente orvalhada de prata.

Fez brilhar todos esses objetos à luz da lua que entrava pela janela, voltando-se depois para mim.

.— Vista depressa! — ordenou. — E aqui tem também as botas.

Tirou do armário um par de botas em que tinha cuidadosamente colado pedaços de algodão, para simular a neve.

— Felizmente são bastante altas — disse — de outra forma, como o traje é demasiadamente curto para o senhor, as pernas lhe ficariam à mostra.

Recuou um passo para apreciar se tudo aquilo me assentava bem.

— Há castigos e castigos — disse eu — e espero que, qualquer que seja a sua intenção, me levará em conta este de me vestir de Pierrot.

— Ah! Garanto-lhe que vai interessar-se pelo seu papel dentro em pouco — respondeu ele, esfregando as mãos.

Depois refletiu um minuto.

— O Papai Noel devia descer pela chaminé — prosseguiu, olhando para a lareira. — Estaria mais de acordo com a tradição. Esta chaminé comunica com a de baixo, e creio que o senhor não é gordo demais para não poder passar por ela; mas não tenho certeza se o meu mordomo a tenha mandado limpar recentemente. . . Evitar-lhe-ei, pois. a chaminé. *

Nos salões, a música deixara de tocar. O senhor Félix pegou nos seus coelhos, tornou a metê-los na claque, que fechou com um movimento rápido e seco, e, pum!, os coelhos eclipsaram-se.

— Desculpe-me — disse eu, enquanto ele me acompanhava até a porta; — mas essas várias coisas que eu linha metido aí na maleta. . .

— Sim! É bom traze-las, pois pode ser que tenhamos de distribuir lá embaixo alguns presentes.

Saímos do gabinete e chegamos a uma galeria, que dominava um grande hall, todo ele iluminado e decorado de hera, musgo e balões venezianos. Um grande lustre fazia rebrilhar os seus inúmeros prismas e ao pé da escadaria estavam dois criados com bandejas cobertas de doces e pastéis.

Eram criados muito bem educados, pois, ao me verem vestido daquela maneira, não manifestaram a menor surpresa.

Um deles, ao avistar-nos pousou a bandeja e abriu-nos a porta, que se encontrava à direita da escadaria. Vime então, à entrada de uma ampla sala, deslumbrante de luz e no fundo da qual se descobria o pano de boca de um pequeno teatro. Diz-se que a velocidade da luz é maior do que a do som; não estou muito certo disso, pois seria capaz de jurar que ouvi o ruído alegre de mil vozes in-fantis. que enchiam a sala, antes de me sentir deslumbrado pela luz ofuscante que nela havia.

A sala regurgitava de crianças. Havia lá centenas delas. Algumas quase sem força para dançar, tinham-se atirado para cima dos bancos dispostos por toda a volta da sala. Mas, a maior parte estava estendida em macas ou apoiadas em muletas. Outras tinham as mãos cruzadas sobre o peito e eram cegas. Não tenho a pretensão de gostar de crianças: mas, quando descobri que quase todas as que se encontravam em casa do senhor Félix eram aleijadas, enfermas ou cegas, então senti no fundo do meu velho coração uma piedade imensa.

Em todo o caso, foram os olhos cegos os únicos que me pareceram misericordiosos, quando o senhor Félix convidava Papai Noel a segui-lo até o palco do pequeno teatro, por entre a dupla fileira das crianças. Oh! Oh! Foi o primeiro grito que elas soltaram no momento em que eu apareci à porta; e ouvi esse oh! espalhar-se e multiplicar-se sem cessar, enquanto atravessava a sala cujo chão encerado refletia os meus passos como um espelho.

Sempre precedido pelo senhor Félix, subi ao palco por um pequeno corredor, todo enfeitado de bandeiras. O meu companheiro, com um sinal da sua claque, deu ordem à orquestra para começar a bem conhecida marcha A fine old English Gentleman anunciando a minha chegada; ou, se preferir, a do Papai Noel.

Depois daquele trecho de música, avançou até o proscênio e apresentou-me: explicou que me tinha encontrado vagueando pelas dependências da casa, ocupado a esvaziar qavetas à procura de presentes para dar aos Seus pequenos convidados. Cinco ou seis vezes se interromoeu para passar as mãos pela minha barba e retirar de lá bombons e pirilampos que atirava para o meio da assembléia.

A princípio as crianças mostravam-se espantadas e admiravam-se de que o dono da casa não se importasse de sujar assim tão belo e luzidio pavimento. Mas, loqo uma parotinha mais ousada debruçou-se, apanhou um pirilampo e gritou, deliciada, que, efetivamente, era um pirilampo verdadeiro. Aquilo foi o sinal para uma barafunda indescritível. O senhor Félix continuava a falar, aparentando não perceber nada; mas a sua mão, cada vez mais ágil. passava e repassava pela minha barba, e os pirilampos choviam, em torrentes, sobre a sala. Vi vários pequenos apanhá-los para os levar aos seus irmãozinhos ou irmãzinhas cegas, pondo-lhes. às vezes, nas mãos para que verificassem que eram pirilampos autênticos.

O senhor Félix percebeu isto e a catadupa das suas palavras cessou, de repente, como se fosse interrompida mecanicamente. . .

— Sou um sentimental! — disse, para mim.

Mas ninguém o ouviu, pois, naquele momento, os pirilampos saltitavam por toda a parte, e as crianças soltavam gritos de alegria. O tumulto tinha atingido o auge; mas, o senhor Félix atraiu de novo a atenção geral, agarrando–me pelo pescoço — como fizera, momentos antes, no gabinete — e, oh! prodígio!, tirou de lá dois coelhos brancos. Atirou-os para dentro da claque, que tinha aberto, com um movimento do polegar. Um segundo mais tarde, so-prando-lhe em cima, o chapéu tornava a se fechar, e os dois coelhos tinham-se evaporado. . . Tornou a abrir a claque, com um gesto de assombro, e, franzindo as sobrancelhas, tirou de dentro muitas fitas de várias cores: vermelhas, brancas, verdes, azuis, amarelas, nas quais havia baralhos amarrados. E, enquanto as fitas iam saindo do chapéu, o senhor Félix atirava ao ar as cartas, que, depois de formar um fole debaixo do lustre, tornavam a cair, juntas.

— Isso é para o senhor! .— disse-me, exibindo uma enorme couve, que saía da claque presa à ponta das fitas.

Arremessou tudo aquilo para o centro da sala, e, agarrando na minha maleta meteu-a debaixo da capa, para logo Iornar a apresentá-la transbordando de bonecos, trombones, trombetas, árvores de Natal, caixas de soldados, etc.

— Agora é a vez do Papai Noel! — gritou com toda a força. — Deixai passar o Papai Noel!

A febre da festa tinha-se apoderado de mim, e. descendo ao palco, pus-me a distribuir o conteúdo da maleta, à direita e à esquerda. Esgotei-a antes de ter percorrido a terça parte da sala, pois distribuía com ambas as mãos e. quando uma criança cega se punha a palpar um brinquedo, ou o deixava cair, dava-lhe outro até que o seu sorriso me satisfizesse completamente.

Os brinquedos abandonados ficavam no lugar onde tinham caído. Eu estava entusiasmado. Mas, estremecia cada vez que, mexendo dentro da maleta, os meus dedos roçavam pelos objetos de ouro e de prata, que se encontravam no fundo. Em breve percebi que já não tinha mais brinquedos e que, pelo menos, dois terços das crianças linda não tinham recebido nada… Voltei para apanhar Os objetos que não tinham agradado às crianças cegas; e, ao fazê-lo, tive medo que elas percebessem a coisa. . . Mas, vi a tempo, que o senhor Félix, sempre de pé sobre o palco, me fazia um sinal. . . E, como num sonho, voltei. ..

— Perfeitamente! — disse-me, enchendo, de novo, a maleta..  …… …..

Tornei a começar a minha distribuição. Por três vezes esvaziei-a… Ah! Quanto não era preciso para encher todas aquelas mãozinhas trêmulas de desejo e de alegria! Mas, consegui, e voltei a fim de receber novas instruções.

Entretanto, o senhor Félix tinha saído do palco e fazia sinal aos músicos, que começaram a tocar um belo trecho de música. O pano desceu e, um segundo depois, tornou a subir, deixando ver um cenário, que representava uma rua coberta de neve e ladeada de lojas, com vitrinas magníficas e deslumbrantes.

Então, enquanto a música executava uma marcha alegre. Arlequim entrou em cena com Colombina: pegou-a por um braço e. com um qesto rápido, fê-la rodopiar até a janela de um barbeiro; ele próprio, logo a seguir, entrou de um salto na de um vendedor de peixe. O “clown” apareceu então, pisando com medo como se caminhasse sobre um chão escorregadio; Pantaleão seguia-o. apoiado à sua bengala, no momento em que, à esquina da rua, apareciam dois policiais, vestidos de salsichas. O clown puxou as orelhas de Pantaleão. Pantaleão esbofeteou os policiais e todos, um atrás do outro, desapareceram dentro da loja do peixeiro. O clown foi o primeiro a sair, com um grande bacalhau roubado ao comerciante; entregou-o a Pantaleão. que vinha logo atrás, enquanto os policiais perseguiam a ambos. Mas. o peixeiro, o último a sair^ começou a correr atrás do clown que, tendo voltado à passar diante da vitrina se apoderara de um barril de arenques, que enfiou pela cabeça abaixo do infeliz comerciante. Este se desembaraçou como pôde, enquanto todos os personagens atiravam uns aos outros os arenques espalhados pelo chão.

As crianças torciam-se, literalmente, de riso. Oh! Que engraçada era aquela pantomima! Foi ela que, segundo o uso, fechou o serão, e realmente, depois de uma pantomima, que melhor pode fazer uma criança se não ir deitar-se e sonhar um lindo sonho, sobretudo se tem os braços carregados de brinquedos?

Cinco minutos depois de ter descido o pano, encontrava-me no hall, ao lado do senhor Félix, que se despedia dos convidados. Na rua, os carros estavam à espera. Guardas e criados punham os abrigos nos menores tão ébrios de felicidade que nem pensavam em agradecer ao dono da casa. . . E as portinholas fechavam-se, e os veículos desapareciam nas sombras da noite.

Quando o último convidado se foi embora, o sr. Félix voltou-se para mim.

— A festa terminou — disse. — Quando eu já não viver, segundo minha vontade, ela repetir-se-á todos os anos no Hospital das Crianças Doentes. Está tudo previsto no meu testamento e esse será o tal monumento de que parece já lhe falei. . . Mas durante alguns anos espero ainda que a festa poderá celebrar-se aqui. Mas, ouça: tire esse manto e essa cabeleira e vá em paz. Gostaria de falar com o senhor um pouco mais; mas estou um tanto cansado, como pode imaginar. . . Vá embora, pois! Vá em paz!

Fazendo um sinal ao criado para que se retirasse, acompanhou-me até o último degrau da escadaria e, ali, com os pés na neve, apertou-me a mão e, enquanto eu me afastava, fez-me alguns gestos de despedida.

Tinha chegado ao extremo da rua e havia já posto o pé na ponte, quando, de repente, me lembrei, com um grande estremecimento de que as jóias roubadas deviam encontrar-se ainda no fundo da maleta. Parei, encostei-me ao parapeito e abri-a. Meti a mão e tirei. . . um arenque. . . As jóias tinham-se convertido em arenques. Tirei-os um a um e fui arrojando-os à água negra, que corria, a vinte pés por baixo. Não; não havia ali objetos de valor. Mas, em todo o caso. . . No momento em que pegava no último arenque, passeando os meus dedos pelo fundo, senti um objeto duro: era um anel ornado com uma turquesa.

Durante alguns minutos fiquei examinando-o à luz de um lampião. Meti-o no bolso e logo tornei a pegar nele sem o observar de novo…

Por fim, decidi-me e voltei para trás, refazendo todo o caminho até à morada do sr. Félix.

Ele se encontrava ainda no mesmo lugar, sobre o último degrau da escadaria, junto ao bordo do passeio, e, por cima, como uma estátua, o criado aguardava que o patrão se dispusesse a entrar.

— Perdoe-me, senhor.. . — comecei eu, tirando do bolso o anel.

— Tinha-o deixado na maleta de propósito — disse, com voz suave, o sr. Félix, — Ofereço-lhe em paga dos seus bons serviços. Comprei-o por duzentos francos e creio que vale um pouco mais. Todavia, se o senhor prefere o dinheiro, o que é natural na sua situação, tome lá! Aqui tem os duzentos francos; e repito-lhe novamente: vá em paz!
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* Sir Arthur Thomaz Quiller Couch, "scholar", homem de letras e conferencista de literatura clássica em Oxford, nasceu em Cornwall em 1863 e completou a sua educação frequentando várias escolas, inclusive o "Abbott College", o "Clifton College", etc. Desde 1912 é membro do "Jesus College" e professor de literatura inglesa na Universidade de Cambridge. A sua bagagem de escritor é das mais variadas e estende-se por mais de trinta volumes que alcançam desde a novela policial até a critica literária, passando pelo teatro e pela poesia.     Muitos dos seus trabalhos literários e algumas de suas novelas têm sido assinados com o pseudônimo de "Q" e há mesmo na sua obra um volume de histórias de mistérios assinado apenas com aquela inicial.

Quiller Couch é também bastante conhecido como escritor politico, tendo por várias vezes tratado dos negócios do seu país, que conhece a fundo. Possuindo uma vasta cultura humanista, é colaborador dos principais magazines da Inglaterra. A sua apresentação literária ao público deu-se com o romance "Dead Man’s Rock", em 1887.


Fonte:
Araújo Nabuco (seleção e notas). Livro de Natal. Livraria Martins Editora, 1955.

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