sábado, 8 de maio de 2021

Olavo Bilac (Os óculos)

O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice...

Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.

A bela Clarice!... É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela mingua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso vai dizendo que não sabe... que não compreende... porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha...

E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.

Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda... Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto... De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo... abaixo... abaixo do ventre?... Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente... nas coxas...

O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:

— Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?

E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como n’uma nuvem, balbucia, corando:

— Não! Não é nada... não sei... isto é... talvez seja dos óculos do João…

Fonte:
Bob (Olavo Bilac). Contos para velhos. Belém/PA: UNAMA.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 2

MEU NINHO

"Meu bem é para mim
um ramalhete de mirra,
que repousa entre meus
seios."(Ct, 1.13)


Inocente e puro
Como um serafim*,
Encontrei amor
Em gentil menina;
Bem feliz eu posso
Te dizer, enfim:
"Como é bom te amar,
Minha estrela alpina*!"

E chegou a noite
Pra cobrir a terra,
Com seu manto negro
Sem nenhum luar;
Um segredo afável
A minh'alma encerra:
"Tem razão a vida,
Se eu puder te amar!"

Meu olhar se encanta
Com real candura,
Eu te vejo em graça,
Qual do lírio o odor;
Com beleza tanta
E com tal doçura,
Eu queria, apenas,
Ser teu beija-flor.

Ser teu beija-flor
- Servo pequenino -
Pra, com jeito, dar
Afeições às pétalas...
E da flor mais bela
Ganharia um mimo...
E teria o gosto
De sugar teu néctar*.

A minh'alma, agora,
Já prevê descanso
No jardim sereno
Do oriental Sinear*...
Foi tu'alma amiga
Meu maior remanso*,
Onde eu fiz meu ninho
Para eu morar...

De emoção sobeja*,
Soluçar no peito,
Qual saudoso canto
De gentil jaó*...
Este ninho meu
É o sonhado leito...
Estarei feliz
Eu contigo só...
___________________________________

ÚLTIMO OLHAR
"Tu me fazes delirar com um só
dos teus olhares."(Ct, 4.9)


Ó flor mimosa de pele clara,
De andar gracioso e espírito ardente,
Vejo-te sempre ao cair da tarde,
Na mesma hora do sol poente.

Caminhas, meiga, pela calçada,
Levando afeto no coração;
Queria ser companheiro amigo
Pra dissipar tua solidão.

Carregas tanto, tanto pudor,
Que a elegância te é um presente;
Ninguém percebe que estás passando,
Mas eu, parado, te vejo sempre.

Muito tranquila, só na aparência,
Pela calçada vais caminhando;
Leva o destino ao lado oposto
A doce musa que está amando.

Quando aproximas daquela esquina,
Com ansiedade queres voltar;
Contendo o impulso, ao dobrar a rua,
Volves pra dar o último olhar.

Jamais me esqueço daqueles olhos,
Que bem me olharam em fugaz momento;
Ali, parado, fico sonhando,
Sem perceber que foste com o vento.

E vais descendo ladeira abaixo,
No rumo triste da solidão...
Tanto queria conter-te a lágrima
Pra não molhardes teu lenço em vão.
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Vocabulário do poeta:
Estrela Alpina: Nome de uma flor da cadeia de montanhas dos Alpes,
situada na Europa.
Jaó: Pássaro de canto nosstálgico.
Néctar: Suco adocicado de algumas plantas. Bebida dos deuses.
Fig.: Delícia, encanto, refrigério.
Remanso: Descanso, quietude, sossego, tranquilidade.
Serafim: Anjo da primeira hierarquia celeste.
Sinear: Região da antiga Caldeia (Oriente Médio).
Sobejo: Demasiado, excessivo, em demasia.

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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. 
Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

João do Rio (Uma mulher excepcional)

– Está a brincar!

– Sério. É irrevogável. Preciso um pouco de ar, um pouco de descanso, de repouso, de sossego. A vida desta cidade ataca-me muito os nervos…

Era no salão de Irene de Souza, o salão em que a esplêndida atriz fundira o confortável inglês com o luxo do antigo, espalhando entre os divãs fartos da casa Mapple, bergeres mais ou menos autênticas do século XVIII, contadores do tempo de Carlos V, e por cima das mesas, por cima dos móveis, nos porta-bugigangas de luxo, marfins orientais, esmaltes árabes, estatuetas raras, fotografias com dedicatórias notáveis. Irene de pé, diante da secretária, sorria, estendendo-me as duas mãos finas, nervosas, enquanto os seus dois grandes olhos ardiam mais loucos e mais passionais.

Irene de Souza! Que legenda e que beleza! Os seus inimigos asseguravam-na apanhada como criada de servir perto de um quartel para os lados de S. Cristóvão; outros diziam-na filha de uma família muito distinta do Sul. Ao certo porém ninguém sabia senão aquela aparição brusca no teatro, bela como a Vênus de Médicis, a arrastar nos decadentes tablados cariocas vestidos de muitos bilhetes de mil, criados pelo Paquin e pelo Ruff. Não era uma pequena qualquer. Era a bela Irene de Souza que queria ser a boa, a humilde, a simpática, a talentosa Irene. A critica fora jantar a sua "vila" de Copacabana, onde Irene, ao nascer do sol, num regime essencialmente esportivo, fazia duas horas de bicicleta e sessenta minutos de natação. E a critica suportara o seu companheiro Agostinho Azambuja, empreiteiro, rico, casado; a crítica elogiara Irene, e de chofre todas as atrizes, todos os cabotinos sentiram-se diminuídos lendo no cartaz, em grossas letras, o nome de Irene en vedette, de Irene repentinamente footlight. Ela continuava tão boa porém, tão amiga, tão simples, tão séria… Tão séria? Deram-lhe todos os amantes imagináveis em vão, por vingança afirmaram que os seus dentes como os seus sapatos eram feitos em Paris, emprestaram-lhe instintos perversos, e foi célebre a frase de um jornalistinha desprezado: De pé é a Vênus de Médicis, deitada é a Vênus Andrógina. Mas Irene mostrava o claro fio da dentadura com uma despreocupação tal, tratava tão camarariamente os homens que a calúnia tombou.

De resto Agostinho Azambuja tinha uma confiança muito elegante. A lenda era esse homem vulgar, possuído de uma paixão devoradora, agarra uma pobre rapariga no mais relés alcouce (prostíbulo) e fizera-a uma obra sua para dominar a cidade, uma mulher perfeita, falando quatro ou cinco línguas, conhecendo música, vibrante de arte e de elegância que é a arte de ser sempre a tentação. Mas a paixão, o ciúme, esses paroxismos fatais de quem quer muito bem, Azambuja encobria-os numa serenidade de bom tom, talvez mesmo para Irene, deixando-a sair só, não lhe perguntando nunca de onde viera, recebendo na própria casa os apaixonados que a ela poderiam ser úteis para o reclamo, colocando-a numa posição verdadeiramente superior, sem esquecer o lado prático porque lhe assegurava o futuro, comprava-lhe casas, joias.

No dia em que correu ter o Azambuja presenteado Irene com uma baixela de ouro lavrado, herdada do avô, um vago judeu argentário, as mulheres tiveram a certeza da superioridade da rival, e foi notada a resposta do Azambuja a Etelvina, primeira ingênua casada e adúltera da companhia:

– Minha filha, já não estou na idade de satisfazer os caprichos de uma mulher. A Irene quem a fez tal qual fui eu. Vivo do orgulho que ela me dá. É o meu chic.

– E se o trair?

– Tem bastante espírito para o não fazer, e lucrarias mais se fosses sua amiga.

Mas isso é que ninguém concebia: a Irene sem enganar o Azambuja. Afinal era uma rapariga de vinte e cinco anos, um verão ardentíssimo, uma beleza que chamava paixões! Muita vez no seu camarim, forrado de seda cor-de-rosa, faziam-se comentários.

– Mas não ama o velho Agostinho?

– Está claro que não o posso amar como Julieta a Romeu. Há uma grande diferença de idades. Mas respeito-o e sou-lhe grata. É quanto basta. Eis a razão por que resisti a princípio e hoje sou invulnerável.

– Francamente?

– Deve compreender que seria muito parva se fosse perturbar a minha vida e a beleza que vocês proclamam com uma paixão. Ora só a paixão poderia influir. Essa não vem, não vem, e não virá nunca. Conheço os homens.

De fato, tinha razão. Como o seu sorriso tomava-se cortante, as narinas palpitavam e com o seu ar de Diana à caça, ela permitia-se abraços e beijos com as companheiras, mais falsas que a onda, logo se formou irrevogável a legenda.

– Irene? Amantes não… A Irene procura alguém de quem o Azambuja não tenha ciúmes. Lembrar-te da frase do Gomide?

A legenda foi mesmo tão espalhada que súbitas ternuras apareceram, e alguns camarotes eram insistentemente ocupados pelas mesmas damas nas noites das suas representações, e vários convites surgiram para tê-la na companhia de senhoras bem cotadas.

– És uma criatura imperfeita, disse-lhe eu um dia.

– Por quê?

– Porque não amas o amor. Lembra-te dos versos do Poeta:

Que os vossos corações aprendam a viver,
Amando o amor, amando a perfeição,
A perfeição da alma que nos traz o prazer
Supremo e a suprema ilusão!


Ela suspirou, tristemente.

– Se é assim? Que hei de eu fazer? Mas que romântico, Deus!

E todos nós, jantando nas suas pratas, escrevendo a respeito do seu talento, tínhamos aceitado o caso como definitivo. Até Irene mesmo, mostrando predileções excessivas, parecia sossegar com a esquisita calúnia e mostrava uma alegria, uma imensa satisfação na vida. De modo que aquela partida brusca, após seu último sucesso agradável numa comédia inglesa, era de desnortear.

Ao saber a resolução pelo velho Azambuja na rua, eu tomara um tílburi, interessado como diante da saída de um ministro, e estava ali, interrogando-a, no meio da desordem do salão, onde havia malas, chapéus, plumas e um intenso cheiro de heliotropo.

– Mas por que partir, Irene?

– Porque é preciso.

– Uma briga com o Azambuja? Não? Aquele ataque da Suzana Serny? Também não? Então? Querem ver que afinal tem uma paixão?

Irene sorriu, no seu quimono rosa, guarnecido de uma leve renda antiga.

– Paixão? Sabe o que estava a fazer, quando entrou? Estava a limpar a secretária, a rasgar declarações amorosas e a atirá-las para este cesto. Tudo quanto está vendo nesta secretária, tudo quanto vê neste cesto – é paixão!

Recuei assombrado. Nunca tinha visto tanta paixão reunida e um sorriso tão destruidor nos lábios de Irene.

– Oh! não se assuste! Essa paixão é uma das faces do meu amor ao teatro. O Azambuja sabe e, às vezes, lê as cartas comigo. Guardo os artigos de jornal num álbum e a chama amorosa na secretária. Algumas ainda não li, mas foi por falta de tempo…

– Cruel!

– Oh! É lá possível ler tudo quanto a tolice humana escreve? Recebo as cartas de bom humor porque é impossível zangar, e acabo considerando-as a homenagem anônima, uma espécie de palmas num teatro cheio. Quer lê-las?

Uma ansiedade invadiu-me.

– Irene, nunca amou? Francamente? Posso ler todas, todas?

– Todas, fez ela. Sem receio. Divirta-se! Eu vou mandar fazer um pouco de chá, feito da flor, enviado diretamente da China para um inglês rico que me adorou em vão.

Ergueu-se. Houve um deslocamento de perfumes. A meus pés o cesto abria a fauce (goela) abarrotada; diante das minhas mãos a secretária escancarava-se. Hesitei, olhei-a, não resisti.

Ah! o estranho capitulo de psicologia, a irritável página de análise! Daquela papelada subia como uma fúria de paixão, de doença, de loucura. Havia mais de quinhentas cartas, havia mais de mil postais e nesses quadriláteros de papel ardia um arco-íris passional desde a chama roxa da melancolia à chama rosa do amor precoce. A primeira carta que abri tinha ao canto um passarinho voando, e começava assim: "D. Irene, queira desculpar, ao receber esta mal traçadas linhas que lhe envio do Internato. Tenho quinze anos e vi-a ontem. Como é bonita!"

– Conheceu?

– Nunca o vi. Pobre pequeno! Do seu primeiro amor não guardará ao menos más recordações.

– Cá tenho outro: "Senhora. As horas fogem e a esperança fica. Quem a chamou de feia e a senhora não sabe quem é."

– Quantos nestas condições! Vá vendo…

Eu ia com efeito vendo. Peguei de outro: "Adeus, flor da minha vida! E que nas outras cidades deixe os mesmos corações despedaçados. – Maníaco."

– Este confessa-se maluco!

– O que não fazem os outros…

Mas as tolices, os gritos de paixão, que são sempre ridículos, não acabavam mais. Eu lia versos, lia pensamentos patetas, via toda a palpitação ingênua do coração dos homens; ameaças de suicídio, ofertas de dinheiro, descrições de vida futura, pedidos de uma humildade de rafeiro, agonias com erros de português, máximas idiotas e generosas: "A amizade da mulher tem um encanto mais suave do que a do homem: é ativa, vigilante, terna e durável", graças nevrálgicas de palhaço amoroso. Deus! O amor, que dolorosa moléstia… eu não sei por que um nervosismo incompreensível fazia-me trêmulos os dedos, eu procurava com ânsia, humilhado, espezinhado, como se fosse responsável por todas as sandices do meu fraco sexo.

– A carta anônima é às vezes melhor que a carta de amor!

– Sabe que teve um pensamento?

– Como os que acabou de ler?

– Não, um pensamento diamantino.

– Pois venha tomar chá.

A criada servia, com efeito, o chá num lindo "tête-à-tête" de porcelana com guarnições en vermeille. A encantadora Irene parada; os seus olhos pareciam levemente inquietos. Eu continuava a remexer a secretária. Uma das missivas era enorme. Abri-a. "Peço a V. Ex. que me perdoe a ousadia, e, genuflexo, reclamo o seu carinho para os queixumes de um coração sofredor. Não sei fazer poesia, sou imensamente avesso às flores de retórica e suponho que não me igualarei ao gorjeio dos rouxinóis ou às asas das borboletas inquietas…"

– Basta! Basta! fez Irene, tapando os ouvidos.

– É a paixão.

– Venha antes tomar chá. Olhe a frase de Ibsen, na Comédia do Amor: O amor é como o chá. Bebamo-lo!

– Ah! minha querida! Como os homens são idiotas! Essa mania de escrever cartas de amor é bem o sintoma de inferioridade. Se eles soubessem o fim das suas letras e o pouco caso que delas fazem as mulheres. Ainda não tive amante que com ela não rasgasse as cartas dos que me tinham precedido.

– Era uma afirmação de que pelo menos no momento não o enganavam.

– Quem sabe?

Ela sorria com a chávena na mão. Era realmente bela. Toda de rosa, naquele quimono de seda, lembrava uma flor maravilhosa, uma flor de lenda, inacessível aos mortais. Eu compreendia a futilidade, a tolice, a miséria lamentável dos homens, diante da sedução de Vênus Vingadora, da Vênus que não se entregara nunca, e era honesta sem amantes, sem crimes, sem calunias…

Mas por que ia ela para a Europa? Por que me humilhava com aquela intimidade de correspondência aberta? Por quê? Os meus dedos encontraram uma gaveta. Abri-a. Nunca a linda Irene de Souza amara um homem! Era honesta, era o polo do desejo! Ah! não… várias cartas. Apanho uma ao acaso. Um selo italiano. Tirei-a do invólucro: "Cruel. Hei de matar-te se alguma vez te encontrar ajeito. Não me quiseste e eu peno, peno há cinco anos. Conto que ainda hei de ver o teu sorriso indiferente, 6 8,6 8, oitavo do século, no mesmo lugar. Preciso muito…"

Não continuei.

– E olhe que tem também um doido.

– Palavra?

– Um sujeito que está na Itália, ao que parece. Fala do número 8, chama-a cruel.

– E eu que ainda não tinha lido! Com efeito. E curioso. E assina-se César! Não faz coleção de selos? A filatelia está em moda.

– Como todas as parvoices inofensivas. Ainda lá não cheguei.

Depois, parei. Ela estava preocupada, séria, um tanto fria talvez. Decididamente aborrecia a bela Irene de Souza. E era de compreender. Irene preparava a sua partida, desejava estar só. Curvei-me.

– Adeus, então. Seja mais humana lá fora.

– Eu? Com os espias e as agências de informação pagas pelo Azambuja? Da última vez que estive em Paris, Azambuja mostrou-me um dossiê tão copioso que eu pensei no Affaire Dreyffus. Qual, meu amigo, sou invulnerável. E rindo alegremente: já se vê que pour cause

Saí varado, porque afinal não há nada mais impertinente do que encontrar realmente honesta uma mulher que não tem o direito de o ser, e indo pela Avenida Beira-Mar a matutar naquela criatura excepcional encontrei o velho Justino Pereira, a passear também.

– Poesia?

– Não, ideias. Venho da casa da Irene.

– Boa pega!

– Oh! não, um espírito prático, incapaz de amar. Mostrou-me verdadeiras cascatas de amor.

– As mulheres nunca mostram todas as cartas. É o seu grande trunfo.

– Velho cético!

– Mesmo porque há cartas que os maridos e os amantes podem ler, cartas desvairadas, sem sentido… Que cara a tua! Pareces criança. Pois meu tolo basta uma combinação prévia, basta uma chave do sentido oculto. Por exemplo: Hei de matar-me. Tradução: Não deixes de vir. Peno há cinco anos. Tradução: Preciso de dinheiro.

– Ora o fantasista! Não me vai dizer que a Irene tem amantes.

– E se disser que tem mesmo uma espécie de gigolô, a quem sustenta?

Indignado, como se fosse uma questão de honra pessoal, estaquei.

– Sr. Justino Pereira, nada de calúnias. Irene está acima de maledicência. O senhor calunia e é pelo menos incapaz de nomear o tal gigolô.

– Oh! filho, fez Justino a sorrir. Soube-o por um acaso, não tenho que guardar. É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo, chama-se Victorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália.

Como me visse pálido, aturdido, sem saber o motivo daquela emoção,
sem saber que como um imbecil eu tivera a carta na mão:

– Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da aparência…

E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite. Publicado em 1910.

Estante de Livros (Mayombe, de Pepetela)

Mayombe é um romance do escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela.

Segundo Pepetela, Mayombe começou a ser escrito como um comunicado de guerra em 1970. A primeira versão, publicada em 1980, rendeu ao escritor o Prêmio Nacional de Literatura de Angola.

Além disso, pela primeira vez um autor africano faz parte das leituras obrigatórias do vestibular da Fuvest, sistema de seleção da Universidade de São Paulo.

Mayombe é o nome referente a uma região da África Ocidental e no livro trata-se de uma floresta.

PERSONAGENS

Mesmo a obra tendo o Comandante Sem Medo no foco de toda a narrativa, o livro não tem especificamente um protagonista.

Isto acontece porque a cada ação o foco fica em uma pessoa diferente. Até a própria floresta Mayombe surge em momentos exclusivos.

Os personagens não são identificados por nomes, mas por pseudônimos referentes as suas características e importância dentro da história.

Teoria: professor da base MPLA e filho de uma africana com um português.

Comissário: um dos líderes políticos do MPLA chamado João.

Chefe de Operações: um dos líderes do MPLA.

Comandante Sem Medo: o comandante do MPLA.

Lutamos: guerrilheiro do MPLA.

Ingratidão do Tuga: guerrilheiro do MPLA.

Vewê: guerrilheiro do MPLA.

Mundo Novo: guerrilheiro do MPLA.

André: responsável em conseguir os alimentos para a base e primo do comandante.

Ondina: professora e noiva do comissário.

 ESTRUTURA DA OBRA

Mayombe é estruturado em seis capítulos:
A missão ; A base; Ondina; A surucucu; A amoreira; Epílogo

RESUMO

O enredo se passa em um floresta chamada Mayombe, na região de Cabinda, em Angola, e a cidade de Dolisie, na república do Congo.

1 – A MISSÃO

O primeiro capitulo de título “A missão” começa com a chegada dos guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação por Angola).

A história situa-se na Guerra de Independência de Angola, em que os guerrilheiros angolanos lutaram contra os colonizadores portugueses ente 1961 e 1974.

O MPLA era um movimento de orientação marxista-leninista, o qual Pepetela também fazia parte. O intuito era livrar a Angola da exploração portuguesa e politizar os trabalhadores angolanos.

Para interromper a exploração de madeira feita pelos portugueses, os guerrilheiros invadiram, quebraram as máquinas, tomaram equipamentos e sequestraram os funcionários.

Mas o movimento não tinha o intuito de feri-los, pois também eram conterrâneos. Apenas explicaram a exploração de Portugal e os libertaram em seguida.

Contudo, o MPLA passou a não ser  bem visto após um dos trabalhadores libertos ter  seu dinheiro roubado, criando  uma crise no grupo.

Para mobilizar o povo, o Comandante Sem Medo organiza uma missão em ataque ao portugueses e vence. Então, descobrem que o guerrilheiro Ingratidão foi quem roubou o dinheiro. Ele é preso.

2 – A BASE

A base é formada no interior da floresta Mayombe e outros oitos guerrilheiros novos chegam. O capítulo descreve Mayombe como uma entidade e viva.

Nessa parte do livro são evidenciados os conflitos e as divergências dentro do próprio movimento, especificamente entre as ideias do Comissário e do Comandante Sem Medo. No entanto, os conflitos são resolvidos.

A falta de mantimentos é outro problema que aparece na base, então o Comandante Sem Medo pede auxílio ao primo André para enviar alimentos. O Comandante fica incomodado, pois a quantidade enviada pelo primo somente supria os guerrilheiros por alguns dias.

Além disso, no capítulo “A base”, o autor narra o seu cotidiano e os ensinamentos do professor do grupo, Teoria.

3– ONDINA

O terceiro capítulo recebe o nome da noiva do comissário, Ondina. Professora que lecionava na cidade de Dolisie, fingia sentir atração pelo noivo.

Enquanto isso, a base sofria com a falta de mantimentos, além dos desentendimentos entre os chefes e os guerrilheiros que cresciam cada vez mais.

Comissário já tinha ideia de tirar o André da sua posição, o que acentuou após ele ser pego com Ondina.

Então, Ondina deixa uma carta para o Comissário dizendo que irá deixar a cidade e o comissário narra a sua relação com ela.

Enquanto que André, por ser de tribos diferentes (Kikongo e Kimbundo), vai a julgamento em Brazaville pelo ato desonroso.

É nesse capítulo também que o guerrilheiro Ingratidão foge da base e os guerrilheiros descobrem que os portugueses instalaram uma nas proximidades do MPLA.

4– A SURUCUCU

Grande parte desse capítulo está voltado para a preparação e estratégias do MPLA. Após suposto ataque dos portugueses (Tugas) a base de guerrilheiros, o Comandante planeja uma contra-ataque.

E o grupo se divide em dois, sendo um liderado pelo Comandante Sem Medo que foi pelo Rio e o outro pelo Chefe de Operações que foi pelas montanhas.

Mas ao encontrar Teoria, descobrem que foi um engano, pois o mesmo tinha visto uma surucucu e atirado nela. E após Vewê, um dos companheiros que ouviu o tiro, se desespera e corre para pedir ajuda.

Contudo, o Comandante Sem Medo ainda planeja estratégias para o combate a base portuguesa, pois o mesmo sabe que mais cedo ou mais tarde Mayombe será descoberta por eles.

Vale ressaltar que nesse capitulo, Comandante Sem Medo começa a se envolver com Ondina. E eles conversa sobre a liberdade e o papel da mulher.  

5– A AMOREIRA

No quinto capítulo, o Comandante Sem Medo é transferido para o Leste e Mundo Novo assume seu posto. Enquanto que o Comissário foi encarregado de chefiar o ataque a base dos Tugas, no Pau Caído.

Até um certo momento, a missão foi bem sucedida, já que os guerrilheiros conseguiram adentrar  no território da base portuguesa. Em consequência, Comandante Sem Medo e Lutamos são mortos no ataque, e outros guerrilheiros saíram feridos.

O nome do capítulo “A amoreira” é devido ao pensamento do comandante antes de morrer. Para ele (Comandante), a amoreira tem um único tronco, assim como os homens. Ele e Lutamos foram enterrados ao pé de uma amoreira.

 O Comissário foi salvo, mesmo sendo da tribo Kimbundo, por dois homens de duas tribos diferentes: Cabinda e Kikongo. Eles conseguiram superar as diferenças étnicas.

6– EPÍLOGO

Por fim, após a morte do Comandante Sem Medo, o Comissário é enviado ao leste para assumir o posto do Comandante.

O Comissário também começa a refletir sobre a morte do Sem Medo.

ANÁLISE DA OBRA

O livro caracteriza-se como  reportagem ou texto documental porque trata da rotina e das lutas entre os guerrilheiros da MPLA e as tropas portuguesas.

Além disso, o autor não fala apenas das diferenças entre angolanos e portugueses, mas discute também os conflitos individuais, pessoais e entre as tribos angolanas diferentes.

Mayombe é narrado em primeira e terceira pessoa, pois há vários momentos em que os guerrilheiros fazem seus relatos. Contudo, é predominante a presença do narrador em terceira pessoa, narrador onipresente e onisciente.

Mayombe tem uma linguagem polifônica e o tempo de narrativa é cronológica, apresentando um certa linearidade as ações.

O Movimento Popular de Liberdade por Angola realmente existiu, sendo o autor um dos militantes.  Mesmo depois da libertação, ocorreu uma guerra civil que dividiu o país.

PERSONIFICAÇÃO E INTERTEXTUALIDADE

Pepetela mostra no livro a intertextualidade e  personificação definida  pela narração.

Personificação por atribuir características humanas a coisas, como é o caso da floresta Mayombe, dita pelo autor como um mãe para os guerrilheiros (abriga, mas também provoca desafios).

Já a intertextualidade é usada a fim de valorizar a bravura dos guerrilheiros.  Pepetela faz uso da mitologia grega com o Mito de Prometeu, uma tragédia grega para reforçar esta ideia. Os homens são caracterizados de Prometeu e Mayombe como o Zeus.

TRECHOS DA OBRA

Capítulo “A missão”

“Eu, O Narrador, Sou Teoria.
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.”

 
Epílogo

    “O Narrador Sou Eu, O Comissário Político.
A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. Só me apercebi do que perdera (talvez o meu reflexo dez anos projetado à frente), quando o inevitável se deu.

Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele próprio, teria de ficar ali, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo o caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia”.


Baixe o livro em:
https://farofafilosofica.files.wordpress.com/2016/10/mayombe-livro-pepetela.pdf

Fonte:
Mayombe. Disponível em Guia Estudo . Acesso em 08/05/2021.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Adega de Versos 19: Silmar Böhrer

 


Célio Simões (Lá vem o morto!...)

Dico era um caboclo prestativo, bem mandado, de fala mansa, que nasceu, se criou, viveu intensamente a sua época e finalmente morreu no Paraná de Baixo, uma região longínqua e desabitada do Baixo Amazonas.

Foi dessas criaturas por demais comuns, sem nada mesmo de especial, que acatava ordens sem obtemperar ou mesmo questionar se eram ou não justas ou se dadas por um adulto, uma criança, um conhecido ou desconhecido.

Era, enfim, como as brisas de verão, alma sem fel e sem malícia, dos que passam pela vida satisfeitos com sua própria desimportância, onde todos estão acima e além dele na escala social. Não tinha mulher, filhos ou parentes próximos e a maioria das criaturas que o conheciam nada sabiam contar a seu respeito, além de que era bem mandado, prestativo e de fala mansa...

Sem algo para marcar sua passagem por esta vida, o destino incumbiu-se de imortalizá-lo, com a confusão que involuntariamente armou por ocasião de seu próprio sepultamento.

Havia suspeitas generalizadas de que o Mundico (daí o apelido de “Dico”) não emplacava o ano seguinte, pois estava muito velho, doente e abandonado à própria sorte, na barraca de aspecto favelar que o abrigara por tanto tempo. E para consternação de todos, um dia chegou a esperada notícia de seu falecimento. Dois vizinhos mais próximos, condoídos pela sua extrema penúria, resolveram propiciar-lhe um enterro digno no cemitério da cidade e não no terreiro do sítio, prática muito comum naqueles tempos. Movidos por esse nobre sentimento, resolveram agir.

Arranjaram uma igarité, estivaram o morto ao fundo sobre umas tábuas, acenderam uma vela próxima à cabeça em sinal de respeito, cobriram o corpo com um lençol branco e... tome remo na direção de Óbidos, onde seria feita a inumação no cemitério local.

O esforço de vencer a brutal correnteza durou a manhã toda, sob um sol escaldante. O Amazonas é um rio de superlativos. É o maior do mundo, com seus 6.868 km de comprimento e mais de mil afluentes que o tornam a mais vasta bacia hidrográfica do planeta, superior a 7 milhões de km² que banha a floresta latifoliada. Seu gigantismo amedronta pelo volume e agitação de suas águas. A vazão rumo ao mar alcança 200.000 m³ por segundo, ficando a parte mais estreita e profunda em frente à cidade de Óbidos, no Estado do Pará.

Foi nesse universo líquido que a tarde chegou e os dois piedosos amigos do finado Dico, um remando na proa e outro na popa da embarcação, começaram a acusar o peso do esforço físico. O corpo latejava. Afinal não era nada mole vencer o remanso sob aquele calor descomunal e além de tudo levando a bordo um homem que já abotoara o paletó.

Na azáfama da saída, não tinham levado nada para a viagem e esse esquecimento haveria de complicar as coisas, sim, porque até a cachaça fora esquecida e com ela, o coió de piracuí e o peixe frito. Tangidos pela fome, ambos queriam parar um pouco, descansar daquela faina, tomar “umazinha para esquentar a mãe do corpo”, porém não ousavam sugerir esse desejo em voz alta, em respeito e comiseração pelo morto.

E tome remo... Lá pelas vinte horas, praticamente extenuados, passaram em frente a uma grande fazenda, onde de longe já vinham ouvindo alarido de festa, com gente rindo, muita música e estouro de rojão. Só então lembraram que o Nhozinho Caranguejo festejava seu aniversário todo ano em alto estilo, com muito churrasco, pinga da boa, mulherada disponível e dança na ramada que durava no mínimo três dias. Depois de pedirem perdão ao impassível defunto pelo abuso, resolveram mesmo parar e participar. O que vinha na proa avisou:

- Compadre, a demora é pouca. É só “matar o bicho” e voltar, senão o homem apodrece.

O da popa, que era o piloto, foi precavido: - Tudo bem. Mas vou esconder a canoa embaixo daquela touceira de capim, pra ninguém ver que o homem tá morto!...

Unindo palavra à ação, manobrou com habilidade e a igarité encalhou mansamente embaixo do improvisado esconderijo. Apagaram a vela e sem mais delongas rumaram para a casa da fazenda, onde a fuzarca fervilhava e a luz de carbureto ofuscava os olhos.

Chegando lá, não puderam evitar os cumprimentos dos amigos, que faziam questão de levá-los para o barzinho debaixo da frondosa mangueira para brindar o evento. Já quase todos “chumbados” pela maldita, contavam piadas, confraternizavam entre si, jogavam “porrinha” apostando dinheiro, enfim, fizeram de tudo para animar os dois recém-chegados sem lograr êxito – e muito menos desconfiarem o porquê de estarem tão cabisbaixos. Até que um deles resolveu puxar para dançar uma cabocla toda dengosa.

Foi a conta. O outro também arranjou vistosa parceira, o lundú comeu no centro, a música animou, a festança pegou fogo, veio a dança da desfeiteira, mais cachaça, mulher pra cá, mulher pra lá, o da proa foi imprensar a muquirana atrás das bananeiras, o da popa a esta altura já estava tocando banjo na orquestra, e assim os dois amigos, motivados por tão profanas alegrias, esqueceram por completo do dever de sepultar o amigo Dico, que jazia sem vida na canoa escondida no barranco.

Lá pelas tantas da madrugada, saiu do baile um sujeito que mal se aguentava em pé de tão bêbado que estava. Foi aos tropeços andando para o porto com intuito de localizar sua própria canoa, eis que desejava de imediato retornar à sua casa.

Procurou em vão... Além da completa escuridão, o barranco estava coalhado de dezenas de outras canoas dos que compareceram àquela festa. Sem saber o que fazer, resolveu dormir ali mesmo, para aguardar a claridade do dia seguinte e assim meio perdido embarcou na primeira que vislumbrou - exatamente aquela onde jazia o corpo sem vida do finado Dico. Deitou-se ao lado dele, puxou para cima de si uma parte do lençol branco e sem saber que o homem era um “defunto morto”, foi logo avisando:

- Arreda pra lá, que eu também vou dormir aqui... E ferrou em pesado sono.

Já eram quase três da manhã quando os dois farristas, saciados em todos os sentidos, resolveram voltar. Arrependidos, mas ainda cambaleantes, retornaram à realidade e decidiram que o que haviam feito era coisa de gente indigna. Afinal, o estimado Dico fôra em vida uma pessoa bondosa e prestativa e não merecia aquele desrespeito. Fazer farra levando um finado para o cemitério... essa não! Como puderam chegar a tanto?

Com esse sentimento de culpa roendo-lhes as entranhas, envergonhados de si próprios, rumaram direto para a canoa, empurraram-na para fora e meteram o remo para recuperar o tempo perdido. Nem prestaram atenção que o bêbado estava embaixo do lençol, desfrutando a aconchegante companhia do falecido.

Horas depois, quando as luzes da cidade já brilhavam à distância, decidiram atravessar o pavoroso Amazonas, de enormes vagalhões que atemorizam até o mais experiente navegador. Balança pra cá, balança pra lá, a canoa subia e descia em gangorra cavalgando a crista das maretas. O vento soprou mais forte, começou a respingar água dentro do barco, o frio e a umidade doeram no couro e o bêbado, não suportando mais aquele desconforto, sentou e falou:

- Pra onde estão me levando?...

Cada qual dos remadores deu um berro de pavor e se borrando nas calças pulou dentro d’água. O bêbado nada entendeu, mas quando no lusco fusco da aurora notou que seu “parceiro de sono” era um defunto, soltou outro grito medonho e saltou atrás dos dois primeiros, no que um avisou ao outro:

- Compadre!! O Dico pulou n’água atrás da gente!

O bêbado não sabia nadar e queria agarrar um deles para salvar a vida. Não deu. Único meio de defesa, um jogava água na cara do outro para enxotá-lo, quando ele se aproximava! E no tumulto que se seguiu, morreram os três sem atinar para o que estava acontecendo. É esquisito afirmar, mas nesse insólito episódio o único que escapou de perecer afogado foi justamente o defunto.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “UM POUCO DE MUITAS HISTÓRIAS” (Editora TrêsC, 1.ª edição, 2016, pg. 65/68).

A. A. de Assis (88 Poeminhas) – 3 –

Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.

45.
Posso viver
sem ter nada,
porém jamais
sem ter / nura.

46.
Dissolve-se a nuvem
em finos fios de chuva.
Benze o trigo,
benze a uva.

47.
Velho e doce apreço.
Menino da roça,
da roça inesqueço.

48.
A lua e as estrelas,
tão belas.
E no entanto, para vê-las,
só o poeta abre as janelas.

49.
Quem nada
tem tudo.
Somente os peixes,
para salvar-se,
puderam dispensar a Arca.

50.
Era um riozinho,
e doce.
Cresceu, virou mar,
salgou.

51.
Gritarias, tiroteios.
Onde andam
os passarinhos
com os seus gorjeios?

52.
Há pedras
nos caminhos, há.
Caminhos nas pedras
há porém também.

53.
Ploque
ploque
ploque.
Passa um cavalo
levando
o passado embora.

54.
Os lírios dos campos.
Plateia de gala
para o show
dos pirilampos.

55.
Quero-quero-quero,
que queres tu tanto assim?
– Quero a quera-quera.

56.
Fantástico evento:
o fascinante momento
em que o botão
vira rosa.

57.
Tão pobrinha
a lua.
E todavia doa
o luar.

58.
Deveras,
deveras.
Na ausência
as horas são eras.

59.
No quintal vizinho
tinha um pé de pinha. Tinha.
Nem quintal tem mais.

60.
Agenda do dia:
encher de bem
o em redor da gente.

61.
Não se traz de volta
a ovelha
lhe puxando a orelha.
Dê-lhe amor e a mão.

62.
Mais que o prédio,
o morador.
O que dá valia ao vaso
é ser a casa da flor.

63.
Pergunte às crianças
se há vida
onde ninguém brinca.
Polegar pra baixo.

64.
Andorinha sobe,
andorinha
sobe e desce,
faz um “s” e some.

65.
Casal de velhinhos
na varanda
olhando a lua.
Tão longe a de mel...

66.
As cinzas da mata,
que dó.
Lágrimas em pó.

Continua…

Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Sammis Reachers (Lourival na Troca dos Leões)

Lourival, ainda muito jovem, decidiu ingressar na carreira de rodoviário. Naquele tempo era bem mais fácil tirar a carteira na categoria D. Era possível tirá-la direto, sem ter que passar pela B. Assim, com menos de 20 anos Lourival já era motorista. E numa das melhores (e também mais exigentes) empresas do estado: a Viação 1001.

Certa feita a empresa decidiu-se por colocar Lourival para dirigir numa linha importante: Rio de Janeiro x Governador Valadares (em Minas Gerais). Além de ser bem jovem, nosso amigo ainda era novo na empresa, e sentiu o peso da responsabilidade. Não podia dar mole.

O primeiro e segundo dias na nova linha foram tensos, mas transcorreram sem problemas, Mas, no terceiro dia... O ônibus estava parado no ponto final da Rodoviária Novo Rio. Os passageiros embarcavam normalmente.

Após algum tempo, Lourival, que estava no banheiro, se dirigiu ao veículo, e tranquilamente sentou-se em sua posição. Aí os problemas começaram. Um senhor já grisalho, grande e de voz grossa, levantou-se do meio do salão e dirigiu-se para a frente do veículo. Deu então uma boa olhada de cima a baixo no franzino Lourival e disse:

– Com você eu não viajo!

Em seguida, voltando-se para os outros passageiros já assentados, berrou:

– Eles vão colocar um moleque para pilotar esse ônibus. Querem arriscar nossa segurança nas mãos de um garotão que nem barba tem!

Antes que o pobre Lourival pudesse gaguejar alguma coisa, a confusão estava armada: outros passageiros, influenciados pelo velho encrenqueiro que não parava de falar, também se levantaram e começaram a matraquear.

E agora??? O pacato Lourival não sabia o que fazer. Ele era novo na empresa e mais novo ainda naquela muito boa linha; não poderia de jeito nenhum arrumar problema, mesmo sendo inocente.

Enquanto isso, o falatório continuava. Lourival já começara a suar de tão nervoso, quando de repente uma ideia veio lhe iluminar, no momento em que ele viu um outro companheiro rodoviário passando tranquilamente pela plataforma da rodoviária. Saltando do banco, Lourival contou sua estória, mandou seu "caô";

– Queridos, fiquem tranquilos que eu não vou dirigir este ônibus não. Sou só o manobrista. O motorista é aquele ali – disse, apontando para    o desavisado companheiro que andava do lado de fora do veículo.

Imediatamente Lourival desceu e, abraçando o rodoviário que ele nunca vira na vida, não perdeu tempo e foi logo contando sua história triste e também seu pequeno plano para o companheiro. O cidadão, mesmo um pouco contrariado, resolveu salvar a pele do nosso amigo. Entrou no veículo, cumprimentou os passageiros, que se acalmaram. Em seguida, pediu licença e fechou a pequena portinhola, que em muitos ônibus de viagem, separam a cabine do motorista da parte de trás (o salão) do ônibus.

A seguir, sem que pudesse ser visto pelas janelas, Lourival se esgueirou de volta ao ônibus, trocou de lugar com o tal motorista, que saiu de fininho enquanto Lourival dava a partida no veículo.

E assim lá foi seguindo sua viagem o bom Lourival. Rodou por ininterruptas cinco horas, quando então se aproximou o primeiro ponto de parada, momento em que os passageiros podiam descer para esticar as pernas e comer alguma coisa. Era a hora da verdade. Lourival voltou a suar frio.

Ao encostar no pequeno posto de paragem, Lourival abriu a porta, mas sem colocar sua cara à vista. Os passageiros começaram a descer, aparentemente sem reparar em Lourival, que olhava para o outro lado. Mas aí chegou a vez do velho encrenqueiro descer. Já nas escadas, ele parou e voltou-se para Lourival. Percebeu então que aquele era o "menino" com quem ele dissera que não iria viajar.

– Ei, é você!! – disse o velho.

– Sim, sou eu, senhor.

– Venha, vamos descer!

Assustado, o pacato Lourival levantou-se e desceu as escadas. Imaginava que tipo de coisa iria acontecer.

– Amigo, até que você dirigiu muito bem. Me equivoquei a seu respeito; me perdoe. Você é um grande condutor.

Surpreso e aliviado, Lourival respirou mais tranquilo. Mas não era tudo.

– Venha, rapaz – disse o coroa. – Venha que vou lhe pagar o almoço. Venha!

E assim o bom Lourival, que achou que iria até apanhar, ganhou um amigo e um fiel pagador de almoços...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Varal de Trovas 498

 


Aparecido Raimundo de Souza (Parte 40) Rebordo do chapeuzinho

EU NÃO ME CHAMO TOB. Foi, todavia, este nome que me dei, por conta própria, de mentirinha. Sou um gato. Um gato de verdade. Um pequeno felino com pelos bonitos, bem cuidados e bem tratados. Apesar disto, não gosto deste meu nome que achei ou li não me recordo onde. Nem um pouco ele me atrai. Acho que Tob não pega bem para um doméstico da minha envergadura.

Se eu pudesse ser batizado, mudaria, ou escolheria um patronímico mais simpático, mais atraente, mais chamativo, mais condizente com a minha raça. Embora viva dentro de casa, e tenha uma vida maravilhosa, de rei, não sou nenhum destes bichanos gorduchos e preguiçosos. Nem durmo no saco. Não caço ratos. Minha comida é de primeira e meus donos (principalmente a Luaninha, no albor dos quinze anos, com aquele adorno na cabeça, em forma de barrete, cobrindo os longos cabelos em cachos, única filha de dona Rita e seu Moisés) me tratam como se eu pertencesse à família.

Outro dia comentei com meu amigo que mora na praça aqui perto. Ele é um gato sujo, sarnento, cheio de pulgas, carroceria corrida, anda todo torto, e descadeirado. Não tem nome de batismo, eu o chamo de Chico. Chico, coitado, um dia come, outro passa fome. Um dia bebe outro não. Anda miando de déu em déu, o infeliz, jogado à sorte, ao Deus dará.

Quando falei em trocar de nome, ele se virou para mim e argumentou com a sapiência dos animais que, embora sem um pingo de sorte nos costados, têm uma larga experiência de vida, pelos maus momentos que traz grudado pelos escaldados horríveis da vida.

— Que nome gostaria de ter?

— Pensei em Salem...

— Isso lá é nome de gato? O que me diz de Tom?

— Já existe um montão, Chico. Sem contar que temos um simpático muito famoso. Lembra do Jerry da televisão? O que me diz de Tim?

— Tim? Ki...ki...ki... você acabaria virando alvo de piadinhas de mau gosto...

— Como assim?

— Seus amigos, menos eu, claro, lhe alcunhariam de Fim, Mim, Sim, Quim, Vim... Imagine, “e ai, amigo Pim! Tudo bem?”.

— Restaria, então, Bob!

— Bob, meu chapa, é nome de gato preguiçoso e lerdo. E você não me parece um gato molenga. Pelo menos na aparência. Você é gato de “madame”, de família abastada. De boa família, por sinal. E o mais importante: tem pedigree.

— Mesmo assim eu queria mudar de nome. O que eu mesmo me dei, por conta, Tob, está me deixando incomodado...

— Deixa de bobeira, Tob. Tira isto da cabeça. Procure se espelhar em mim, como exemplo.

— Como exemplo? Estou voando. Desenha!

— Filtra de novo!

— Como disse?

— Esquece, Tob. Veja minha situação. Nem nome tenho. Você que me arranjou este tal de Chico. Pois bem. Sem falar, mas já falando, não tenho um lar. Vivo ao relento, jogado, em busca de restos de comida e camundongos. Na moral, colega. Preferiria mil vezes ser chamado de Tob e desfrutar de um cantinho só meu, que ser este Chico aqui que você tão bem conhece e vive assim, como eu vivo, aliás, como vegeto. Pobre, maltratado, precisando, como se diz aí no mundo dos humanos: “Matar um leão a cada dia para sobreviver”. Desculpe o que vou dizer, Tob. Você chora de barriga cheia. Deus, meu prezado, não dá asas à cobra.

— Tudo bem. Estou de acordo com o que disse. Mas quero mudar de nome.

— Tob!...

— Falo sério, Chico. Nunca falei tão sério em minha vida. Me ajuda aí, vai!...

— Calma.

— Estou calmo.

— Relaxa.

— Estou relaxado.

— Um... ah... sim... claro...

— Desembucha, Chico.

— O que me diz de Stuart Little?

— Stuart Little?

— Sim, meu amigo. Era aquele pequeno gato... ou era rato...?... não me recordo...! No filme “O pequeno Stuart, dublado pelo grande ator Rodrigo Santoro.

— Stuart Little? Acho meio americanizado.

— Como disse?

— Filtra de novo!

— Aprendeu, hein malandro? Estou gostando de ver...

— Não tem outro, Chico?

— Sim, me veio à mente agora. Como não pensei nisso antes? Burro, como sou burro!

— Deixa de se mimosear, cara. Fala. No que pensou?

— No gato Snowbell!

— Sei... sei... e quem dublou este gato? O Rodrigo Santoro?

— Não, Snowbell quem dublou foi o Miguel Falabella. Como ele tem cinco gatos, ou pelo menos, na época possuía cinco persas, Flora, Nicoleta, Scarlet, Zípora e Farac...

— Chico, como sabe de tudo isto?

— Velha história, meu chapa. Nem gosto de lembrar...

— Fala ai, mano velho. Se abre comigo...

— Ta legal. Namorei Scarlet. Meu Pai amado, que gata!...

— E por que não ficou com ela?

— Porque o Caco Antibes foi mais esperto.

— Quem, Gato Antibes?

— Caco, seu besta. Caco. Caco Antibes. Era um personagem do Falabella em “Sai de baixo”. Mas deixa pra lá. Vamos focar no nome. Stuart Little ou Snowbell?

— Stuart Little cairia melhor...

— Não simpatizou com Snowbell?

— Stuart Little, como você relatou aí, foi dublado pelo Rodrigo Santoro, o grande.

— Certo, meu camarada. Só não recordo se Stuart era um gato ou um rato... ou as duas coisas ao mesmo tempo...

— Pois é... bem... acho que vou ficar com esse Stuart mesmo. Ainda que a contragosto, por ser, como disse, bastante americanizado.

— Papagaios, mano. Não gostou do Snowbell?

— Não é isto, Chico. É que estou me recordando agora. Snowbell era meio... meio abichalhado. “Gato-gata”. Não iria pegar bem. De mais a mais, na minha idade, entrar no armário, sair do armário... dar uma desmunhecada... fora de cogitação. Como Luaninha me veria? Decidido! Ficarei com o Rodrigo Santoro, O Grande.

— Você quer dizer, adotará o Stuart Little?

— Com certeza!

— Mas Little é um rato ou um gato? Que droga, sinceramente não me recordo com precisão. Rato, gato, gato, rato? Faz tempo! Ainda estava nos braços de Scarlet. Ah... bons tempos, aquele... não fosse o Miguel Falabella... Alto lá... quem é Luaninha?

— Uma gata, Chico. E que gata! Pense numa gata “maneira”, tipo cheguei...!

— Você nunca me falou dela...

— Chico, esquece. A partir de hoje, deixo de ser o Tob para ser o grande Stuart Little.

— OK. Só para lembrar. Grande foi o Rodrigo Santoro que dublou o bicho, mano. Não confunda.

— Foi mal. Não confundirei. Pode estar certo. Snowbell não me cairia bem. Fora de cogitação. De mais a mais, a Luaninha, minha dona... ei, alto lá, para seu governo, não quero lhe falar dela. Esquece a moça, digo a gata. Fique longe da minha beldade. Você com ela, ao lado dela... Credo em cruz, nem morta, Chico, nem morta... Ouviu?

— Como disse, Tob, digo Stuart?... A Luaninha, nesta confusão toda, é uma moça, ou é uma gata? Fiquei confuso. Responda, abre o jogo. Gata ou moça?  

— Filtra de novo, Chico. Filtra de novo!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – 
Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 8 –

A mais sublime alegria
que vi, confesso e não nego:
– Foi ver um cego de guia
sendo guia de outro cego!
= = = = = = = = = = =

Aos olhos de tantas cores,
da estação que mais se espera,
Deus põe nos botões das flores
as cores da primavera!
= = = = = = = = = = =

A saudade que se sente,
não tem cor, forma e nem aba;
mas deixa na alma da gente
mancha que nunca se acaba!
= = = = = = = = = = =

As notas de antigos gongos,
que escuto quando medito,
soam quais velhos ditongos
na cadência do infinito!
= = = = = = = = = = =

A vida com seus desvelos
e, o tempo com seus desvãos,
vão deixando em meus cabelos
as marcas de suas mãos!
= = = = = = = = = = =

É tarde!... E, as almas cansadas,
ao canto dos peregrinos,
um sino dá badaladas
despertando os outros sinos!
= = = = = = = = = = =

Eu queria que meus gritos
ecoassem nas noites mansas,
levando a paz aos aflitos
que não têm mais esperanças!
= = = = = = = = = = =

Já curvo ao peso da idade,
nos ombros, o velho ancião,
carrega tanta saudade
que entristece a solidão!
= = = = = = = = = = =

Liberdade é um grande voo,
quando alguém ainda acredita,
que, na palavra "perdoo",
há liberdade infinita!
= = = = = = = = = = =

Meu filho, um beijo roubado,
não pode ter punição;
que o sabor desse pecado,
ofusca a luz da razão!
= = = = = = = = = = =

Meu rosário me enternece;
e entre os mais crentes e ateus,
vou deixando em cada prece,
as preces dos versos meus!
= = = = = = = = = = =

Na madrugada orvalhada,
por sobre as relvas pagãs...
Vão meus pés pisando a estrada,
dos sóis de minhas manhãs!
= = = = = = = = = = =

Não se fere uma floresta,
sem preservar-se uma flor...
E a mata que nos empresta,
do verde, o pulmão do amor!
= = = = = = = = = = =

No banco da velha praça,
a solidão se revela...
Quando uma sombra que passa,
se assusta com a sombra dela!
= = = = = = = = = = =

Noite adentro e, que surpresa
ao ver na sombra da cruz,
a chama do amor acesa,
na noite escura e sem luz!
= = = = = = = = = = =

Nossa casinha é singela,
tão simples por onde for,
que o quebra-cabeça dela
é a regra de três, do amor!
= = = = = = = = = = =

O sol, da manhã, traduz
na luz tosca da alvorada,
um terno beijo de luz
nos lábios da madrugada!
= = = = = = = = = = =

O tempo deixa na gente,
entre as rugas do desgosto...
Restos de sonhos na mente,
marcas da vida no rosto!
= = = = = = = = = = = = =

Ó, tempos de primavera,
como foi bom te esperar...
E a esperança dessa espera,
era a luz do teu olhar!
= = = = = = = = = = =

O velho mar, entre as brumas,
aos beijos da lua cheia,
escreve em flocos de espumas
lindos poemas na areia!
= = = = = = = = = = =

Ó, viola que me acalma,
o teu dengo me consola;
parece até que tem alma
no dengo dessa viola!
= = = = = = = = = = =

Pobre mesmo é aquele alguém,
que é rico e nada produz;
e, diante da Luz do bem,
suplica esmolas de luz!
= = = = = = = = = = =

Que exemplo, o do passarinho,
que não poupa um só vintém;
mesmo com fome, no ninho,
não quer nada de ninguém!
= = = = = = = = = = =

Se amai-vos, disse o Senhor,
Deus no amor, tudo permite!...
Pois, o limite do amor,
é se amar, sem ter limite!
= = = = = = = = = = =

Se aos teus pés tudo eu deponho,
sigo os passos de teus passos,
que o amor, que eu sinto em meu sonho,
seja o que dorme em teus braços!
= = = = = = = = = = =

Se a solidão desconforta,
à noite, ela me apavora;
mas, quando a aurora abre a porta,
a solidão vai embora!
= = = = = = = = = = =

Sinto saudade da infância,
boba, do jeito da gente!
Mas a dor, dessa distância,
na saudade é que se sente!
= = = = = = = = = = =

Toda ausência, tem seus ais!
E, entre nós dois, se deduz,
que somos presos fatais
dos braços da mesma cruz!
= = = = = = = = = = =

Transponho pedras e espinhos,
feliz entre os manacás,
em busca da paz dos ninhos
onde cantam sabiás!
= = = = = = = = = = =

Vi, quanto a dor maltratava
aquela mãe maltrapilha
que, com fome, amamentava,
matando a fome da filha!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 2, final

Na varanda de sua habitação, o fazendeiro e a família, desde muito cedo, lombrigavam os convidados que se aproximavam. O fazendeiro, com seu rodaque e calça de brim pardo, seu chapéu-de-chile ou manilha, pondo ao lado a xícara de café, estendia a mão sobre a testa, para melhor distinguir os vultos; a mulher e as meninas, penteadas e prontas, cresciam da ponta dos pés, alongavam o pescoço, aventurando nomes, recordando apelidos. E os primeiros chegavam, os escravos tomavam os animais, as famílias apeavam-se. O fazendeiro e os seus os recebiam, entre gracejos e abraços, riso franco, proporcionando-lhes hospitalidade proverbial e antiga.

Até alto dia era a mesma lufa-lufa: progressivo concurso de povo, a alegria mais sincera, os deveres obsequiosos mais distintos... O bando de moças, as gentis roceiras, tagarelavam, riam de qualquer coisa, fazendo contraste com as que não se levantavam das cadeiras, conservando-se mudas, apalermadas.

As moças da corte e as mais interessantes e inteligentes e da freguesia falavam em namoro com os rapazes, recitavam a balada da Moreninha do Dr. Macedo, tinha de cor as poesias sentimentais dos poetas do tempo.

A fazendeira, com seu vestido de musselina, trepa-moleque, e lencinho ao pescoço, desfazia-se em delicadezas, em oferecimentos aos convidados, procurando-lhes o conforto, a sem-cerimônia mais cordial. Neste ínterim a casa da moenda acabava-se de armar, os escravos estavam a postos, os caldeirões areados e espelhantes, o forno provido de lenha.

A um momento inesperado, a música da vila tocava ao longe, assomando em um carro de bois, todo enfeitado de flores e ramagens, trazendo o guia o chapéu circulado de flores do mato, lindas e vistosas. O prazer, que com as harmonias, mesmo longínquas, se espalhava na fazenda, era indizível: todos corriam às varandas; as mucamas e as crias desciam à porta; os foreiros saíam de suas casas de sapé, chegando-se ao terreiro.

Apesar do prodigioso número de convidados, da parentela sem fim dos donos da casa, do povo que se reunia em festivo convívio, uma nota discordante se percebia, causando geral inquietação e sensível impaciência: a ausência do vigário!

Era da tradição que, não se benzendo o engenho em cada safra do ano, tudo corria mal: os escravos morriam ou decepavam as mãos nas moendas; um desastre qualquer perturbava a paz da família; um acontecimento fatal punha em atraso a vida do fazendeiro.

No pleno domínio desta superstição, que acreditamos uma verdade, o não comparecimento do vigário importava a transferência da festa, ou a procura de outro sacerdote, que nem sempre era fácil, concorrendo esse expediente, embora autorizado, para ressentimentos da parte daquele: o que cumpria evitar.

Como é de prever, as moças faziam promessas, acendiam a Nossa Senhora, pediam a todos os santos para que nada lhe tivesse acontecido, sendo logo enviados pajens a cavalo à freguesia, a fim de indagar do motivo da tardança.

E a música descia... E de um dos carros cobertos de colchas de chita, que se encaminhavam após, apeava-se o folgazão e nédio vigário, trazendo consigo a esparramada comadre e a récua de afilhados...

A recepção, debaixo de vivas, tornava-se estrepitosa; e o velho fazendeiro e sua mulher, as pessoas mais gradas e os primeiros personagens políticos da localidade batiam palmas, dirigiam-se a ele, aos apertos de mão, aos abraços, em expansivas manifestações.

Pouco depois, o vigário e seu sacristão tiravam de uma caixa de folha-de-flandres os seus paramentos, a gente toda seguia para a missa e depois para a casa da moenda, formando um derradeiro grupo o fazendeiro, o vigário o juiz do termo, o juiz de paz, e suas competentes famílias.

Uma vez na casa do engenho, a gente toda ficava embaixo, na grande área ocupada pela almanjarra, as caldeiras, os alambiques, os cochos, o orno, etc., indispensáveis ao fabrico de açúcar e da aguardente.

O vigário, de batina, sobrepeliz e estola, tendo ao lado o sacristão, abria o livro sagrado, ao passo que muitos dos circunstantes recebiam tochas enfeitadas e acesas. As moças e as matronas, em fileiras sucessivas, com seu séquito de belas mucamas, assistiam igualmente ao ato vestidas à moda, sobressaindo em suas vestimentas e nos cabelos lacinhos de fitas verdes e amarelas, flores nativas. E o vigário começava a bênção do engenho, finda a qual fechava o livro e afastava-se, cedendo espaço à cerimônia da inauguração.

A música, em desafinação constante, atroadora a fazer despertar um cataléptico, passava-se da celebração religiosa para a festa profana, ao estouro dos foguetes que se atacavam lá fora, das girândolas que sibilavam intermitentes até a conclusão da cerimônia.

Nesta ocasião, muitos dos circunstantes, homens, senhoras e crianças, subiam para as varandas interiores, aparatosamente ornadas, e dali gozavam da festa da moagem, propriamente dita, da inauguração anual dos trabalhos da fábrica, segundo o ritual observado por nossos lavradores...

E as moças aos cochichos, às risadinhas, nos requebros desconfiados, adiantavam-se para a almanjarra, passando a cada uma delas sua vistosa mucama um feixinho de canas raspadas, presas por laços de fitas, que eram delicada e cuidadosamente colocadas por suas senhoras dentro dos cilindros da moenda.

A música atordoava ainda mais, as palmas choviam, e um molequinho, de roupa bonita e chapéu entremeado de folhas e flores, trepava na boleia fixa a uma das hastes do triângulo da almanjarra, tocava a parelha de burros, fazendo girar todo o maquinismo.

Os escravos empregados nesse trabalho debandavam, cada qual para seu mister especial, com grandes escumadeiras e outros utensílios da indústria.

Então o vigário, o fazendeiro, o madamismo e mais circunstantes, que presidiam a inauguração, reuniam-se aos convidados, que se achavam nas varandas, seguindo todos em ruidosa folia para a casa de vivenda, onde lauta refeição, opípara merenda era servida, trocando-se brindes calorosos, entusiásticos.

E o engenho moía ativíssimo, esgotado o primeiro caldo, lavados os condutores. Em seguida, em riquíssimos bules de prata, levavam as escravas saboroso caldo de cana, geralmente apreciado, sobretudo por ser o da primeira moagem.

Toda a escravatura, os foreiros em tropa e os conhecidos destes, apreciavam, no terreiro e na fábrica, o caldo que se distribuía a granel, em cuias de cabaço amargoso, ao uso da roça.

Nesse dia, à exceção da gente do engenho, ninguém mais trabalhava: os escravos batucavam depois do jantar; os foreiros dançavam e cantavam; os senhores moços presenteavam as crioulas e as mulatas de estimação com belos cortes de vestidos de chita e de cassa, fios de corais, brincos de ouro, etc.

Desde o anoitecer a música preludiava o baile, que começava às nove horas e findava de manhã.

Aos que haviam assistido à inauguração era de costume mandar-se potes de melado e rapaduras, como lembrança da festa.

E enquanto o baile estuava nos salões dos senhores, enquanto a sorte coroava de bens a opulência, à luz fumarenta dos candeeiros do muro externo das senzalas, ao fogo de pequenas fogueiras que ardiam tímidas, os escravos dançavam as suas danças, cantavam as suas toadas, aos tinidos das violas, dos urucungos e das marimbas, tangidas na solidão:

A vida do preto escravo
É um pendão de penar:
Trabalhando todo dia
Sem noite pra descansar.

E um morador, sapateando na chula animada e fervente:

A cachaça é moça branca
Filha de pardo trigueiro:
Quem bebe muita cachaça
Não pode ajuntar dinheiro...

Cana verde, cana verde,
Cana do ca navial,
Eu já fui mestre d’açúcar,
Hoje sou oficial.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma semana mais tarde tudo estava mudado. A fazenda, adormecida à meia-noite, tomava um aspecto sinistro e aterrador. Os vaga-lumes faiscavam no campo e nos tetos das senzalas; a fornalha do engenho, como o olho esbraseado de um demônio, golfejava chamas nas trevas que fugiam espavoridas; e o silêncio, pesado como uma mortalha, caía sobre a planície e a colina.

De espaço a espaço, porém, uma melodia em voz rouca, monótona e cadenciada como o coaxar dos remos na travessia das canoas, feria o ar, despertando os ecos dos ermos... Era um velho africano, sonolento e alquebrado, que, sentado na almanjarra, tocava os animais que a rodeavam lerdos e fatigados:

Eh-bango!
Bango-eh!
Caxinguelê...
Come coco no cocá...
Tango, arirá...
Tango, arirá...

E o chicote estalava, completando a onomatopeia desta toada que terminava silábica, pausada, admirativa e estacando de súbito:

Eh – ah!...

Uma vez inaugurada a moagem, os escravos trabalhavam dia e noite, em turmas alternadas, mas sem parar.

O tempo da safra durava por meses.
 

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. 
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Manuel de Oliveira Paiva (Da pena atrás da orelha)

A vidraça tinha batido na casa fronteira, sacudindo um relâmpago pelo quarto adentro, e foi como a voz do patrão que o despertasse com todas as peripécias de um carão em regra.

Depois de ter percorrido o quarto, com o lençol de chita forradinho de branco arrastando como uma capa de rei, à procura do paletó de alpaca, do colete de fustão, da calça de gazineta, da gravata e do chapéu cinzento, desenterrando tudo isso do meio da desordem geral, como de uns escombros, enfiou a bota. Esta parecia ter o rosto inchado, como o do dono, sem lustro, como se lhe houvessem esfregado uma lixa, ela, a bota que ontem à noitinha luzia como uns olhos negros!

Quando ele alçou a perna, enfiando o dedo na presilha do cano suarento, o solado amostrou uma grande parte roída que punha em evidência os pontos até à palmilha.

Aquele sapato nem mais rangia! Coitado, era como a maior parte dos rapazes, depois que se casam. Ai da rangedeira, do lustro, do tacão, do elástico, da integridade da sola e do couro!...

O rapaz filosofava assim, cochilando sobre a outra bota, que apanhou, de perna estirada, e o pé já na meia cor de café com a pontinha branca.

O poder gigante da inércia calcava-o; e o dedo magnético dos sonhos descia-lhe de novo as cortinas dos olhos. Como num engenho d'água o fio de magro corrente, caindo, incute o giro veloz à ingente rodeira, assim, breve a modorra foi despertando a espantosa engrenagem daquele cérebro.

As ideias da gente ficam, às vezes, como fogo de monturo...

Vinham-lhe, como em ópera mágica, as apreensões de antes da festa, quando o carnaval era ainda o amanhã. As comoções do primeiro momento. As emoções, os desvarios, a espécie de abstração, de alheamento, que nos assalta em dados instantes no forte, do bom do prazer.

Sonhando a dormir repetiam-se-lhe episódios do sonhar acordado... E, como se fosse passado, intrometia-se por ali mefistofelicamente o futuro, isto é, o escritório, o pavoroso, o soturno escritório com a sua carteira bestial, com os seus livros sem inteligência e a sua pena sem luz...

Do cantinho da prensa do copiador, entretanto, saía, distintamente, uma senhora... aquele escritório era dele agora... que ventura, ele se transformava no patrão... aquela era a esposa dele que vinha reforçá-lo com os segredos do seu ser... chamava-o para almoçar, e ele voltava-se risonho:

— Já vou.

Os livros e as penas agora para ele chegavam a sentir: não tinham inteligência, nem luz, mas eram os seus amigos...

E tinha rancor a tudo que não fosse ela. Qual baile, qual nada...

0 sapato caiu-lhe da mão... Diabo, o salto bateu oco, indiferente, maquinal, frio como um aviso de despedida... O coração bateu... Faltava banhar o rosto e passar a escova nos dentes, pentear-se, escovar-se... porque enfim até isso a casa exigia.

A bacia e a moringa apresentavam-se na janela, por onde entrava o ruído da vida ressurgida na quarta-feira de cinza...

O sol parecia ondular com o vento por cima dos telhados como no pano de um circo...

Ao contato da água fria nos dedos, à carícia do ar exterior, o rapaz, esfregando os dentes na sua janela, vestido como um tresnoitado boêmio, foi que começou a acordar apenas... o sangue, chamado às gengivas pela fricção da escova, a mucosa da boca vasculejada pela água, o movimento do braço, — como um cheiro que se aplicasse ao nariz, numa síncope, — chamavam-no à vida muscular...

Porém as ruas ainda estavam caladas.

No meio do quarteirão parava uma velha carroça roxo-terra; e sentia-se asperamente o chiado seco da vassoura da limpeza pública.

Pausadamente caminhavam os caixeiros, em número escasso a abrir as lojas. Ouvia-se espaçadamente grunhirem as lingüetas, rosnarem os gonzos, em um quase silêncio. Passavam rareados convalescentes para as vacarias; e distribuidores de pão com as cestas de vime ao ombro com a costumeira manta encarnada.

Assanhava-se a bem-aventurada sonaria dos sinos, tocando ao descarrego das consciências.

E desapareciam na esquina rezadeiras apressadas.

Raparigas de vestido simples e cabelo penteado com água, as mãos Caídas sobre o ventre, com o lenço, o rosário e o manual, os sapatos comidos para um lado, de elástico esgadelhudo; a vista para o chão como se atravessassem uma região impudica; a tez empalidecida, iam, com o erotismo abafado de quem sorve a nevrose do templo por lhe ser inacessível a nevrose do mundo...

Os caixeiros sacudiam as trancas de ferro, e varriam os interiores.

Via-se, deles, alvos, robustos, de mangas arregaçadas. Defronte uns arrumavam peças de chita, com o olhar tresnoitado o pequenino.

Um belo dia que se alevantava na rua! Longe ouvia-se o bater de uma enxó e o chiar intermitente de uma serra. Um caixeiro moreno Por demais, de cabelo à escovinha, novato, muito puxado no serviço, parecia notar longamente os transeuntes, com a vassoura em descanso, e manifestava a presença desanuviada de quem conservasse ainda a doce brutalidade do sertanejo. O arzinho de chuva, que ameaçava, devia lembrar-lhes que habitar nos matos, bebendo e jantando arroz com carne odorante a queijo, respeitado não só pelo cabroeiro, que costumava tratar a meninos de família por seu cadete, como pelas autoridades e funcionários que soíam passar as mãos pela cabeça do filho do doutor fulano, e do capitão sicrano, era preferível a sujeitar-se aos apelidos de cabeça de toicinho, cabelo de espeta-caju, a suportar os carões do patrão e a aguentar o mau-trato dos colegas...

Enfiavam para o Mercado vários vendilhões, entre os quais destacavam-se os de hortaliça, com a luzente bacia de zinco donde repolhava o setim das alfaces, o crespo das couves, e repontavam os biquinhos dos quiabos, dentre a púrpura dos tomates... coentros de palminhas bordadas, e molhos de cebolas... Lá iam mulatas de xale a tiracolo com as vasilhas para as compras; marchantes, de roupa asseada e passo ligeiro com o guarda-sol debaixo do braço; meninos a distribuir jornais: pedreiros; carpinas: homens do ganho com o uru vazio: donos de casa, em pessoa para a feira... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota...

Apertando o gargalo da moringa, o rapaz encheu a bacia, e, quando a fisionomia sentiu as primeiras mãos-cheias de água, a rede elétrica dos nervos transmitiu por todo o corpo a verdadeira e definitiva sensação do despertar. Foi como se retumbasse a voz de — sentido! — por um batalhão em forma que estivesse em descanso.

E breve, no impedimento da toalha de rosto, que ele não sabia onde parava, enxugou-se no lençol."

Ensaiou os primeiros passos na direção da saída, mesmo porque já um relógio batera placidamente as sete horas. Aquilo é que era suar um coração agoniado. Sete horas, hora de horror...

"Hora de febres fatais
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”

Mas, enfim, saiu como um doido.

Maldita caneta, livros cínicos do comércio! A Inquisição não se lembrou desse tormento pavoroso!

E naquela negação absoluta pelo trabalho, ele suspirava ardentemente, imprecativamente, como o desgraçado rico, do inferno vendo Lázaro no céu:

— Deus, oh Deus! por que não me fizeste empregado público?!

Momento depois ouvia-se ainda o ganir dos armadores ao balanço decrescente da rede, no quarto deserto e desordenado, onde as manchas de sol iam insensivelmente caminhando por cima dos trastes e das roupas e das estampas coladas na parede.

(Texto publicado em 1888)

Fonte:
Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. 

A. A. De Assis (88 Poeminhas) – 2 –


Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.

23.
Bandinha de gênios
brincando ao piano e rindo.
Mozart, Beethoven, Chopin
dó-ré-mi-fá-sol-lá-sindo.

24.
O fruto é fruto do amor.
Quis Deus até
que antes de fruto
ele fosse flor.

25.
Na aguinha da bica
molha o bico o tico-tico.
Depois bica a tica.

26.
Nobre flamboyant.
O facho
que traz nos cachos
acende a manhã.

27.
Doce portuñol.
Para los niños
los nidos.
Y los abuelos.

28.
Ouro, incenso e mirra.
Que será que fez Jesus
com tais luxozinhos?

29.
Ah, os homens.
Os homens
moem-se.

30.
Cuidado, cordeiro.
Por enquanto
é cedo ainda
para confiar no lobo.

31.
Calma, irmão,
vamos sem susto.
Há sempre um anjo,
amigo e bom,
que ajuda o justo.

32.
Abaixo a vingança.
A lei do dente por dente
faz tempo ficou banguela.

33.
Século-cabeça.
Mais que a força dos Golias
vale o gênio dos Davis.

34.
A semente, grá-
vida,
leva a vida impá-
vida
para a frente.

35.
Um homem
deitado
no gelado chão.
Por que não
samaritamos?

36.
O ego é o vilão.
Só quem dele se liberta
limpa o coração.

37.
Era transromântica.
A poesia anda indagando
que coisa é
física quântica.

38.
Tão meninas elas,
as meninas dos teus olhos.
Pedem colo,
ainda.

39.
Do cérebro ao coração:
– Somente unidos, irmão,
daremos bom rumo
à história.

40.
De que nome o chamo:
pirilampo ou vaga-lume?
Tanto faz: é luz.

41.
Um raio de lua
deita no colo da rosa.
Namorinho antigo.

42.
Havia a via,
havia ação,
havia o espaço,
aviação.

43.
Voa a gaivota,
voa.
Voa, voa, voa,
vira um anjo azul.

44.
Florzinha silvestre
no jardim
do shopping-center.
Êxodo rural

Continua…
 
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro
de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 1 –

(PROVÍNCIA DO RIO)


No Norte e no Sul do Brasil, as festas do trabalho, os jubileus da lavoura tinham sobre a fronte grinal das frescas e odoríferas, enramadas ao gosto dos estilos selvagens.

Aos harpejos bárbaros da floresta, ao rumor sacrílego que acordava os ermos, os fazendeiros, em suas casas de vivenda, faziam os cálculos sobre os proventos de suas plantações e consideravam no dia da inauguração da moagem, traçando planos alegres e realizáveis.

No Rio Bonito, em Capivari, na Boa Esperança, em Macacu e em toda a província do Rio de Janeiro, a começar de abril, alguma coisa de estranho se passava nas fazendas, desusada atividade punha em alvoroço foreiros e escravos.

A gente da redondeza, convidada ou não, dispunha-se a comparecer à festa anual agrícola do mês de maio, época em que todos os engenhos principiavam a funcionar.

Abandonando por toda a duração da moagem as suas magníficas e confortáveis moradias, alguns senhores, acompanhados por vezes da família, vinham residir nos engenhos, fiscalizando diretamente o trabalho. Desde maio, porém, as enxadas e as foices dos escravos lampejavam ao sol, procedendo-se à capina geral do terreiro e de suas proximidades, que abrangiam o inteiro perímetro, o quadrilátero extenso ocupado pelas construções principais e rústicas da grande propriedade.

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis e depósitos, as senzalas extensas eram caiadas e limpas; a escravatura recebia timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano; e, de oito a quinze dias antes da moagem, procedia-se ao corte das canas, que chegavam em carros de bois e ficavam sob os alpendres ou em depósitos especiais. Quem passava então pela estrada desfrutava um espetáculo aprazível, encantava-se diante de uma paisagem larga e pitoresca, própria do nosso clima e do nosso meio, e de acordo com o desenvolvimento relativo dos nossos proprietários rurais.

Aninhada debaixo de um céu sem névoas e quente de esplendores, a bela casa de vivenda do fazendeiro opulento dominava em uma eminência, elegante e avarandada, sobre um terreno amplo, arborizado e varrido.

À curta distância, a fábrica do açúcar levantava-se vasta, da altura de dois andares comumente, com suas varandas compridas, com seus alpendres contornantes. Os paióis e as senzalas, em planos variáveis, acentuavam o tom característico desses núcleos agrícolas, outrora tão florescentes e hoje quase infecundos.

Pontes atravessando córregos, rebanhos e bois nas pastagens, casinhas de sapé, ranchos dispersos, e uma ou outra senzala de cujo teto um esteio rompente se abria em ramas e flores – eis mais ou menos um quadro das nossas antigas fazendas, monótonas até ao enfado, à força de serem semelhantes.

Desde escura madrugada, entretanto, a vida nelas se reanimava, especialmente no tempo da moagem e da safra.

Os escravos, saudados pelo cântico das aves, pelo murmúrio dos rios, pelo espadanar das cascatas, surpreendiam as auroras do sol que os encontravam no eito; os carreiros seguiam à frente dos tardos bois, ao guincho dos carros; e os cantos dos negros em turmas eram acompanhados em surdina pelo cicio dos canaviais às virações do amanhecer:

’Sta va na praia escrevendo
Quando o vapô apitou:
Foi os olhos mais bonitos
Que as ondas do mar levou!...

Minha senhora, me venda,
Aproveite seu dinheiro;
Depois não venha dizendo
Qu’eu fugi do cativeiro.


Eram os pobres escravos do Norte que carpiam as suas saudades!

Era um pensamento talvez de suicídio, uma ideia de morte tarjando de luto a esplêndida aquarela da natureza!...

Mas o dia da festa estava marcado, e com antecedência ultimavam-se os aprestos. De véspera, a casa do engenho e as mais construções adornavam-se, interna e externamente, de troféus, de pendões vegetais entremeados de flores selvagens, de ramagens e palmas, de festões e arcadas de folhagens; no terreiro, as bandeiras, colocadas de distância em distância, flutuavam na extremidade dos bambus flexíveis e verdes; e aqui e ali os moleques e negrinhas, saltando e brincando, olhando espantados, chusmavam em algazarra, aqueles com a camisa aberta no peito, mostrando ao colo uma figurinha suspensa, um bentinho ou um rosário de devoção materna.

Matava-se um boi para o banquete dos senhores e ração dos escravos, carneiros, galinhas, etc., incumbindo-se a dona da casa, a família do agricultor, da direção das escravas doceiras, das que arranjavam o necessário para os convidados e hóspedes.

De véspera também, já se achavam na fazenda os compadres e os amigos do estimado senhor e que tinham vindo de longe com suas famílias.

Os foreiros ajudavam os escravos nos preparativos, a música se achava avisada, e os foguetes, comprados na cidade, enchiam o recanto de um aposento, para a ocasião oportuna.

As moças românticas, impressionáveis e meigas, sonhavam com os primos bacharéis; os coronéis da Guarda Nacional conversariam sobre eleições; e as influências locais não perderiam a vasa para a cabala, para apresentar o seu candidato ao futuro pleito eleitoral.

No dia da moagem, apenas a luz da manhã estava em casa de Cristo, lá vinham convidados a cavalo, famílias em carros de bois com toldos de esteiras ou de chitão lavrado, indivíduos de toda a casta, muitos dos quais descalços, trazendo às costas sapatos enfiados no ipê.

No dia da moagem...
__________________________
Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.