terça-feira, 17 de setembro de 2013

Célio Simões * (O Extraordinário Miguel Venâncio)

  
  Quando definitivamente passei a residir em Belém, o Miguel era um atleta de futebol, mas ainda não havia sido promovido a rei. Contentava-se nos desfiles de sete de setembro com o título de imperador, réplica improvisada de Dom Pedro I, aquele um que às margens do tal riacho Ipiranga, mais estreito que o córrego do Curuçambá ou do Irurá, desembainhou a espada e proclamou a independência do Brasil, tantos eram os abusos da Corte Portuguesa contra suas colônias, num processo predatório que se ao mesmo tempo garantiu a integridade do território nacional, por outro lado carregou para Lisboa e de lá direto para a Inglaterra, grande parte das nossas reservas auríferas, ainda por cima esmagando o povo com impostos escorchantes. Vem de lá, penso eu, nossa sobrecarga tributária, uma das mais desumanas do mundo. Sorte que não descobriram Serra Pelada ou as minas de Carajás, caso contrário, o sacrifício de Tiradentes teria sido um gesto inútil.

    Inexistia e aí falo do tempo que morei na Cidade Presépio, um único evento que não contasse com a participação do Miguel Venâncio, devidamente caracterizado, a compatibilizar a personagem com a comemoração. Se na data magna da nacionalidade, lá vinha ele cavalgando seu ginete, encarnando nosso libertador político. Se no carnaval do mascarado fobó, preferia trajar-se de Zorro, capa preta, máscara e espada reluzente, a duelar ao som das marchinhas com seu amistoso antagonista, o excelente zagueiro do Paraense Esporte Clube cujo apelido – Canela de Vidro – dá bem uma ideia de quanto sofriam os atacantes adversários em uma peleja no antigo Estádio General Rego Barros.

    Guardadas as devidas proporções, Miguel me lembra um sujeito que morava em Marabá quando lá trabalhei no ano de 1969. O nome o tempo apagou. Suas presepadas não. Nas festas juninas, era o mais animado nas “quadrilhas”, nas quais rebolava vestido de mulher, braço dado com seu cavalheiro, ambos em trajes caipiras. No carnaval, instalava-se principescamente sobre um carro alegórico, com indumentária e adereços que lembravam Clóvis Bornay; na pungente “Procissão do Encontro”, que marca o ápice da Semana Santa, lá estava ele pregado na cruz, coroa de espinhos na cabeça, sangue de mentirinha escorrendo dos ferros cravados nos pés, mãos e do golpe na costela, fazendo o papel de Jesus Cristo. Alfaiate habilidoso, produzia suas próprias vestimentas e adereços. Era fato público sua excentricidade, aspecto que não lhe empanava a criatividade, justo porque o talento e a arte independem de orientação sexual.

    O Venâncio, todos o sabem, jogava no time dos aprimoradores da eugenia masculina, mesmo quando pulava o carnaval vestido de baiana. Ademais, suas personagens e modo de vida assim o demonstravam. Dos que anualmente se entregavam à folia na antiga Praça do Quartel, onde os blocos explodem em animação num dos mais badalados carnavais do interior paraense, sempre ele caprichava nas fantasias e se destacava nos desfiles encantando platéias embasbacadas com seu vigor físico, conquanto já tivesse ultrapassado os setenta anos. E se o cortejo extravasa os limites da praça para exibir-se pela cidade, lá ia o lépido setentão subindo as ladeiras da velha Pauxis, como um adolescente ainda na flor da juventude.

    Incentivado para sobre ele escrever, fiquei inicialmente sem elementos factuais para fazê-lo, buscando na memória as magníficas performances nas efemérides em que testemunhei seu desempenho. Salvo engano, além de vigoroso futebolista, que atuava no gramado com o calção amarrado um palmo acima do estômago, sempre foi pessoa pacífica, cordata, gente fina, simpática a seus conterrâneos em especial pelo seu inegável carisma. Seus momentos de hostilidade ele os guardava para os duelos de faz-de-conta que antes me reportei e destes não admitia sair derrotado; na quadra carnavalesca, qualquer que seja o antagonista ele os enfrentava de forma destemida, em implacáveis batalhas de confetes, propiciando shows que definitivamente o elevaram ao patamar de grande figura popular.

    Em 2008 tive uma grata surpresa e constatei seu especial pendor para viver de bem com a vida. Festa de Sant´Ana dia 26 de Julho, cliper da praça botando gente pelo ladrão, após a gritaria infernal do leilão teve início o arrasta-pé no acanhado espaço reservado a essa finalidade. Vi pares conhecidos, outros nem tanto, caboclo de Oriximiná dançando como se estivesse no mafuá do “Macaxeira” e lá pelas tantas surgiu o Miguel Venâncio. Pávulo, sestroso e pândego, materializou-se dançando sozinho. Mas sua dança não era algo comum, como estamos acostumados a ver. O Miguel dançava com ele mesmo, inventava passos que desafiavam o equilíbrio corporal, transmudava sua imagem em moldura superposta que dele se libertava para petrificar-se longe do dono e a ele retornava em fraterna união entre criador e criatura. Sua postura rítmica dava aos movimentos que inventava um significado estético de perenidade, em continuada comunhão com a música, pernas trançadas em incrível geometria, olhar de conquistador, chamando para esse jogo de habilidades sua parceira, uma senhora que atendia aos compassos da música com a mesma disposição com que ingeria generosas doses da “água que passarinho não bebe”, até tombar derreada no duro piso do salão sob o avantajado peso do corpo. Um show à parte!

Em homenagem a Momo, o Miguel protagonizou várias personalidades, dentro do escorreito feitio de sua fértil imaginação. Não só da história universal, como daquelas diretamente ligados à conquista da Amazônia e do Rio Amazonas, que ele se ufanava de haver nascido às margens e conhecer como poucos.

Já se trajara de Vasco da Gama e de Francisco de Orelana. Alguém lhe disse que este foi companheiro dos Pizarro, que representando os espanhóis conquistaram o Peru pelo Oceano Pacífico, assenhoreando-se da planície por força do tratado de Tordesilhas, chegando a Quito e de lá até a Europa, dando nome ao grande rio. Também de Pedro Teixeira, que fez o trajeto em sentido contrário, do Atlântico até os Andes, plantando nos pontos estratégicos do grande rio os fortes para a defesa do território, misturando fortalezas militares com missões religiosas, traçando definitivamente na Amazônia o contorno lusitano, aceito como fato consumado após a separação das coroas ibéricas, formalizada no século XVIII pelo princípio do uti possidetis, nos tratados de Madri e Santo Ildefonso. Isto sem esquecer de Raposo Tavares, com seu imenso chapéu por ele mesmo confeccionado, esse admirável bandeirante que partindo de São Paulo pelo planalto central, subiu os vales dos rios Paraná e Paraguai, atingiu o Amazonas navegando o Rio Madeira, tendo como destino a cidade de Gurupá, antecipando-se em 250 anos à mesma trajetória feita pelo General Cândido Rondon. Miguel, pelas condições financeiras modestíssima em que viveu, nunca incursionou pelos livros de História. Apenas ouvia as estórias. 

    Sua imaginação era espantosa para sua baixa escolaridade. Dizem que sua pesquisa, aleatória e superficial, era realizada durante o ano todo, em opiniões de amigos, livros e revistas emprestados, a partir dos quais decidia como seria sua fantasia no carnaval do ano subseqüente. Orelana, os Pizarro, Pedro Teixeira, Raposo Tavares, Rondon qualquer desses andarilhos incomparáveis, o que interessava mesmo era o deleite de cada comemoração onde pontificava sua imaginação delirante e seu espírito inovador. Carpinteiro por profissão, seresteiro, exímio tocador de banjo, daqueles que não enjeitava uma roda de samba, na verdade eu o reputava um artista popular de muitos méritos, que a todos encantava com suas performances, enquanto seguia extraindo da vida o que ela tinha de melhor - a construção de um largo círculo de admiradores, que dele virou público cativo por aquele hábil sapateado festeiro cuja extravagância mereceu do compositor paraense Eduardo Dias expressa referência numa de suas excelentes músicas.   

    Na folia de 2009 o Miguel novamente abrilhantou os blocos de rua em que desfilou. Restou inconteste sua habilidade na produção da própria fantasia, se é que ele próprio não viveu num mundo de fantasia, só existente nos recônditos de sua imaginação. Não há como negar que à sua maneira, com seu jeito especial no apogeu dos seus setenta anos, esse inteligente ribeirinho nos propiciava uma lição de muito proveito. Protagonista de sua própria existência, ele levou a vida como brincava o carnaval e brincava o carnaval como levou a vida: com leveza, criatividade, descontração e felicidade - nem aí para os que se arvoram a criticá-lo.

    Finalmente, o Miguel Venâncio nos deixou. Sujeito teimoso, recusou-se a se submeter a uma prosaica cirurgia para curar-se de uma hérnia. A par do meu profundo lamento, sinto na alma o conforto de tê-lo condecorado ainda em vida, em Julho/2010, com a Medalha “Cidade Presépio”, da Academia de Letras de Óbidos (quando eu a presidia), troféu destinado a premiar os filhos da terra que contribuíram para a preservação e o resgate do folclore e das tradições culturais do nosso Município, o que ele fez a vida toda. Na sessão solene de entrega, vi seus olhos brilharem de felicidade. Agradeceu-me comovido, dizendo que guardaria a preciosa láurea para mostrar aos parentes, netos e bisnetos, confessando-me ser o primeiro e único reconhecimento oficial que recebera durante toda sua existência. 

    Ficamos sem Miguel Venâncio. E o samba, o lundu, a desfeiteira, as serestas, os folguedos juninos e o carnaval, sem o extraordinário protagonista que hoje deve estar empenhado em animar o suave ambiente da corte celeste, pois na terra não fez outra coisa enquanto viveu.
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(*) Advogado. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IGTap) e da Academia Paraense de Jornalismo.


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