Cavatina
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)
Tenho ideias confusas e geladas
Sobre a escala do amor onde resplende
Lá, nesse vivo sol, que mais se acende
Ralentando as promessas calculadas.
A gama dos suspiros não atende,
É de mau tom possuir lindas manadas
Diamantes, que se afinam nas ciladas
Das pausas, que o desejo não entende.
Algumas joias quis com ar guapo
E a compasso dos negros agiotas
Outras requer num pródigo – da capo.
Morre-se – diz o adágio – d'alegria
Portanto se eu pagasse em boas notas
Expirávamos ambos d'harmonia.
No Teatro Anatômico
Sobre a mesa de mármore luxuosa
Descana cintilante formosura
D'uma criança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.
As alvas romãs, que a virtude esposa
São como alegre ninho de candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena entrega-la á sepultura.
Os estudantes em pródiga algarvia
Retalhando o cadáver delicado
Jogam chufas de sórdida alegria.
Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste ás preleções d'anatomia
À escuta com ar petrificado.
Epitáfio
Meu coração aqui jaz, erma ruína
Onde habita a ironia, o vil fantasma
Golfão anacoreta entre o miasma
Perseguido pela brisa cristalina.
O lírio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-ma
Nas duras garras d'ave de rapina.
Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pálidos desdéns, justos ciúmes
Adora morto e frio a tua sombra.
Até que emfim - oh céus!- os meus queixumes
Te despertam o choro, que me assombra
Envolvendo o cadáver em perfumes!
Aquarela
Acorda a sombra tácita do lago,
Do rouxinol a cândida volata;
A lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom presago.
O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata
E o transporta sutil, como um pirata,
Dando asas ao terror ignoto, vago.
Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strellas trocam beijos delirantes,
Que mais excitam castelã e pajem,
Eis brilha uma couraça junto á margem
E a flecha sibilando alguns instantes
Acaba num só golpe os dois amantes.
Testamento
Lego uma trança do cabelo dela
Para atar um cavalo á manjedoura
E as cartas da flácida impostora
Para embrulhar açúcar e canela.
Ao crédulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janela;
Outrossim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:
Os beijos que me deu ficam comigo
E a memória das noites palpitantes
Há de caber também no meu jazigo.
O seu retrato irá ao lupanar
Pra assistir à luxuria das bacantes
Já que a dona não vai em seu lugar.
Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas.
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883
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