sábado, 13 de março de 2010

Trova 125 - Vanda Fagundes Queiros (Curitiba/PR)

Truman Capote (A Pechincha)


Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo, a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de pôquer. Ouvir aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que, conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja, estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em Greenwich Village eles tinham visto com freqüência Arthur e Alice Severn, chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no casaco. Tenha um bom almoço, querido."

Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial, tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra. Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém, teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boêmia demais.

Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa. Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado, e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um casaco de vison.

A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço: jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas, pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa estola.

Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores, e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.

"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."

Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento, outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de ignorar.

"Xerez?"

Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.

"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?".

"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor idéia. Não moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."

"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desatualizada. Mas onde você está morando, querida?"

Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara, mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado. "Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."

Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.

"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."

Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas espiando pela janela da caminhonete".

"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."

A correção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".

"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a aparência."

A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente incrível."

"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"

O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era verdade. Exceto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela começava a temer que não haveria nenhuma história.

Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em agosto passado".

A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa, disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".

"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia; é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria retesando sua face. "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman? Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua altura".

"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz Vermelha. Horrorosa."

"Não", replicou Alice Severn, refletindo. "Jeannie não é horrorosa. Éramos ótimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela, embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."

"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl"

"Desde agosto."

A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".

"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente. "Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."

A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem exigiu", hesitou, "uma pensão."

"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação. Mas, sabe, acho que está feliz."

"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se estivesse pronta para realizar o serviço.

"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso, consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".

A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase, mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.

"Pertenceu à minha mãe."

Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase, encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu, ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa, humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn, porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".

"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não franqueza.

"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que estipular o preço fazia parte de sua obrigação.

Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta, dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de cinqüenta dólares,

"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação, "você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir solitária."

Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta, a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão ficou bem fria de novo.

Fonte
CAPOTE, Truman. 20 contos de Truman Capote SP: Cia. das Letras, 2006.

Truman Capote (1924 – 1984)



Truman Streckfus Persons Capote nasceu no ano de 1924 na cidade de Nova Orleans, Luisiana - EUA.

Convivendo, na infância, com diversos problemas familiares — prisão do pai, divórcio do casal, briga por sua guarda — o autor acabou indo morar em Nova York na companhia de sua mãe e seu padrasto. Foi dele, cubano, que Truman adotou o sobrenome.

No início dos anos 40, foi admitido como contínuo na New Yorker. Durou pouco o emprego, do qual foi demitido por brigas internas.

Suas primeiras histórias foram publicadas na Harper's Bazaar, quando tinha vinte e poucos anos. Muito bem recebidas, com o romance "Other voices, other rooms" (1948) e a novela "The grass harp" (1951), consolidaram sua fama precoce.

Com uma ampla gama de escritores e artistas, figuras da alta sociedade e uma constante presença na mídia, passou a dedicar suas forças ao palco — adaptou The grass harp e escreveu o musical House of flowers — ao jornalismo e, também ao cinema.

O assassinato de uma família no Kansas fez com que Capote se interessasse pelo assunto e, após, muita investigação, escreveu o famoso "A sangue frio" (1966), seu livro mais aclamado e de maior sucesso.

Truman Capote faleceu no dia 25 de agosto de 1984.

Outros livros do autor:

- Travessia de verão
- Música para camaleões
- Bonequinha de luxo
- Os cães ladram — Pessoas públicas e lugares privados

Baptista Nunes (1883 – ?)



Renato BAPTISTA NUNES nasceu em Vassouras (Estado do Rio), a 2 de março de 1883. Foram seus pais o poeta e jornalista João Baptista Nunes e Inésia de Oliveira Nunes, professora que lhe ensinou as primeiras letras. Em 1893 veio para a cidade do Rio de Janeiro, onde continuou seus estudos e seguiu a carreira militar. Formou-se em engenharia militar na Escola de Artilharia e Engenharia de Realengo. Foi comandante da Escola de Estado-Maior do Exército.

Para muitos dos seus conhecidos será uma surpresa a descoberta desta outra face da personalidade de Baptista Nunes: a de poeta, ou melhor ainda - a de trovador. Autor de dezenas de trovas, nunca publicadas em livro, é possuidor de alta sensibilidade e de grande inclinação para o gênero.

Vizinho de lado de Gilson de Castro, somente após sete anos soube que este era "Luiz Otávio" . Começou então, em 1951, a dirigir-lhe algumas trovas que eram colocadas na caixa de cartas, e que da mesma maneira, eram respondidas ... Esta correspondência durou alguns meses antes de se falarem. Animado pelo trovador vizinho, continuou a compor trovas corri freqüência e aperfeiçoamento. Foram Publicadas pela primeira vez na imprensa Pelo "Diário de Notícias,, do Rio, em 1952 e, depois, em vários jornais do Interior.

Desconfiado de que os elogios feitos às suas trovas pelo seu vizinho eram reflexos de simpatia e amizade, resolveu enviar a Adelmar Tavares urnas trovas de sua autoria, a fim de que fossem julgadas Por quem não o conhecia.

Do querido trovador brasileiro recebeu afetuosa carta' na qual, entre outras coisas, Ihe dizia: seu livro com muito prazer. Deparei com trovas verdadeiramente admiráveis.. . " E mais adiante., "...V. é um verdadeiro trovador. Suas cantigas têm música e simplicidade. Muitas são lindíssimas, e eu, trovador velho, as assinaria com alegria."

Sim, muitas são lindíssimas, repetimos nós. Baptista Nunes possui o dom do trovador. Sua quadras têm o verdadeiro espírito da trova. E qual será esse espírito da trova?! - É algo sutil, indefinível e inexplicável... Talvez um conjunto de virtudes encontradas nas grandes trovas e nos legítimos troveiros. Quem sabe se é a poeticidade aliada a um grande poder de síntese, apresentada de forma espontânea, melodiosa e diferente?! ... Seja como for, quando se lê uma boa trova sente-se nela esse espírito que é corno um misterioso perfume percebido pelas almas sensíveis que apreciam, compreendem e amam esse delicado gênero poético.

Tendo essa capacidade de captar o espírito da trova, tendo longa experiência da vida e dos homens, sendo um poeta em estado latente, não foi difícil para Baptista Nunes percorrer com êxito os vários matizes que a trova oferece. Lírico, delicadamente lírico muitas vezes, escreve trovas repletas de espiritualidade e de beleza como esta:

"Velhinha diante do altar,
nada dizia e chorava ...
Mas aquela prece muda,
Nossa Senhora escutava..


ou esta:

"Uma esperança a morrer,
uma ventura a findar...
e vai na trova nascer
uma saudade a cantar!"

Seu fino espírito de ironista é colocado em várias de suas quadras. Neste livro não encontraremos muitas. Mas podem ser notadas algumas. Esta, por exemplo não está entre as cem:

"A mulher nunca nos mente,
e disso muito se ufana;
diz, talvez, coisa por outra...
Mas quem é que não se engana?"

O conceito, o pensamento, também podem ser observados no seu trovar. Vejam esta, por exemplo, tão expressiva e profunda:

"Um só gesto que conforte
vale, em vida, muito mais
que chorar, depois da morte,
pela ausência de seus pais."

Muitas e muitas outras quadras, que os leitores não encontrarão nas páginas a seguir, são também de grande valia e mereceriam aqui figurar. Para terminar as citações transcrevo uma delicada e lírica imagem sobre a saudade:

"Saudade, bendita sejas,
alma do bem que morreu;
saudade, só tu me ensejas
rever o bem que foi meu! ...

Ao iniciarmos a publicação da Coleção "Trovadores Brasileiros", obedecendo ao esquema de trazer ao público três livros de cada vez: de um trovador falecido, de um grande trovador vivo e o de um estreante, acreditamos que fizemos justa e boa escolha, lembrando os nomes de Belmiro Braga, Lilinha Fernandes e de Baptista Nunes.

Quem recebeu de Adelmar Tavares tão expressivas e elogiosas palavras não precisaria de outras justificativas para explicar a sua presença como estreante, em livros de trovas, nesta Coleção. Temos quase a certeza de que os apreciadores do gênero, ao terminarem a leitura deste livrinho, terão a mesma impressão que tivemos. E hão de sentir toda a beleza dessas trovas espontâneas e harmoniosas, bem feitas e sentidas, guardadas num coração emotivo há tantos anos e que, em momento feliz, desabrocharam magnífica e exuberantemente, para a alegria de nossas almas e o encantamento dos leitores.
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continua...as 100 trovas
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Fonte:
J.G. de Araujo Jorge e Luiz Otavio. 100 Trovas de Baptista Nunes. vol.3. Prefacio de Luiz Otávio.

Mário Carneiro Junior (O Lençol)



Aviso aos leitores desavisados: Este é um conto de terror.
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Boa noite, minha querida. Já está confortável debaixo de suas cobertas? Bom, então vou contar a história que prometi.

Aconteceu quando eu tinha mais ou menos sua idade, uns doze anos, quase treze. Eu dormia exatamente como você, sabia? De barriga pra cima e coberto da cabeça aos pés. Meu pai dizia que eu ficava parecendo um morto no necrotério. Ah, papai... Foi por causa dele que tivemos que sair de Curitiba e nos mudar pro interior. Motivos profissionais.

Bom, a cidadezinha era legal até, muito bonita e arborizada, tinha bastante espaço pra andar de bicicleta e tudo mais. Mas também tinha lá seus problemas, tipo, no começo as pessoas olhavam pra mim como se eu fosse um alienígena. Nada pessoal, qualquer um que vinha de fora recebia o mesmo tratamento caloroso. Demorei pra fazer amigos e... Ah, eu já contei isso antes, né? Esquece, vamos voltar ao principal.

O maior problema daquele lugar era o clima, muito mais quente do que eu estava acostumado. As noites abafadas não traziam alívio. Eu queria deixar o ventilador ligado no máximo em minha direção, mas mamãe não deixava. Dizia que eu ficaria doente, então me obrigava a mantê-lo virado pro outro lado, apenas para circular o ar. Estávamos sem dinheiro para comprar um ar condicionado, e ficar com a janela aberta estava fora de questão. Mania de cidade grande, deixar tudo fechado.

Continuei dormindo do mesmo jeito, todo encoberto. Eu já não acreditava que algo agarraria meu tornozelo se ele ficasse para fora, porém o hábito de infância estava enraizado. Pra não morrer cozido, tive que substituir os cobertores por um lençol. Mesmo assim ainda esquentava bastante, eu dormia mal e acordava encharcado de suor.

Então, numa noite que fazia a gente acreditar em coisas como combustão humana espontânea, resolvi largar aquele hábito idiota de uma vez por todas. Porém, ficar com o corpo inteiro descoberto seria um passo muito grande, então deixei apenas a cabeça e os braços para fora. Aliviou o calor um pouquinho. Já era alguma coisa, mas por outro lado, comecei a me sentir incomodado, vulnerável. Como não precisaria acordar cedo na manhã seguinte – era noite de sábado pra domingo – resolvi insistir naquilo, até que finalmente consegui.

Consegui perder o sono.

Fiquei deitado de olhos abertos, pensando em como a vida podia ser um chute no saco de vez em quando. E assim fiquei durante um tempão, até perceber um movimento vindo do armário. Parecia que uma das portas estava se abrindo.

De início, achei que era um vento mais forte passando entre as frestas da janela, mas as cortinas estavam paradas. Fiquei olhando na direção da porta como se estivesse hipnotizado, a abertura ficando cada vez maior. Comecei a ficar com medo, e me cobri inteiro com o lençol.

Não é nada, pensei, isso acontece de vez em quando. Portas que não estão bem fechadas acabam se movimentando sozinhas. Sim, eu repetia esse pensamento sem parar, mas não conseguia afastar aquela impressão cada vez mais forte.

A sensação de que alguém havia saído de dentro do guarda-roupa, e agora estava parado ao meu lado.

Fiquei imóvel, tentando não respirar ou emitir qualquer som, o coração batendo tão forte que chegava a ser doloroso. Assim permaneci durante um bom tempo, até a sensação acabar.

Não tive coragem de conferir se aquilo havia ido embora. Só quando a luz da manhã atravessou as fissuras da janela, consegui adormecer.

Acordei com minha mãe chamando para almoçar. Tirei o lençol do rosto e olhei pra porta que havia visto se abrir durante a noite. Estava fechada. Puxei-a após um momento de hesitação, e como você deve imaginar, não havia nada ali dentro. Minto, havia camisetas e calças penduradas, nada que me deixasse propenso a fugir gritando. À luz do dia, foi muito fácil concluir que havia imaginado tudo.

Quando a noite chegou, eu já não tinha tanta certeza.

Mas não podia falar nada pros meus pais. Papai me daria uma bronca, afinal eu estava velho demais pra ter medo do bicho-papão, e mamãe confiscaria todos os meus gibis de terror. Aqueles antigos, sabe, tipo “Histórias Reais de Drácula” ou “de Lobisomem”... Mais uma vez revistei o armário inteiro, à procura de qualquer coisa estranha. Não encontrei nada, e pra mim estava ok.

Apaguei a luz e fui pra cama, me cobrindo todo. Tá, não havia nada para me preocupar, mas já havia perdido a vontade de abandonar o costume. Além disso, aquela noite estava menos quente, dava pra dormir numa boa. Dormi mesmo, só que acordei com sede durante a madrugada. Sempre deixava um copo de água no criado mudo, mas agora estava meio receoso de estender o braço para pegar. Fiquei nessa dúvida até a secura em minha garganta se tornar insuportável, então tirei o lençol do rosto e olhei pro armário, só pra me certificar que estaria fechado.

Não estava.

Fiquei imóvel, olhando para a porta até meus olhos se acostumarem com a escuridão. Sim, não havia dúvida, estava entreaberta, mas e daí? Dessa vez eu não estava assustado! Bom, não muito. Sentei na beirada da cama e fiquei parado por alguns momentos, tomando coragem para ficar em pé e fechar aquele maldito guarda-roupa. Isso acabaria com meu medo de uma vez por todas. Respirei fundo e levantei, caminhando rápido até o móvel aberto.

Quando comecei a empurrar a porta, uma mão pálida saiu lá de dentro e tentou agarrar meu pulso.

O que aconteceu no instante seguinte eu não lembro. Lembro apenas de estar novamente em minha cama, escondido embaixo do lençol. Sim, teria sido mais inteligente correr até o quarto dos meus pais, mas naquela hora não pensei em mais nada, estava aterrorizado. De maneira frenética, testei com os pés se o lençol ainda estava bem preso embaixo do colchão, e cerrei os punhos sobre a beirada que cobria minha cabeça. Antes que tivesse tempo de negar o que havia visto, senti que o fantasma vinha em minha direção. Não, não estava vendo ele, mas sua presença era tão intensa que dava no mesmo. Eu queria gritar, mas estava paralisado.

Aquilo estava chegando cada vez mais perto, com os braços estendidos.

Minha bexiga se soltou, acrescentando vergonha ao terror absoluto. Cerrei os dentes, esperando o momento em que aquelas mãos de cadáver iriam me arrastar pra fora da cama. Elas já estavam a centímetros do meu pescoço...

E então pararam.

A coisa ficou imóvel durante um longo tempo, depois afastou os braços e começou a caminhar ao redor da minha cama.

Procurava alguma coisa, talvez uma parte desprotegida.

Isso me deu esperanças, achei que se estivesse totalmente coberto, a assombração não conseguiria me pegar. E assim esperei, na expectativa, a garganta tão seca que chegava a doer. Eu tremia e soluçava baixinho, rezando para aquilo ir embora. Se funcionou eu não sei, pois em algum momento perdi os sentidos.

Acordei na manhã seguinte, com meu pai chamando para ir à escola. Pulei da cama e o abracei, chorando, sem me importar se levaria bronca ou não. Criança é tão boba... É óbvio que meu pai não brigou comigo, apenas me abraçou bem forte e perguntou o que havia acontecido. Mamãe também despertou e fomos todos pra cozinha, onde contei tudo. Nossa, eles foram tão legais, me acalmaram e disseram que havia sido um pesadelo, essa coisa básica, mas em compensação não me trataram como aqueles pais idiotas dos filmes de terror, que negam tudo até ser tarde demais. Deus, como sinto saudades deles...

Revistaram o quarto junto comigo, e nem falaram nada sobre o cheiro de urina em minha cama e pijama. Claro, não encontramos nada de anormal, mas eu ainda estava alarmado. Mamãe disse que eu poderia dormir com eles até meu medo passar. Adivinha se não aceitei?

Como não compartilhavam da minha mania de dormir coberto, tive que me enrolar inteiro no meu lençol. Papai disse que eu já não era mais um morto no necrotério, e sim uma múmia. Bom, você pode achar que tudo ficou bem, agora que eu estava no meio de dois adultos, certo? Quem me dera.

Naquela mesma noite, o fantasma retornou.

Saiu do guarda-roupa dos meus pais, provocando um rangido abafado na dobradiça, depois ficou me rondando com avidez. Aterrorizado, comecei a dar cotoveladas na minha mãe, tomando cuidado para não sair do meu casulo. No momento que ela acordou, senti aquilo indo embora. Mamãe acendeu o abajur, olhou pelo quarto – o armário estava fechado de novo - e me garantiu que não havia nada ali.

Assim que ela voltou a dormir, escutei aquele rangido de novo. Acordei-a de novo e tudo se repetiu, com a diferença de que agora havia uma leve impaciência em sua voz. Tentei despertar meu pai na outra vez, mas ele tinha um sono pesado demais. Resignei-me e esperei quietinho, até a aparição desistir.

Aquilo se repetiu por muitas noites. Meus pais insistiam que eu estava sonhando, ou então era o medo me fazendo ver coisas que não existiam. O medo podia fazer a manga de uma camisa ficar parecida com um braço, que tentava puxar a gente para um lugar escuro. Fazia sentido pra eles, e eu me desesperava por não poder provar que estavam errados.

Comecei a sofrer de insônia, queria que a luz ficasse acesa, me recusava a voltar ao meu quarto. Meus pais foram ficando cada vez mais preocupados, achando que aquela fase não era tão passageira quanto supunham. Fizeram minha vontade e tiraram o guarda-roupa do quarto deles. Eu lembro bem dessa noite, porque fiquei mais relaxado e até me arrisquei a dar uma espiada fora do lençol. O abajur estava aceso e fiquei passando os olhos por todo o recinto, na expectativa. Estava quase me cobrindo de novo, quando percebi alguém escondido atrás da cortina.

Ah, dessa vez eu consegui gritar. E como.

É óbvio que não havia nada lá quando meus pais acordaram, e no dia seguinte, me levaram a um psicólogo. Ele disse umas coisas interessantes, que eu estava estressado com a mudança de ambiente e com a solidão, além disso era normal ter medo naquela idade. À medida que fosse crescendo, meu temor iria diminuir de forma gradativa. Nisso ele estava certo, mas demorou algum tempo.

Todas as noites antes de deitar, eu precisava conferir obsessivamente se meu cobertor estava bem preso embaixo do colchão, com medo que se soltasse durante a noite. Nos mudamos de casa e eu ganhei um quarto sem móveis ou cortina, apenas minha cama. Desolado, descobri que o visitante noturno não precisava de nada disso para me encontrar, embora tivesse uma estranha preferência por guarda-roupas.

As noites de terror só acabaram quando comecei a tomar remédios para dormir. Coisa forte mesmo, tarja preta. Logo que eu engolia os comprimidos, corria pra cama e me enrolava em meu escudo de tecido, então esperava aquele doce torpor me envolver.

Os meses foram passando e arranjei alguns amigos. Aquela história de “medo pregando peças” parecia cada vez mais verossímil. Os anos vieram sem eu perceber, minha voz engrossou e comecei a me interessar pelas garotas.

O fantasma era apenas uma lembrança distante quando comecei a diminuir a medicação.

Ainda acordei algumas madrugadas com a impressão de não estar sozinho, porém era bem mais tênue dessa vez. Bastava pensar em outra coisa, e aquilo acabava. Meu temor foi enfraquecendo aos poucos, então um dia, sem mais nem menos, a sensação acabou para sempre.

Eu havia crescido.

Continuei dormindo todo encoberto, mas isso era novamente um hábito, não uma compulsão. Entrei na faculdade e fui morar numa república de estudantes. Agora, eu só lembrava das minhas aventuras de infância quando alguém da roda começava a contar histórias de terror. Eu contava minhas experiências - sempre omitindo o fato de ter mijado na cama - e meus relatos faziam bastante sucesso. Mas eu acho que a Carol nem prestou atenção. Ela era minha namorada na época, e foi ela que levantou meu lençol na primeira noite que passávamos juntos. Lembro de acordar meio sonolento com ela perguntando “por que está dormindo desse jeito, seu bobo?”.

O fantasma agarrou meu pescoço antes que eu tivesse tempo de responder.

Puxou-me pra fora da cama e começou a me arrastar em direção à porta do armário, num pesadelo cego de luzes apagadas. Minha namorada berrava de forma histérica, sem entender o que estava acontecendo. Eu esperneava e lutava em pânico, sem conseguir me livrar dos dedos gelados que esmagavam minha traquéia. Ainda tentei me segurar na beirada do guarda-roupa. Farpas entraram na minha mão e duas ou três unhas se quebraram, sendo arrancadas da minha carne. Nem me importei com a dor, só queria escapar.

Não adiantou.

Quando senti o tecido das roupas deslizando por meu rosto, desmaiei.

Desmaiei ou morri.

Não sei quanto tempo fiquei inconsciente, só lembro que quando abri os olhos, havia apenas escuridão. No instante seguinte, escutei o grito da assombração que me trouxera até ali. Estava me procurando. Fugi para bem longe, até os urros de frustração se tornarem meros sussurros ecoando nas trevas.

Vaguei durante muito tempo sozinho, gritando por socorro. Muitas vezes ouvi outros pedidos de ajuda, na maioria com vozes de crianças. Em outras ocasiões, escutei apenas berros insanos. Nunca encontrei ninguém. A solidão se tornou desesperadora e já estava quase enlouquecendo, quando bati em algo. Parecia a porta de um guarda-roupa.

Empurrei e cheguei aqui, no seu quarto.

Desde então, volto todas as noites. Sei que não pode me escutar, mesmo assim eu converso com você para espantar minha própria solidão. Vejo pelas fotos que está crescendo rápido. Não cometi o erro de ser visto, então logo você não sentirá mais minha presença. Vai concluir que eu não existo, aí será só questão de tempo para que abaixe o cobertor, deixando seu pescoço ou braço desprotegido.

Serei mais inteligente do que a coisa que me raptou.

Quando eu te puxar para dentro do armário, nunca mais vou te soltar.
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Sobre o Autor
Nascido em Curitiba, já publicou contos nos livros Draculea, Invasão, Alterego e Galeria do Sobrenatural, na revista Scarium Megazine, em fanzines impressos (Astaroth e Juvenatrix antigos), fanzines eletrônicos (Astaroth e Juvenatrix novos, no TerrorZine) e diversos sites (como o Boca do Inferno). Acredita que a publicação de seu livro solo não demora muito. Tomara
.

Fonte:
A Lua Mortal. /

Dante Mendonça (Pela Própria Natureza)


São diversos os mapas do Paraná. Norte, Sul, Leste, Oeste, cada qual enxerga o Paraná conforme lhe parece. Com o sol das três fronteiras alargando o horizonte, me acomodei no alto de uma árvore do Parque do Iguaçu e desenhei o mapa do Paraná, segundo a divisão geopolítica vista pela República Independente de Foz do Iguaçu.

Foz do Iguaçu é independente por natureza. E se assim não é de fato e de direito, falta pouco para o brado retumbante às margens plácidas do lago Itaipu. Visto lá do alto, o território de Foz do Iguaçu abrange a Argentina, o Paraguai e mais uma área de 199.314 km² que se estende até o Ocenao Atlântico. Terras essas pertencentes à 5ª Comarca de São Paulo, até 1853, e que agora, pelo menos na cartografia oficial, diz-se de jurisdição do Estado do Paraná. O que parece verdade, em parte: do ponto de vista das Cataratas, Curitiba nem mesmo é capital. Para alguns iguaçuenses, não passa de nascente do Rio Iguaçu. Outros, mais benevolentes, admitem Curitiba como a Cidade Industrial da Foz.

Isto, Serra Acima. Serra Abaixo, Paranaguá é o entreposto de importação da Região Metroplitana de Foz do Iguaçu, que comprende Puerto Iguazu, Ciudad del Leste e mais algumas povoações da Argentina e Paraguai. Antes de grande valia para o intercâmbio comercial com o mundo, o Porto de Paranaguá hoje é de relativa importância para a Costa Oeste, dizem os entendidos da logística muambeira: depois que o governador Roberto Requião trancou com a chave da discórdia o livre comércio portuário, o calado do Canal da Galheta pouco importa. Um metro ou dez metros, tanto faz. Através da bacia do Prata, agora os navios de todas as bandeiras descarregam os containers “in loco”, na barranca do Rio Paraná.

A única preocupação da República Independente de Foz é que, num próximo decreto sem pé nem cabeça (até ano passado, pelo menos 13 leis e decretos do governo haviam sido derrubados pelo Supremo), Roberto Requião decrete os importados como produtos transgênicos. Com isso, o “vizinho” governador só iria desmerecer o conceito de seriedade do comércio local perante o mundo.

Não fossem os escorchantes pedágios do Paraná, Foz do Iguaçu contaria com uma infraestrutura até razoável. Apesar de acanhado porte, o aeroporto Afonso Pena vem cumprindo sua função de trampolim para as Cataratas. De Curitiba, onde passa algumas horas conhecendo a cidade do alto do ônibus para depois comer galinha com polenta em Santa Felicidade, o turista tem algumas opções menores no Paraná: passeio de litorina na Serra do Mar, seguido do Barreado em Morretes; turismo rural nas coxilhas de São Luiz do Purunã, com suas belas pousadas; os campos de Guarapuava; uma ou outra fazenda de café em extinção na região de Londrina; comprar bonés em Apucarana; a Festa Nacional do Porco no Rolete de Toledo; isso antes do destino final: Cataratas do Iguaçu, uma das 7 Maravilhas do Mundo.

Com se não bastasse tanta autossuficiência (citar energia é covardia), a República Independente de Foz do Iguaçu possui dois dos melhores times de futebol do mundo, Grêmio e Internacional.

E mar, quem precisa de mar, tendo o Oceano de Itaipu a seus pés?

(*) Dante Mendonça é jornalista e artista gráfico em Curitiba, Pr. O texto foi publicado originalmente na Coluna de Dante Mendonça no Paraná Online

Fonte:
Jornal Guatá.

Dante Mendonça (Lançamento de “Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente”)



Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente” é o novo livro de Dante Mendonça. Cartunista, jornalista e escritor, neotrentino radicado em Curitiba desde 1970, Dante de certa forma continua e amplia seu último livro, “Curitiba, Melhores Defeitos, Piores Qualidades”. Naquele, a capital era o tema. Neste, desfilam história, ficção, curiosidades, “causos” e aspectos pitorescos das cidades do Paraná, o “Brasil Diferente” de Wilson Martins.

Serra Acima é o planalto, Serra Abaixo é o litoral. Serra Acima estão, por exemplo, os Campos Gerais, com seu dicionário específico. Ou o leitor dele se serve antes de viajar para a região ou ficará muito complicado entender o que as pessoas querem dizer, em sua fala sincopada. É uma mistura de sotaque leitE quentE com termos campeiros, de sílabas e letras às vezes engolidas.

Serra Abaixo está o mar. Mas também está o berço do barreado, um prato de substância, talvez da beira do Atlântico, talvez de margens mais fluviais. Uma origem, pois, controvertida. Onde foi mesmo, de verdade, que nasceu esta mistura de carne e temperos que cozinha em fogo lento, por mais de um dia inteiro, na panela de pressão primitiva, barreada com “cola” de farinha, cinza e água? Antonina, Morretes, Paranaguá? A resposta exigiu um Simpósio do Barreado, de debates temperados pelo espírito de notáveis daqui e de alhures, de ontem e de hoje. Em debate que tem carmelengo pra garantir a lisura dos trabalhos, as falas às vezes são destemperadas, mas tudo termina em paz.

O livro, temperado pelo humor de Dante, tem ilustrações de Benett e capa desenhada por Solda. Um trio que estará unido no dia do lançamento, dia 13 de março, a partir das 11h, no Restaurante do Passeio Público, em Curitiba. Vai ter a feijoada tradicional e um barreado orientado pelo marumbinista Paulo Henrique Schmidlin, o Vitamina. A hora do almoço terá animação da Filarmônica de Antonina.

Enfim, será um sábado Serra Acima, com música de Serra Abaixo e se Deus quiser, o sol também.

Serviço:

Lançamento do livro “Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente” (Editora Bernúncia, 551 páginas, R$ 50,00).

Local: Restaurante do Passeio Público

Data e horário: 13 de março de 2010 (sábado), às 11h, com barreado no cardápio e show da Filarmônica Antoninense (das 12 às 13 horas).

Autor: Assessoria de Imprensa

Fonte:
Fundação Cultural de Curitiba

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trova 124 - Arlindo Tadeu Hagen (Juiz de Fora/MG)

Cláudio de Souza (Reflexão)


"Só morre o homem que viveu apenas a vida do corpo. Esse devolve à terra tudo que recebeu. Mas os homens que refletem sua vida na vida dos outros, os que se transpõem de si mesmos para a coletividade, deixam na herança luminosa a eficiência póstuma da ação fertilizante. Do túmulo dos primeiros nenhuma luz se acende além dos fátuos fogos da decomposição; do túmulo dos segundos, a luz duradoura que ultrapassa os séculos".

Cláudio de Souza (1876 - 1952)
_________
Fonte:
Edson Ribeiro Scabora. Pais & Filhos: a arte de educar nossos filhos transformando crianças em homens. Maringá,PR: Ed. do Autor, 2008.

Cláudio de Souza (1876 - 1954)



Cláudio de Sousa (C. Justiniano de S.), médico e teatrólogo, nasceu em São Roque, SP, em 20 de outubro de 1876, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de junho de 1954.

Era filho do escrivão Cláudio Justiniano de Sousa e de Antônia Barbosa de Sousa, e casado com Luísa Leite de Sousa, filha dos barões de Socorro. Feitos os estudos preliminares em São Roque, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se formou em Medicina em 1897. Desde os 16 anos colaborava na imprensa carioca, em O Correio da Tarde e A Cidade do Rio.

Diplomado, foi residir em São Paulo. Ali instalou consultório médico e continuou colaborando na imprensa paulistana. Foi professor de Terapêutica na Escola de Farmácia de São Paulo, hoje integrada à USP. Em 1909, juntamente com um grupo de intelectuais, foi um dos fundadores da Academia Paulista de Letras. Na imprensa, escreveu também sob os pseudônimos Mário Pardal e Ana Rita Malheiros.

Em 1913, mudou-se para o Rio de Janeiro. Passou então a dedicar-se inteiramente à ficção e ao teatro, deixando a clínica médica. Naquele ano estreou na literatura com o romance Pater, muito bem recebido pela crítica. Suas peças de teatro, como Flores de sombra (1916) e O turbilhão (1921), obtiveram êxito com sucessivas representações.

Iniciador do teatro ligeiro de comédia, escreveu diversas peças, todas muito apreciadas e levadas com idêntico sucesso no país e no exterior. Pronunciou conferências, no Brasil e no exterior, reunindo-as em volumes. Publicou igualmente diversos livros registrando impressões de viagem.

Foi presidente da Academia Brasileira de Letras por duas vezes, em 1938 e 1946. No ano do cinqüentenário de fundação da ABL, como presidente, promoveu as solenidades comemorativas e editou o volume ilustrado Revista do Cinqüentenário.

Foi o fundador (1936) e primeiro presidente do Pen Clube do Brasil.

Terceiro ocupante da Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 28 de agosto de 1924, na sucessão de Vicente de Carvalho e recebido pelo Acadêmico Alfredo Pujol em 28 de outubro de 1924. Recebeu os Acadêmicos Osvaldo Orico e Clementino Fraga.

Bibliografia
Além dos relatos de viagem e obras de ficção, Cláudio de Sousa escreveu inúmeras peças teatrais, em geral ligeiras e humorísticas, muitas delas traduzidas para outros idiomas. Além da literatura e teatro, deixou ainda vários artigos e textos médicos.

Teatro
Mata-a ou Ela te Matará (1896);
Eu Arranjo Tudo (1916);
Flores de Sombra (1916);
O Assustado das Pedrosas (1917);
Um Homem que Dá Azar (1918);
Outono e Primavera (1918);
A Jangada (1920);
A Sensitiva (1920);
O Turbilhão (1921);
O Exemplo de Papai (1921);
O Milhafre (1921);
Os Bonecos Articulados (1921);
Uma Tarde de Maio (1921);
Ave, Maria (1921);
O Galho Seco (1922);
O Conto do Mineiro (1923);
A Escola da Mentira (1923);
Noves Fora... Nada (1924);
A Matilha (1924);
A Arte de Seduzir (1927);
Os Mestres do Amor (1928);
Os Arranha-céus (1929);
O que não existe (1933);
Rosas da Espanha (1933);
O Grande Cirurgião (1933);
Papai, Mamãe, Vovó (1936);
Fascinação (1936);
Pátria e Bandeira, (1942);
Le Sieur de Beaumarchais, (1942).

Ficção e relatos
Pater, (1913);
A Conversão, (1917);
Ritmos e Idéias, ensaios (1917);
Da Eva Antiga à Eva Moderna, conferência (1917);
Maria e as Mulheres Bíblicas, conferência (1921);
De Paris ao Oriente, viagem, 2 vols. (1921);
Os Infelizes, romance (1926);
As Mulheres Fatais, romance (1928);
As Conquistas Amorosas de Casanova, romance (1931);
Um Romance Antigo, (1933);
Três Novelas, (1933);
Nosso Primeiro Comediógrafo, conferência (1934);
O Teatro Brasileiro, conferência (1935);
Viagem à Região do Pólo Norte, (1939);
Terra do Fogo, viagem (1939);
O Humorismo de Machado de Assis, conferência (1939);
Impressões do Japão (1940);
Os Paulistas, seu Passado, seu Presente, conferência (1941);
O Teatro Luso-brasileiro do Século XVI ao XIX, conferência (1941);
Raul Pompéia, conferência (1941);
Os Últimos Dias de Stefan Zweig, ensaio biográfico (1942);
A Vida e o Destino, contos (1944);
Sol e Sombra, contos (1945);
Assistência aos Escritores, conferência (1944);
Pirandello e seu Teatro, conferência (1946).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Monteiro Lobato (A Policitemia de Dona Lindoca)



Dona Lindoca não era feliz. Quarentona bem puxada, apesar dos trinta e sete anos em que fizera finca-pé, via pouco a pouco chegar a velhice com seu empaste de feições, rugas e macacoas.

Não era feliz, porque nascera com o gênio da ordem e do asseio meticuloso – e agente assim passa a vida a amofinar-se com criados e coisinhas. E como também nascera casta e amorosa, não ia com o desamor e desrespeito do mundo. O marido jamais lhe retribuíra o amor como os mimos entressonhados em noiva. Não tinha “caídos”, nem usava para a sua sensibilidade, sempre menineira, desses pequeninos nada cariciosos que para certas criaturas constituem a suprema felicidade na terra.

Isso, porém, não traria a dona Lindoca mal de monta, excedente a suspiros e queixas às amigas, se a certeza da infidelidade do Fernando não visse um dia estragar tudo. Estava a boa senhora a escovar-lhe o paletó quando sentiu vago aroma suspeito. Foi logo aos bolsos – e apanhou o corpo de delito num lencinho perfumado.

- Fernando, você deu agora para usar perfume? – indaga a santa esposa, aspirando o lenço comprometedor. E “Coeur de Jeannette”, inda mais...

O marido, pegado de surpresa, armou a cara mais alvar de toda a sua coleção de “caras circunstanciais” e murmurou o primeiro rebate sugerido pelo instinto de defesa: - você estar sonhado, mulher...

Mais teve de render-se à evidência, logo que a esposa lhe chegou ao nariz o crime. Há coisas inexplicáveis, por mais lépida que seja a presença de espírito de um homem traquejado. Lenço cheiroso no bolso de marido que jamais usou perfume, eis uma. Põe em ti o caso, leitor, e vai estudando desde já uma saída honrosa para a hipótese de te suceder o mesmo.

- Pilhéria de mau gosto do Lopes ...

O melhor que lhe acudiu foi lançar à conta do espírito brincalhão do seu velho amigo Lopes mais aquela. Dona Lindoca, está claro, não engoliu a grosseira pílula – e desde aquele dia entrou a suspirar suspiros de um novo gênero, com muita queixa às amigas sobre a corrupção dos homens.

Mais a realidade era diferente de tudo aquilo. Dona Lindoca não era infeliz; seu marido não era um mau marido; seus filhos não eram maus filhos. Gente toda ela muito normal, vivendo a vida que todas as criaturas normais vivem. Dava-se apenas o que se dá sempre na existência da generalidade dos casais pacíficos. A peça matrimonial “Multiplicativos” tem um segundo ato em excesso trabalhoso na procriação e criação dos rebentos. É uma doradoura de anos, na qual os atores principais mal têm tempo de cuidar de si, tanto lhes monopolizam as energias os cuidados absorventes da prole. Nesse período longo e rotineiro, quanto perfume vago não trouxe da rua o doutor Fernando! Mas o olfato da esposa, sempre saturado com o cheirinho das crianças, jamais deu tento de nada.

Um dia, porém, começou a dispersão. Casaram-se as filhas e os filhos foram deixando o borralho um por um, como passarinhos que já sabem fazer uso das asas. E como o esvaziamento do lar ocorreu no período muito curto de dois anos, o vácuo trouxe a dona Lindoca uma penosa sensação de infelicidade.

O marido não mudara em coisa nenhuma, mas como só agora dona Lindoca tinha tempo de dar-lhe atenção, parecia-lhe mudado. E queixava-se dos seus eternos negócios fora de casa, de sua indiferença, do seu “desamor”. Certa vez, perguntou-lhe ao jantar:

- Fernando, que dia é hoje?
- Treze, filha.
- Treze, só?

Está claro que treze só. Impossível que fosse treze e mais alguma coisa. É da aritmética.

Dona Lindoca arrancou um suspiro dos mais sugados.

- Essa aritmética antigamente era bem mais amável.

Pela aritmética antiga, hoje não seria treze só – e sim treze de julho...

O doutor Fernando bateu na testa.

- É verdade, filha! Não sei como me escapou que é hoje dia dos teus anos. Esta cabeça...
- Essa cabeça não falha quando as coisas a interessam. É que para você eu já passei...

Mas console-se meu caro. Não me ando sentindo bem e breve deixarei você livre no mundo. Poderá então, sem remorso, regalar-se com as Jeannettes...

Como as recriminações alusivas ao caso do lenço perfumado fossem uma “Scie”, o marido adotara a boa política de “passar”, como no pôquer. “Passava” todas as alusões da esposa, meio eficaz em torcer em germe o pepino de um debate tão inútil quão indigesto. Fernando “passou” a Jeannette e aceitou a doença.

- Sério? Sente qualquer coisa, Lindoca?
- Uma ansiedade, uma canseira, isto desde que vim de Teresópolis.
- Calor. Estes verões cariocas derrancam até aos mais pintados.
- Sei quando é calor. O mal-estar que sinto deve ter outra causa.
- Nervoso, então. Por que não vai ao médico?
- Já pensei nisso. Mais, a qual médico?
- Ao Lanson, filha. Que idéia! Pois não é o médico da casa?
- Deus me livre. Depois que matou a mulher do Esteves? Isso quer você...
- Não matou tal, Lindoca. É tolice propalar essa maldade inventada por aquela canina da Marocas. Ela é que diz isso.
- Ela e todos. Voz corrente. Além do mais, depois daquele caso da corista di Trianon...

O doutor Fernando espirrou uma gargalhada.

- Não diga mais nada! – exclamou. – adivinho tudo. A eterna mania.

Sim, era a mania. Dona Lindoca não perdoava a infidelidade do marido, nem do seu nem do das outras. Em matéria de moralidade sexual não cedia milímetro. Como fosse de natural casta, exigia castidade de todo mundo. Daí o desmerecerem ante seus olhos todos os maridos que na voz das comadres andavam de amores fora do ninho conjugal.Aquele doutor Lanson perdera-se no conceito de dona Lindoca não porque houvesse “matado” a mulher do Esteves – pobre tuberculosa que mesmo sem médico tinha de morrer –, mas porque andara às voltas com uma corista.

A gargalhada do marido enfureceu-a.

- Cínicos! São todos os mesmos... Pois não vou ao Lanson. É um sujo. Vou ao doutor Lorena, que é homem limpo, decente, um puro.
- Vai filha. Vai ao Lorena. A pureza desse médico, que eu cá chamo hipocrisia requintada, com certeza lhe há de ajudar muito a terapêutica.
- Vou sim, e nunca mais me há de entrar aqui outro médico. De Lovelaces ando eu farta – concluiu dona Lindoca sublinhando a indireta.

O marido olho-a de soslaio, sorriu filosoficamente e, “passando” o “Lovelaces”, pôs-se a ler os jornais.

No dia seguinte, dona Lindoca foi ao consultório do médico puritano e voltou radiante.

- Tenho uma policitemia – foi logo dizendo. – garante ele que não é grave, embora requeira tratamento sério e longo.
- Policitemia? – repetiu o marido com vincos na testa, sinal de que entendia suas pitadas de medicina.
- Que espanto é esse? Policitemia, sim, a doença da minha margarida e da grã-duquesa Estefânia, disse-me o doutor. Mas cura-me, assegurou – e ele sabe o que diz. Como é fino o doutor Lorena! Como sabe falar!...
- Sobretudo falar...
- Já vem você. Já começa a implicar com o homem só porque é um puro... Pois, quanto a mim, só sinto té-lo conhecido agora. É um médico decente, sabe? Fino, amável, muito religioso. Religioso, sim! Não perde a missa das onze na Candelária. Diz as coisas de um modo que até lisonjeia agente. Não é um sujo como o tal Lanson, que anda metido com atrizes, que vê humores em tudo e põe as clientes nuas para examiná-las.
- E o teu Lorena como as examina? Vestidas?
- Vestidas, sim, está claro. Não é nenhum libertino. E se o caso exige que a cliente se dispa em parte, ele aplica os ouvidos mas fecha os olhos. É decente, ora aí está! Não faz do consultório casa de encontros.
- Venha cá, minha filha. Noto que você fala com leviandade de sua doença. Tenho minhas noções de medicina e parece-me que essa tal policitemia...
- Parece nada. O doutor Lorena afirmou-me que não é coisa de matar, embora de cura lenta. Doença até distinta, de fidalgos.
- De rainha, grã-duquesa,sei...
- Só que exige muito tratamento – sossego, regime alimentar, coisas impossíveis nesta casa.
- Por quê?
- Ora essa. Quer você que uma dona de casa possa cuidar de si tendo tanta coisa em olhar? Vá a pobre de mim deixar de matar-se na trabalheira para ver como isto vira de pernas para o ar. Tratamento na regra, só para essas que tomam o marido das outras. A vida é para elas...
- Deixemos isso, Lindoca, até cansa.
- Mas vocês não se cansam delas.
- Elas, elas! Que elas, mulher? – exclamou, já exasperado, o marido.
- As perfumadas.
- Bolas.
- Não briguemos. Basta. O doutor... ia-me esquecendo. O doutor Lorena quer que você apareça por lá, no consultório.
- Para quê?
- Ele dirá. Das duas às cinco.
- Muita gente a essa hora?
- Como não? Um médico daqueles...Mas a você não fará esperar. É negócio à parte da clínica. Vai?

O doutor Fernando foi. O médico desejava adverti-lo de que a doença de dona Lindoca era grave, havendo perigo sério caso o tratamento que prescrevera não fosse seguido à risca.

- Muito sossego, nada de contrariedades, mimos. Principalmente mimos. Indo tudo a contento, num ano poderá estar boa. Do contrário, teremos mais um viúvo em pouco tempo.

A possibilidade da morte da esposa, quando assim se antolha pela primeira vez ao marido de coração sensível, abala profundamente. O doutor Fernando deixou o consultório e rodando para casa ia a recordar o tempo róseo do namoro, o noivado, o casamento, o enlevo dos primeiros filhos. Não era meu marido. Podia até figurar entre os ótimos, no juízo dos homens que se perdoam uns aos outros os pequenos arranhões no pacto conjugal, filhos da curiosidade adâmica. Já as mulheres não compreendem assim, e dão demasiado vulto a borboleteios que muitas vezes só servem para valorizar as esposas aos olhos dos maridos. Assim é que a notícia da gravidade da moléstia de dona Lindoca despertou em Fernando um certo remorso, e o desejo de redimir com carinhos de noivos os anos de indiferença conjugal.

- Pobre Lindoca. Tão boa de coração... Se azedou um bocado, a culpa foi só minha. O tal perfume... Se ela pudesse compreender a absoluta insignificância do frasco donde emanou aquele perfume...

Ao entrar em casa indagou logo da esposa.

- Está em cima – respondeu a criada.

Subiu. Encontrou-a no quarto, numa preguiçosa.

- Viva a minha doentezinha! E abraçou-a e beijo-a na testa.

Dona Lindoca espantou-se.

- Ué! Que amores esses agora? Até beijos, coisas que me dizias fora da moda...
- Vim do médico. Confirmou-me o diagnóstico. Não há gravidade nenhuma, mas exige tratamento de rigor. Muito sossego, nada de amofinações, nada que abale o moral. Vou ser o enfermeiro da minha Lindoca e hei de pô-la sãzinha.

Dona Lindoca arregalou os olhos. Não reconhecia no indiferente Fernando de tanto tempo aquele marido amável, tão perto do padrão com que sempre sonhara. Até diminutivos...

- Sim – disse ela –, tudo isso é fácil de dizer, mas sossego de fato, repouso absoluto, como, nesta casa?
- Por que não?
- Ora, você será o primeiro a dar-me aborrecimentos.
- Perdoe-me, Lindoca. Compreenda a situação. Confesso que não fui contigo o esposo entressonhado. Mas tudo mudará. Você está doente e isto vai fazer com que tudo renasça – até o velho amos dos vinte e anos, que não morreu nunca, apenas encasulouse.

Não imagina como me sinto cheio de ternura para com a minha mulherzinha. Estou todo lua-de-mel por dentro.

- Os anjos digam amém. Só receio que com tanto tempo o mel já esteja azedo...

Apesar de mostrar-se assim tão incrédula, a boa senhora irradiava. O seu amor pelo marido era o mesmo dos primeiros tempos, de modo que aquela ternura o fez logo reflorir, à imitação das árvores desfolhadas pelo inverno a um chuvisco de primavera.

E a vida de dona Lindoca mudou. Os filhos passaram a vir vê-la com freqüência – logo que o pai os advertiu da vida periclitante da boa mãe. E mostravam-se muito carinhoso e solícitos. Os parentes mais chegados, também por influxo do marido, amiudaram as visitas, de tal jeito que dona Lindoca, sempre queixosa outrora de isolamento, se fosse queixar-se agora seria de solicitude excessiva.

Veio uma tia pobre do interior tomar conta da casa, chamando a si todas as preocupações amofinantes.

Dona Lindoca sentia um certo orgulho da sua doença, cujo nome lhe soava bem aos ouvidos e fazia abrir a boca dos visitantes – policitemia... E como o marido e os demais lhe lisonjeassem a vaidade enaltecendo o chique das policitemias, acabou por considerar-se uma privilegiada.

Falavam muito na rainha Margarida e na grã-duquesa Estefânia como se fossem pessoas de casa, havendo um dos filhos conseguido e posto na parede o retrato de ambas. E certa vez que os jornais deram um telegrama de Londres, noticiando achar-se enferma a princesa Mary, dona Lindoca sugeriu logo, convencidamente:

- Vai ver que é uma policitemia...

A prima Elvira trouxa de Petrópolis uma novidade de sensação.

- Viajei com o doutor Maciel na barca. Contou-me que a baronesa de Pilão Arcado também está com policitemia. E também aquela grandalhona loura, mulher do ministro Francês – a Grouvion.
- Sério?
- Sério, sim. É doença de gente graúda, Lindoca. Este mundo!... até em questão de doença as bonitas vão para os ricos e as feias para os pobres! Você, a Pilão Arcado e a Grouvion, com policitemia – e lá a minha costureirinha do Catete, que morre dia e noite em cima da máquina de costura, sabe o que lhe deu? Tísica mesentérica...

Dona Lindoca fez cara de nojo.

Eu nem sei onde “essa gente” apanha tais coisas.

Outra ocasião, ao saber que uma sua ex-criada de Teresópolis fora ao médico e viera com o diagnóstico de policitemia, exclamou, incrédula, a sorrir com superioridade:

- Duvido! A linduína com policitemia? Duvido!... Vai ver que quem disse tal bobagem foi Lanson, aquela topeira.

A casa virou perfeita maravilha de ordem. As coisas surgiam à hora e no ponto, como se anões invisíveis estivessem a prover tudo. A cozinheira, ótima, fazia pitéus de arregalar o olho. A arrumadeira alemã dava idéia de uma abelha em forma de gente. A tia Gertrudes era uma nova governanta de casa como jamais existiu outra.

E nenhum barulho, todos na ponta dos pés, com “psius” aos estouvados. E presentinhos. Os filhos e noras jamais esqueciam a boa mamãe, ora com flores, ora com os doces de que ela mais gostava. O marido fizera-se caseiro. Deu jeito aos negócios e pouco saía, e à noite nunca, passando a ler para a esposa os crimes dos jornais nas raras vezes em que não tinha visitas.

Dona Lindoca começou a viver vida de céu aberto.
- como me sinto feliz agora! – dizia. – Mas para que nada haja perfeito, tenho a policitemia. Verdade é que esta doença não me incomoda em nada. Não a sinto absolutamente – além de que é uma doença fina...

O medico vinha vê-la amiúde, mostrando boa cara à doente e má ao marido.

- Demora ainda, meu caro. Não nos iludamos com aparências. As policitemias são insidiosas.

O curioso era que dona Lindoca realmente não sentia coisa nenhuma. O mal-estar, a ansiedade do começo que a levara a consultar o médico, de muito que havia passado. Mas quem sabia da sua doença não era ela, e sim o médico. De modo que enquanto ele não lhe desse alta, teria de continuar nas delícias daquele tratamento.

Certa vez, chegou a dizer ao doutor Lorena:

- Sinto-me boa, doutor, completamente boa.
- Parece-lhe, minha senhora. O característico das policitemias é iludir assim os doentes, e pô-los derreados ou liquidados, à menor imprudência. Deixe-me cá levar o barco a meu modo, que para outra coisa não queimei as pestanas na escola. A grã-duquesa Estefânia também se julgou boa, certa vez, e contra o parecer do médico assistente deu-se alta a si própria...
- E morreu?
- Quase. Recaiu e foi um custo pô-la de novo no ponto em que estava. O abuso, minha senhora, a falta de confiança no médico, tem levado muita gente para outro mundo...

E repetiu ao marido aquele parecer, com grande encanto de dona Lindoca, que não cessava de abrir-se em elogios ao grande clínico.

- Que homem! Não é a toa que ninguém diz “isto” dele, Neste rio de Janeiro das más-línguas.

“Amantes, minha senhora”, declarou ele outro dia à prima Elvira, “ninguém me apontará jamais nenhuma”.

O doutor Fernando ia se saindo com uma ironia à moda antiga, mas recolheu-se a tempo, por amor ao sossego da esposa, com a qual jamais esgrimira depois da doença. E resignou-se a ouvir o estribilho de sempre: “É um homem puro e muito religioso. Fossem todos assim e o mundo seria um paraíso”.

Durou seis meses o tratamento de dona Lindoca e duraria doze, se um belo dia não rebentasse um grande escândalo – a fuga do doutor Lorena para Buenos Aires com uma cliente, moça de alta sociedade.

Ao receber a notícia dona Lindoca recusou-se a dar crédito.

- Impossível! Há de ser calúnia. Vai ver como ele logo aparece por aqui e tudo se desmente.

O doutor Lorena jamais apareceu; o fato confirmou-se, fazendo dona Lindoca passar pela maior desilusão de sua vida.

- Que mundo, meu Deus! – murmurava. – em que mais acreditar, se até o doutor Lorena faz dessas?

O marido rejubilou-se, por dentro. Sempre vivera engasgado com a pureza do charlatão, comenta todos os dias em sua presença sem que ele pudesse explodir o grito d’alma que lhe punha um nó na garganta: “Puro nada! É um pirata igual aos outros”

O abalo moral não fez dona Lindoca recair enferma, como era de supor. Sinal de que estava perfeitamente curada. Para melhor certificar-se disso o marido lembrou-se de consultar outro médico.

- Pensei no Lemos de Souza – sugeriu ele. – está com muito nome.
- Deus me livre! – acudiu logo a doente. – dizem que é amante da mulher de Bastos.
- Mas trata-se de um grande clínico, Lindoca. Que importa o que lá do seu namoro dizem as más-línguas? Neste Rio ninguém escapa.
- A mim importa muito. Não quero. Veja outro. Escolha um decente. Sujeiras não admito aqui.

Depois de comprido debate acordaram em chamar Manuel Brandão, professor da escola e já em adiantado grau de senilidade. Não constava que fosse amante de ninguém.

Veio o novo doutor. Examinou cuidadosamente a doente e ao cabo concluiu com absoluta segurança.

- Vossa excelência não tem nada – disse ele. – absolutamente nada.

Dona Lindoca pulou, muito lépida, da sua preguiçosa.

- Então sarei de uma vez, doutor?
- Sarou... Se é que esteve doente. Não consigo ver sinal nenhum em seu organismo de doença presente ou passada. Quem foi o médico?
- O doutor Lorena...

O velho clínico sorriu, e voltando-se para o marido:

- É o quarto caso de doença imaginária que o meu colega Lorena (aqui entre nós, um refinadíssimo patife) leva a explorar durante meses. Felizmente raspo-se para Buenos Aires, ou “desinfetou” o Rio, como dizem os capadócios.

Foi um assombrado. O doutor Fernando abriu a boca.

- Mas então...
- É o que lhe digo – reafirmou o médico. – A sua senhora teve qualquer crise nervosa que passou com o repouso. Mas, policitemia, nunca! Policitemia!... até me espanta que tão grosseiramente pudesse o tal Lorena iludir a todos com essa pilhéria...

A tia Gertrudes voltou para sua casa no interior. Os filhos foram se tornando mais parcos nas visitas – e os demais parentes idem. O doutor Fernando retornou a vida de negócios e nunca mais teve tempo de ler crimes para a desconsolada esposa, sobre cujos ombros recaiu a velha trabalhadeira de zelar pela casa.

Em suma, a infelicidade de dona Lindoca voltou com armas e bagagens, fazendo-a suspirar suspiros ainda mais profundos que os de outrora. Suspiros de saudade. Saudade da policitemia…


Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Alfredo de Castro (Trovas)


Quem dá flores com freqüência
para alegrar sofredores,
guarda nas mãos toda a essência
que se desprende das flores!

Ela passa, e o seu perfume
deixa um rastro na calçada
E eu morrendo de ciúme
finjo que não sinto nada!

Ninguém sabe, nesta lida,
onde a surpresa é mais forte:
se nos mistérios da vida
ou nos segredos da morte!

Amanheço, contemplando
essa beleza sem par.
do ouro do sol enfeitando
as águas verdes do mar!

Vou mandar fazer, mulata,
numa oficina de artista,
duas sandálias de prata
para os seus pés de sambista!

Quando a nossa mocidade
vai-se embora, tristemente,
é que a sombra da saudade
passa a ser sombra da gente!

Eu comparo o meu carinho
quando embalo a neta amada,
ao pôr-do-sol, de mansinho,
embalando a madrugada!

Num constante desafio
vão medindo os seus valores,
a fúria do mar bravio
e a calma dos pescadores!

Em noites de serenata,
a lua, lá no horizonte,
é uma coroa de prata
que o céu ostenta na fronte!

O mundo farto de escolhos,
descuidado em seus desvelos,
tingiu de roxo os meus olhos
e de prata os meus cabelos!

Sempre vazio o plenário...
Não tem jeito, não há meio...
- "Agora é o nosso salário!"
E o plenário ficou cheio!

A bondade é um sábio meio
de ajudar-se e de ajudar:
"Quem enxuga o pranto alheio
não tem tempo de chorar"!

Mudemos juntos a Terra,
que é só conflitos e dor,
trocando as glórias da guerra
pelas vitórias do amor!

Quem na vida quer vencer,
sentir o sabor da glória,
nunca deve se esquecer:
- sem luta não há vitória!
==============

Alfredo de Castro (1922)


Nasceu em Pouso Alegre, MG, a 8 de junho de 1922. Filho de Rodrigo Pereira de Castro e de Amélia de Castro. Casado com Haydée Coutinho de Castro. Tem 4 filhos, 9 netos e uma bisneta. Bacharel em Direito e Técnico em Contabilidade. Gerente-Adjunto aposentado da Caixa Econômica Federal. Náufrago-de-guerra e Ex-Combatente do Exército Brasileiro no último conflito mundial.

Ocupou a cadeira nº 32 da antiga Arcádia de Pouso Alegre, fundada pelo Dr. Jorge Beltrão. É Membro efetivo da AHARPA (Associação Histórica e Artística de Pouso Alegre). Colaborou com vários jornais, revistas, coletâneas e mostras de arte. Possui em sua galeria perto de duas centenas de troféus, medalhas, cartões de prata e diplomas, como prêmios por sua participação em Concursos de Trovas e em Jogos Florais. É Membro Fundador da Academia Pousoalegrense de Letras, ocupando a cadeira nº 18, cujo patrono é Dr. José Antônio Garcia Coutinho.

Publicou: "Fagulhas Evangélicas", trovas, 1953; "Torpedeamento", poema, 1955; Participou das seguintes coletâneas publicadas pela Arcádia de Pouso Alegre: "Coletânea Poética", sonetos, 1955; "5 Poetas em 1 Livro", sonetos, 1956; "Cigarras em Desfile", trovas, 1957; "Garimpeiros de Sonhos", sonetos, 1957; "Cantigas de Pouso Alegre", trovas, 1963; "Enquanto o Mandu. Corre", trovas, 1964; "Na Taça da Saudade", trovas, 1979; "Em Prosa e Verso", sonetos, trovas e contos, publicados pela Academia Pouso-Alegrense de Letras, 1996, e, "Cantigas do Mandu", trovas, 1998.

Fonte:
http://www.ubtjf.hpg.ig.com.br

quarta-feira, 10 de março de 2010

Trova 123 - Bastos Tigre (Recife/ PE)

J. G. de Araújo Jorge (As Seis Faces da Mulher)



Uma vez, numa entrevista, quiseram saber qual era, para mim, a mulher ideal. Fisicamente? Não, o jornalista queria saber mais, referia-se ao espírito, a alma, a personalidade. Se a pergunta se cingisse ao físico, eu não resistiria a tentação de roubar alguns versos de Vinícius, da sua "Receita de Mulher". Só alguns, esta claro. Mas acrescentaria outros. Vinícius não se refere, por exemplo, aos cabelos. E para mim, mais que os, olhos, que os lábios, os cabelos são um elemento de importância definitiva. Não emolduram apenas o rosto, os olhos, os lábios, mas toda a mulher. Dão-lhe um toque de graça especial.

Naturalmente tem que ser leves, finos, soltos, para que o vento brinque de poesia com eles. Já perguntei num poema:

"A visão do teu pescoço branco, velado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia:
Ah! não será isto poesia?"

E num outro:

"Gosto de encher as mãos com os teus cabelos
como um lavrador a recolher, feliz
as louras messes de uma farta colheita."

Não importa, entretanto, a cor, o tom que apresentem: podem fazer noite, tarde ou manhã, virem carregados de sombra ou de sol.

" Quando em teus cabelos louros
ou negros
mergulho o rosto,
parece
que faz sempre sol-posto
que a noite mansamente nos meus olhos desce!"


Importa é que sejam bastos, esvoaçantes como gazes, como painas, como sonhos. Em matéria de mulher sou contra qualquer racionamento. Subscreveria, em que pese a minha vocação socialista, aquele verso de Vinícius:

". . . E que existe um grande latifúndio dorsal."

Também já confessara:

"Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas."

Mas estas respostas não serviriam a pergunta do entrevistador.
Qual a mulher ideal, para mim?

Lembro-me de que respondi que ideal é sempre a mulher que a gente gosta, e que nos compreende. Mas pensei depois no assunto, e nasceu o poema. A mulher ideal, única, tem seis faces. Seis faces que a tornam múltipla, e infinita, para a nossa vida, a nossa ternura, o nosso amor. Na realidade, há todas as mulheres, na mulher que a gente ama. Disse isto no poema:

" As Seis Faces... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

Fontes:
Crônicas de JG de Araujo Jorge extraído do livro " No Mundo da Poesia " Edição do Autor, 1969.
Imagem = Montagem sobre desenho obtido em http://soimagens.blogs.sapo.pt/

Aparecido Raimundo de Souza (Mulher ideal)


A Mulher ideal …
É aquela que se apresenta perante a sociedade como a mais formosa dama.
Mas quando na intimidade partilhe todos os segredos..

Enfim, a Mulher ideal …
É aquela que mesmo não sendo Deusa, sabe como ninguém trazer um pedacinho do céu.
(Anônimo)
______________
Qual seria, na sua concepção, meu caro leitor amigo, a mulher perfeita? Seria aquela que os antigos veneravam como a Amélia, que era de verdade, que não fazia exigências, que passava fome e achava bonito dormir no chão, eternizada nos versos de Ataulfo Alves? Ou uma mistura de Marilyn Monroe em Nunca fui Santa e Anita Eckberg em A Doce Vida de Fellini? Qual seria, afinal, a mulher dos sonhos de cada um de nós, simples mortais? Na prática, essa deusa seria a que o Roberto Carlos imortalizou na sua Mulher de 40? Será que ainda pode ser encontrada alguma dessa espécie numa esquina qualquer do destino?

Segundo uma determinada corrente, a mulher ideal é como peça rara de museu, jóia não encontrada em lugar nenhum. Diamante não lapidado. Aquela que não gasta telefone, nem água, nem luz, nem bebe refrigerante em excesso. A mulher ideal não frequenta salões de beleza requintados, não faz fofoca com as amigas, não pinta as unhas de vermelho, não tinge os cabelos com cores berrantes, não usa brincos, não usa piercing, nem raspa as pernas. Não usa sapatos de grife, nem veste roupas caras nem põem os cartões de crédito do marido à beira de um ataque de histerismo.

A mulher ideal não gasta, ou melhor, não desperdiça sabão em pó, nem água sanitária. Não usa o fogão e, por conseqüência, mantém cheio o botijão de gás. Não quebra copos, não suja pratos, nem diz palavrões. Tampouco solta gases em festinhas de crianças ou reuniões importantes. Alheia a caras feias, não seduz, se deixa ser cantada, emprega seus dias da melhor maneira, tentando aprimorar o conhecimento e expandir os horizontes. Jamais paga o mico de falar mal do seu amado quando ele chega quase ao romper da manhã.

É impecável, submissa, leal, econômica, companheira, sobretudo, companheira. Tem o nobre dom de tocar na mente daquele que ousa a se ajoelhar a seus pés estimulando o infeliz a realizar tarefas importantes, como a ir ao mercado, levar o cachorrinho para fazer pipi, comprar o jornal de domingo e aturar a sogra achata e rabugenta. A mulher ideal sabe como ser a amante exata, como distribuir seus encantos e atributos na medida certa, e, acima de tudo, aprende com a convivência diária como deixar o coração da sua cara metade com as batidas descompassadas, mas sem que o sujeito tenha um infarto e caia fulminado.

Não usa óculos escuros, jamais sai de casa de saia comprida, ao contrario, vai para as ruas com essas sainhas esvoaçantes que, ao sabor do vento, deixam à mostra as frutas saborosas que deixa qualquer homem de olhos esbugalhados. A mulher ideal é aquela vidrada em calcinhas minúsculas, a que veste blusinhas que permitem ficarem os seios em constante estado de ebulição. A mulher ideal é lógica, e, dentro dessa lógica, não comete certas asneiras como: arranjar um cara duro que pinte no pedaço só para tirar umazinha, também não trai, não flerta, ou arranja uma barriga indesejável só para dizer para as amigas que “é linda a gravidez”.

Extremamente fina e requintada nos menores gestos, onde chega abafa. A mulher ideal, nesse emaranhado todo, se assemelha àquela marca italiana e muito cobiçada de automóvel, a Ferrari. É sensual, nunca passa dos vinte anos, vive nativa do seu ar de superioridade, mas, ao mesmo tempo, é humilde a ponto, inclusive, de se mostrar soberba e impecável no andar, e no modo de se vestir. Sabe como atrair o oposto sem trair os sentimentos verdadeiramente de quem ama e os deixa expostos, a céu aberto. A mulher ideal não se importa com a pouca carne do traseiro magro, nem em transformar os pneuzinhos e culotes em fantasmas a lhe assombrarem diante do espelho.

Milagrosa, consegue freqüentar academias sem aparecer por lá, como igualmente ao visitar o dentista deixá-lo de boca geometricamente aberta. Faz chover em dia de sol, nevar em pleno calor e, quando gosta de verdade, deixa que a volúpia do amor maior atravesse o corpo da criatura que ama, de um lado para outro, sem se importar com seu coração safenado.

Para outro seguimento, todavia, a mulher ideal é ainda mais complexa: escorregadia, gentil, não contesta, seduz com palavras as próprias palavras, não pensa em luxúria, não se embriaga, é tolerante e não tropeça na estupidez das desvairadas, nem se deixa dominar pela burrice enfática das loiras. É, acima de tudo, forte, briguenta, boa no meio do campo, sabe chutar as bolas para o gol e no momento exato derrubar o goleiro por mais forte e esperto que seja, ou queira parecer, diante da sua rede. É livre de pensamentos impuros, conhece os direitos melhor que qualquer advogado, sentencia uma causa como nenhum juiz seria capaz de fazê-lo. É a tábua da salvação para o náufrago, a bóia para o desesperado no meio do rio, a respiração boca-a-boca quando a vida de um moribundo apaixonado está se esvaindo, é a maca para alojar o atropelado no meio da avenida, como o sol quente que brilha resplandecente quando o frio gélido insiste em apertar os ossos.

Para os filósofos e pensadores, a mulher ideal é aquela criatura divina, imaculada, que procura, acima de tudo, uma razão para viver, para a busca constante a si mesma, sem se perder na procura. Mulher ideal é ainda a que se entusiasma com aquelas que almejam um ideal e o alcançam sem pisotear os que vêm logo atrás. Para os loucos, bem, para os loucos, a mulher ideal é aquela que beija os pés, ajoelha, reza, engole o suor supremo com o objetivo de alcançar o êxtase da fome que a devora por dentro. É a regra que quebra todas as regras, que passa por cima de tabus e preconceitos e supera o insuperável.

É ainda, a mulher ideal, a que fala a língua dos homens e dos anjos, como também a do diabo e dos quintos do inferno. Para os aficcionados em sexo, a mulher ideal é aquela que já vem com os motores esquentados - a que se entrega convidativa a um passeio agradável por seu corpo. Vive somente para dar, não na acepção da palavra, mas igualmente receber, dar e se dar, às avessas, sem amarras, sem subterfúgios; receber reciprocamente, e, nessa reciprocidade, ser tocada, tocar, extasiar, gritar, urrar, ir às nuvens. Com o que o seu homem trouxe da rua, na comida colocar o seu tempero secreto, a sua massa de tomate, o seu coentro, o seu eu; misturar salsa, cebolinha, pedacinhos de pimentão e uma pitada quase invisível de bom óleo português e, em seguida, colocar tudo na panela e fritar, cozinhar a fogo alto, e acabe virando comida de primeira, incendiada em escala interplanetária.

Para a maioria, bem, para a maioria, que é a que realmente conta, a mulher ideal não existe. É utópica e onipresente. Inexistente como Deus no céu. Nasceu morta, ou melhor: sequer chegou a ser concebida.

Fontes:
Colaboração do Autor
– Imagem = http://meuslivros.weblog.com.pt/

Dinair Leite (Paranavaí Trovadoresco)

Praça do Japão (Paranavaí/PR)
Pela Maria da Penha,
lei-justiça conquistada,
quebro pau e queimo lenha
mas, congraço a mulherada!

Nossa vida fica triste,
vendo Jesus na paixão,
porém nossa alma resiste
e espera a ressurreição!

Não pule do trem do tempo
em desembarque apressado.
Viaje sem contratempo
e não pare adiantado.

Raiz? O que são raízes?
São alinhavos de Deus,
juntando os homens felizes,
quer sejam cristãos ou ateus...

Da inocência e da virtude
Deus capacitou o ser,
e deu-lhe franca atitude
do livre-arbítrio exercer!

Você que não me respeita,
a você eu sempre arrosto:
- Sai de perto, não me peita,
pois respeito é bom e eu gosto!

Quem nasceu pra dar amor
fraternal e compaixão,
é feliz se tira a dor
do seu próximo irmão.

Inocência adorna a fronte
de toda pessoa nova,
depois se esvai no horizonte
mas, volta perto da cova.

Se a violência o esfola,
tristeza no peito cresce
de quem fez do crime escola
sem ver, que o que sobe desce...

Quero ser sempre a criança
com desejo de estudar,
curiosa e na esperança
de nunca me completar...
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Fonte:
Colaboração da autora