quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Cidoca da Silva Velho (Álbum de Trovas)


1
A aurora – incêndio de rosas –
noiva astral de um belo dia,
faz das nuvens vagarosas
sua corte em romaria.
2
A mulher nunca se cansa,
sonda o arcano mais profundo...
A mão que um berço balança
é a mão que governa o mundo.
3
Ao ouvir a serenata,
em devaneios tristonhos,
vem a saudade e desata
dentro de mim velhos sonhos!
4
Ao pranto e ao riso se alinha
a chuva de vez em quando.
Cai chorando e faz festinha
nos beirais, tamborilando.
5
A seresta enluarada,
velhos tempos despertando,
faz da saudade uma estrada
por onde sigo cantando…
6
A trova, tão minha amiga,
eu levo para onde for;
e vou, com minha cantiga,
disfarçando a minha dor.
7
Batalho, mas mil fracassos
me abatem sempre ao rever-te.
Como encontrar em teus braços
coragem para esquecer-te?
8
Cada minuto que passa,
encurtando a nossa vida,
nos leva ao porto que traça
nossa grande despedida.
9
Cai a noite, escura e fria
e a Fé, que sempre nos fala,
nos aponta um novo dia
e os nossos sonhos embala.
10
Das emoções que eu revejo,
uma em pranto se reveste:
a que ficou no desejo
do beijo que não me deste.
11
Do nosso amor fracassado,
às lembranças eu me enlaço,
embalando o meu passado
na ternura de um abraço.
12
Dos meus sonhos, na distância,
o meu veleiro veloz
navega ainda na infância,
numa casquinha de noz.
13
Em vigília, em noite calma,
a espera nunca me anseia:
na janela de minha alma
mantenho acesa a candeia.
14
Fogo sagrado que aviva,
todo amor em doação
é uma lâmpada votiva
no templo do coração.
15
Foi tudo inútil, suponho!
Brigamos nem sei por quê...
Marco encontro com o sonho
e quem encontro? – Você!
16
Folhas mortas, no abandono,
numa tarde esmaecida,
vêm lembrar o triste outono
dos sonhos de minha vida.
17
Folhas secas vão rolando.
O ocaso é um palco tristonho
que aos poucos vai se fechando
sobre as cinzas do meu sonho!
18
Há estrelas por toda parte:
no céu, na terra, no mar...
E descubro, ao contemplar-te,
mais duas no teu olhar.
19
Hoje esqueço as ampulhetas
do tempo, nos torvelinhos...
Quero a paz das violetas
que se ocultam nos caminhos.
20
Horas mortas! Plena noite!
Entre o sonho e a realidade,
a tua ausência é um açoite
no vendaval da saudade!
21
Mais vale a luz da quimera,
que ilumina uma esperança,
que os sonhos mortos da espera,
na penumbra da lembrança.
22
Mãos de mãe, envelhecidas
pelo labor que enobrece,
são como conchas unidas
pelo labor de uma prece.
23
Mar revolto, se agitando,
lembra a vida em seu passar...
Sou veleiro flutuando,
me equilibrando no mar.
24
Mesmo em contraste na vida,
na dor, a fé nos irmana.
A luz do sol tem guarida
no palácio ou na choupana.
25
Meu filho, quando eu te enlaço
nos meus braços, que ventura!
Sempre és pequeno e eu me faço
teu abrigo de ternura.
26
Não diga adeus! Vai seguindo...
Nesta ilusão que me embala,
deixe a saudade dormindo,
é cedo para acordá-la!
27
Não faças da lealdade
sentimento assim a esmo...
Como início de verdade,
sê leal contigo mesmo.
28
Neste bailado das horas,
no longo espaço da espera,
pergunto: Por que demoras,
se é tão curta a primavera?
29
Neste silêncio das horas
dentro da noite tranquila,
minha alma é o resto de auroras
que pela noite desfila.
30
No berço meu filho dorme,
entre nuvens de cetim;
e numa ternura enorme
sinto o céu bem junto a mim.
31
No deslize descuidado,
ainda que reste o amor,
reflete o cristal trincado,
que perdeu o seu valor!
32
No meio termo acharemos
a virtude, a temperança...
Porque jamais nos extremos
fica o fiel da balança!
33
Nosso encontro... A convivência...
E do amor a descoberta
foi a mais linda sequência
que esta saudade desperta.
34
Num mar em trevas, sem lua,
pedindo aos astros clemência,
minha saudade flutua
abraçada à tua ausência.
35
Os meus sonhos... Não me iludo,
são castelos já sem portas,
mostrando a saudade em tudo,
abrigo das horas mortas.
36
O tempo é lento na espera,
longo, se uma dor persiste,
é breve numa quimera...
para quem ama, inexiste!
37
Para enfeitar seu declínio,
o sol – andarilho louro –
faz do crepúsculo escrínio
onde guarda nuvens de ouro.
38
Quando de mim te aproximas,
com semblante sonhador,
minha alma flutua em rimas,
compondo versos de amor.
39
Que as flores da liberdade
se alteiem pelo caminho,
para ocultar a maldade
do marco de um pelourinho.
40
Se na estrada percorrida,
sangrei os pés, a chorar,
que importa? O encanto da vida
não é viver, é sonhar.
41
Sorri sempre, pois que a vida
é um espelho, e onde estiveres,
vai refletir, na medida,
a cara que tu fizeres.
42
Toda essa felicidade
que procuras por aí,
encontrarás na verdade,
dentro, bem dentro de ti.
43
Toda mãe é para o filho
como a luz que se propaga:
só se avalia o seu brilho
quando a luz, por fim, se apaga!
44
Trago sempre a alma em festa,
que importa se a noite é fria...
faço da trova seresta
embalando a fantasia!
45
Tu mentes e eu te proponho
que continues mentindo,
pois alimentas meu sonho
e eu finjo que estou dormindo...
46
Tu vives no teu mirante;
e eu, na saudade, em açoite,
quero ser, mesmo distante,
uma estrela em tua noite.
47
Uma velhice bem-vinda,
de virtudes enfeitada,
lembra a tarde calma e linda
com fulgores de alvorada!
48
Vencendo o fragor da lida,
à tarde, em que a luz desmaia,
sou como a areia batida,
que se faz duna na praia.
________________
Cidoca da Silva Velho (1920 – 2015)

Maria Campos da Silva Velho, a Cidoca da Silva Velho, nasceu em São Luiz do Paraitinga (SP) em 15 de agosto de 1920, filha de Joaquim Pereira de Campos e Maria Theodora Pereira de Campos, de descendência portuguesa, era sobrinha/neta de duas baronesas e prima do Barão de Paraitinga. Foi Funcionária Pública (Escriturária) da Fazenda do Estado de São Paulo. Era viúva de Renê da Silva Velho (coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, advogado, poeta, escritor, professor de Inglês e Francês), com quem teve dois filhos – Marcelo Campos da Silva Velho (Engenheiro) e Maurício Campos da Silva Velho (Juiz de Direito). Escritora bastante ativa, Cidoca conquistou diversos prêmios literários, bem como pertenceu a entidades literárias: Academia Pindamonhangabense de Letras, Academia de Letras de Campos do Jordão e União Brasileira de Trovadores – Seção Santos. Faleceu em 07 de maio de 2015, aos 94 anos, em Jundiaí/SP, sendo sepultada no Cemitério Nossa Senhora do Desterro, no centro da cidade.

Produção literária:
Esteira de Luz - Poesia: 
Cantigas do Entardecer - Trovas, 
Martins Fontes, sua vida e obra em versos e prosa
Entardecer – Poesia. 
O Águia de Haia.

Fonte:
União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre - RS. 
Trovas de Pedro Melo e Cidoca da Silva Velho. 
Coleção Terra e Céu vol. XCVII. Porto Alegre/RS: Texto Certo, 2016.

Vinicius de Moraes (O Casamento da Lua)


O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça. É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros - ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva – que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, com toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curamse com o próprio amor - eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema da crescente palidez da Lua.

Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-se eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a ideia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.

E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso que o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.

Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.

Fonte:

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) III


SONETO MITOLÓGICO

Próximo, o lago em que se lança a fonte
Onde Canace a frauta rude escuta,
Que lhe diz que o irmão de meiga fronte
Fauno vencera na porfiada luta.

Propícia é a Noite cujo manto enluta
De Flora o reino todo, o bosque, o monte...
Fora, a campina, o intérmino horizonte...
Dentro, o Mysterio na encantada gruta.

O Segredo a espreitar. A sussurrante
Asa passa de Amor. No pétreo solo,
De musgo o leito e de hera verdejante.

E enquanto fora os ventos solta Eólo
Lá dentro o filho, trêmulo, arquejante,
Beija da irmã o incestuoso colo.

CATECÚMENO

Faltem-me embora para o noviciado
Deste amor que conforta e regenera,
Todas as inocências, todo alado
Bando de sonhos que a inocência gera.

Faltem-me e eu venha já, velho e cansado
Velha lenda que veio, de era em era,
Perdendo o brilho, e entre o templo sagrado
Do teu amor empós uma quimera.

Entre - que importa! encontrarei um teto
E o agasalho das Santas Escrituras,
- Peregrino do amor, pagão do afeto.

E o batismo terei para quem ama.
- Amplo Jordão de águas claras e puras -
Água lustrai que o teu olhar derrama.

RETORNO

Olha! volto de novo, - Olha! de novo à crença.
Eu volto. É o mesmo templo. – O teu olhar traspassa
Rasga, ilumina em fogo, a abóbada suspensa
De onde pende do incenso a mesma nuvem baça.

Sinos rebadalando o glorioso repique...
Toda a massa dos fiéis pelos degraus do altar...
Deixa que suba a prece e que a esperança fique
À flor dos corações como algas sobre o mar.

É o mesmo ainda o canto invisível e crente,
O turíbulo de ouro o mesmo fumo evola,
E do órgão gemebundo o queixume plangente
É o mesmo que noss'alma embriaga e consola.

Aquece-me de novo o mesmo fogo interno,
Chora-me dentro d'alma o mesmo cantochão
Que no ouvido me entrou pelo lábio materno
Como um vinho de Cós num cérebro pagão.

Mas uma timidez de neófito me invade,
A alma se me conturba, a vista emarelece...
Sinto-me tropeçar a cada claridade
E a cada treva sinto um corpo em que tropece...

Por que em ti hão achar o desejado guia
Que o vacilante passo, estradas através,
Conduza onde não haja além da luz do dia
Outra luz que não seja a que vejo a teus pés?

Vem! que por tua voz de madrigais suaves,
Fanático, a pisar, enfebrecido e louco,
Eu descubra o caminho através estas naves
E me tires a venda aos olhos, pouco a pouco.

Aceita no agasalho ardente do teu beijo,
A alma cheia de medo e cheia de terror,
E nesta indecisão do primeiro desejo
Mata o dragão do ciúme e dá vida ao amor.

Faze do teu olhar o meu único teto,
A única inspiração me venha do teu riso,
Que eu não sei se haverá noutrem maior afeto,
Se igual dedicação neste mundo diviso.

Queira a fúria de mar que em teus olhos se mira,
Queira a calma de luar que o teu olhar contém,
Naufragar o temor que esta paixão me inspira
E a esperança banhar da alegria que vem!

O RIO GUERREIRO

Rota a vertente, a rocha rebentando,
Impetuoso em esguicho o campo irrora;
Regato agora, agora largo e brando,
De branca espuma a superfície enflora.

Logo torrente o crespo dorso impando,
- Quer seja noite, quer o veja a aurora –
Légua a légua o terreno conquistando,
Vai caudaloso pelo vale em fora.

Ei-lo afinal - o forte curso findo,
Num esforço estupendo, soberano.
Fero, revolto, arroja-se rugindo

Aos loucos roncos vagalhões do Oceano.
A Pororoca o estrondo repetindo
Eternamente do combate insano!...

SALTO DO GUAÍRA

Largo, oceânico, azul, ora margeando
Campina extensa, ora frondosa mata,
Léguas e léguas marulhoso e brando
O rio enorme todo o céu retrata.

Súbito, as águas, brusco, represando
Em torvelins de espuma se desata;
Vertiginoso, indômito, raivando
Ruge, fracassa e tomba em catarata.

Tomba, e de novo em arco se levanta.
Nada a brancura esplêndida lhe turva,
Em tanto resplendor e glória tanta.

TRAPO

Esta que outrora o linho da cambraia
Na pompa da ostentosa lençaria,
- Folhes e rendas que à secreta alfaia
Ornavam com capricho e bizarria –

Era camisa – e que hoje a nostalgia
Sofre do tempo em que entre a pele e a saia
O perfumado corpo lhe cingia, -
Era ao possuí-la, a última atalaia.

Trampo que encerras o embriagante aroma
Do seu colo moreno, poma e poma,
Ora em tiras te vejo desprezado.

E mais te quero, e mais te achego ao peito
Trapo divino! Símbolo perfeito
De um coração por Ela espedaçado.

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Antonio Brás Constante (A Idade que Possuímos e a que nos Possui)


Gosto de dizer aos jovens de todas as idades que a idade é uma ferramenta criada para que possamos nos reinventar a cada 365 dias, sempre com um modelo novo, somando acessórios definidos como experiência em nossa bagagem existencial. Porém, para muitos, a idade serve apenas de desculpa, colocando nela toda culpa pela infelicidade de não se tentar novamente viver. E assim a realidade vai nos puxando pelo braço, e em seu abraço nos acomodamos, nos deixamos padecer.

O que é a velhice forjada pelo tecido dos anos, frente a uma alma eterna? Se não existe uma idade certa para se morrer, quanto mais para nos restringir de viver. O maior problema do ser humano é não conseguir aceitar que foi criado com uma essência imortal, alojada dentro de uma embalagem perecível.

Quando somos fisicamente jovens, nossos hormônios nos gritam loucuras, instigando uma mente ainda meio criança aos seus devaneios obedecer. Não somos trens de carga, obrigados a seguir os caprichos das linhas do destino, mas podemos transformar essas linhas em um belo bordado. Eu, por exemplo, sou viciado em viver; se me privarem desse vício, fatalmente irei morrer.

Dizer que temos um destino já traçado só é válido para quem se conformou. Quem não quer seguir pela única estrada existente em uma montanha, sairá da estrada e escalará a rocha, experimentando a intensidade de cada instante, sem olhar para o que já passou, por saber que o que realmente importa é o momento presente e não aquilo que ficou para trás. Mas as pessoas costumam gastar mais tempo reclamando dos sofrimentos de um único passado, do que buscando a chance de tentarem melhorar inúmeras possibilidades de futuro.

Preconceitos e sentimentos de inveja, mesquinharias, egoísmo são drogas mentais que costumam parasitar em indivíduos que deixaram a juventude morrer em seus corações, agindo como se não tivessem mais nada de bom pelo que viver. Somos crianças convivendo com outras crianças, interpretando papéis escritos em moldes pré-fabricados como corretamente adultos.

Vivemos aglutinados em montinhos de gente, que se intitulam como pretensas sociedades, impondo limites de fronteira (fictícios pedaços de terra) para seus próprios irmãos de carne. Crescemos obedecendo a condutas que estabelecem quando devemos nos sentir crianças, jovens, adultos ou velhos, com base apenas em nossa idade física, sem levar em conta a essência de nosso ser. E assim a sociedade (alimentada por nossa torpe moralidade) vai ditando comportamentos e destruindo a eterna juventude que repousa dentro de cada um de nós, esquecendo que nossa vida é tão breve que não temos tempo de envelhecer.

Não devemos ficar parados nas encruzilhadas da existência, como quem veste uma roupa sem nunca mais querer tirá-la. A arte da eterna juventude consiste em rejuvenescer a cada ano que passa, a cada novo dia. Para que assim possamos chegar ao fim de nossas vidas com a alma tão jovem quanto no dia em que nascemos.

Fonte:
Constante, Antônio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) IV


Cavatina
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)

Tenho ideias confusas e geladas
Sobre a escala do amor onde resplende
Lá,  nesse vivo sol, que mais se acende
Ralentando as promessas calculadas.

A gama dos suspiros não atende,
É de mau tom possuir lindas manadas
Diamantes, que se afinam nas ciladas
Das pausas, que o desejo não entende.

Algumas joias quis com ar guapo
E a compasso dos negros agiotas
Outras requer num pródigo – da capo.

Morre-se – diz o adágio – d'alegria
Portanto se eu pagasse em boas  notas
Expirávamos ambos d'harmonia.

No Teatro Anatômico

Sobre a mesa de mármore luxuosa
Descana cintilante formosura
D'uma criança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.

As alvas romãs, que a virtude esposa
São como alegre ninho de candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena entrega-la á sepultura.

Os estudantes em pródiga algarvia
Retalhando o cadáver delicado
Jogam chufas de sórdida alegria.

Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste ás preleções d'anatomia
À escuta com ar petrificado.

Epitáfio

Meu coração aqui jaz, erma ruína
Onde habita a ironia, o vil fantasma
Golfão anacoreta entre o miasma
Perseguido pela brisa cristalina.

O lírio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-ma
Nas duras garras d'ave de rapina.

Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pálidos desdéns, justos ciúmes
Adora morto e frio a tua sombra.

Até que emfim - oh céus!- os meus queixumes
Te despertam o choro, que me assombra
Envolvendo o cadáver em perfumes!

Aquarela

Acorda a sombra tácita do lago,
Do rouxinol a cândida volata;
A lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom presago.

O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata
E o transporta sutil, como um pirata,
Dando asas ao terror ignoto, vago.

Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strellas trocam beijos delirantes,
Que mais excitam castelã e pajem,

Eis brilha uma couraça junto á margem
E a flecha sibilando alguns instantes
Acaba num só golpe os dois amantes.

Testamento

Lego uma trança do cabelo dela
Para atar um cavalo á manjedoura
E as cartas da flácida impostora
Para embrulhar açúcar e canela.

Ao crédulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janela;
Outrossim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:

Os beijos que me deu ficam comigo
E a memória das noites palpitantes
Há de caber também no meu jazigo.

O seu retrato irá ao lupanar
Pra assistir à luxuria das bacantes
Já que a dona não vai em seu lugar.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Jardim de Versos II


Orlando Lovecchio
Santos/SP

Soneto da Eletricidade

De tudo, ao meu computador, serei atento,
antes e com tal zelo, e sempre, e de modo tão terno
que mesmo em face de um modelo mais moderno
dele serei sempre o tiete mais sedento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
e em seu louvor hei de pagar as contas da Light
que alimenta seus megabytes
sem nenhum pesar ou descontentamento.

E assim, quando mais tarde, num outro dia,
quem sabe a assistência técnica, angústia de quem vive,
pedir pelo seu conserto uns 800 paus,

eu possa dizer do computador que tive:
Que não seja imortal, posto que é fabricado em Manaus,
mas que seja infinito enquanto dure (a garantia)
_____________________________

Alfredo dos Santos Mendes
Lagos/Portugal

O Dilema

A concepção da vida, é um poema…
Que se compõe, sem nunca se escrever!
É um bailado a dois, que irá fazer,
Um musical de amor…um sonho…um tema!

Um tema transformado num dilema,
Que terão de enfrentar, de resolver!
Mais uma personagem vai haver,
Há que pôr no guião, mais uma cena!

Um corpo de mulher em movimento.
Um cântico de amor. Um nascimento.
Atores desempenhando um novo lema!

Vai ter mais um compasso, a melodia.
Vai ter mais uma estrofe, a poesia.
Mas tem final feliz, este dilema!
_____________________________

Alma Welt
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

A Travessia

 "O mundo é um moinho... " (Cartola) 

Todos nós temos corda onde agarrar,
A vida nos dá sempre uma saída
Que nos evite o risco de abismar
No medo natural da própria vida.

Por certo cada um pega o que pode:
Um amor, uma paixão ou mesmo um vício;
Um poema, um soneto ou uma ode,
Um portal com a cruz no frontispício,

Ou então, o que é pior, com um convite
Para entrar mas deixando a Esperança, 
Última paz que o mundo nos permite... 

Mas pra saíres vivo do moinho,
Não como Don Quixote e Sancho Pança,
Terás que atravessar a ti sozinho...
_____________________________

Antônio Manoel Abreu Sardenberg 
São Fidélis/RJ

Alforria

Rompi o elo que me atava a vida,
Dei alforria à falsa liberdade,
Curei a chaga cruel e dolorida,
Joguei no lixo o resto da saudade.

Deixei meus sonhos ao sabor do vento
Vagando solto pelo mundo afora,
Livrei do peito todos os momentos
Que eu guardava comigo até agora.

Livre do laço, então, lanço-me ao léu,
Busco o abrigo que queria tanto,
Não quero mais provar do amargo fel!

Liberto, assim, de todas as correntes,
E já despido do pesado manto,
Busco outro amor sempre seguindo em frente...
_____________________________

Francisca Júlia
Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP (1871 - 1920) São Paulo/SP

Noturno

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
_____________________________

Henrique do Cerro Azul
Fortaleza/CE

Contraste

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
_____________________________

Maria Helena Oliveira Costa
Ponta Grossa/PR

Os grãos do teu rosário

Tratas da terra e nos provês a mesa,
ó tu, simples e rude brasileiro,
que entregas teu vigor à enorme empresa
de fazer do país um bom celeiro!
.
De mãos calosas e coluna tesa,
pões no roçado teu suor inteiro…
E o teu empenho faz da natureza
um promissor e salutar viveiro!
.
No chão bendito jaz um relicário:
dormem sementes já por ti plantadas!
O dia finda e à oração convida…
.
Rezas, por fim… E os grãos do teu rosário
são como contas bem manuseadas
que têm no bojo uma explosão de vida!
_____________________________

Miguel Russowsky
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Joia maior!…

Começo por supor, nos ares, o desenho
De um verso magistral procurando agasalho.
Cabe a mim (sou poeta) encontrar um atalho
Para vê-lo nascer nos recursos que tenho.

Com as rimas gentis nas estrofes, me empenho
Em ser original, (Poucas vezes eu falho),
Já nem ouso explicar se é prazer ou trabalho
Exibir ao leitor as farturas do engenho.

O esmeril dá-lhe o brilho e lhe poda as arestas…
Assim é que se faz um soneto bonito,
Para ser declamado em saraus ou em festas.

Ninguém pode dizer o valor de uma joia,
Se polida não foi pela mão do perito.
É na lapidação que a beleza se apoia.
_____________________________

Vicente de Carvalho
Santos/SP (1866 – 1924)

Inteiramente Louco

Senhora minha, pois que tão senhora
Sois, e tão pouco minha, eu bem entendo
Que sorrindo negais quanto, gemendo,
Amor com os olhos rasos d'água implora.

Meu coração, coitado, não ignora
Que num sonho bem vão todo o dispendo
E é sem destino que assim vai correndo
Cansadamente pela vida afora.

Dizeis do meu amor que é coisa absurda,
E ele, teimando, faz ouvido mouco;
Nem há razão que o desvaneça ou aturda.

Não o escutais? Nem ele a vós tampouco.
Que, se sois surda, inteiramente surda,
Amor é louco, inteiramente louco.