A CHEGADA
Noite de chuva tétrica e pressaga.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.
Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimáría o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso.
Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.
Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
SEM TÍTULO
Amo, e por este amor verto o meu próprio sangue;
E sei que deste amor o que de bom me resta,
É que por to provar eu te irrite, eu te zangue
Pois entraste da intriga a embrenhada floresta.
Mas que importa que o luar importune a avantesma
E que a suspeita gire em torno de uma estima,
Quando essa estima tem a mesma força e a mesma
Vida eterna de um sol que outros astros encima?
Gravitem em redor satélites mesquinhos
Os bastardos da luz, os espúrios da glória.
Que importa! Se este amor por tortuosos caminhos
Beijo a beijo nos leva à suprema vitória?
Os espinhos cruéis se transformam em louros
E a mulher que os teceu vai à imortalidade;
Tira ao Dante Beatriz os egrégios tesouros,
Ou com ele deslumbra ainda hoje a humanidade?
Porventura a nobreza e os brasões de Eleonora
Tinham vida e grandeza iguais ao tempo e o espaço?
Não, que o esquecimento a asa desoladora
Sobre ela vinha abrir – não fora o amor de Tasso!
Que o ódio impotente e vil se definhe e se exaura
No seu esforço vão, - babugento heresiarca –
Que seria de ti, ora aureolada Laura
Se te não perpetuasse o plectro de Petrarca?
Se esses amores, tu, velho gênio da intriga,
Não chegaste a queimar na pira do teu culto
Quando eles tinham só por companheira e amiga
A musa do poeta a perpetuar-lhe o vulto,
Quanto mais destruir este em que duas almas,
Filhas da mesma luz, filhas do mesmo gênio,
Se unem para a conquista ideal das mesmas palmas,
À luz do mesmo teatro e do mesmo proscênio?
Vem! que clamam por ti as vozes do meu verso,
Náufragos a pedir socorro entre os escolhos
Para que em mim concentre e resuma o universo
Basta a constelação que vive nos teus olhos!
DA MINHA JANELA
(Soulary)
Desta janela aberta aos eflúvios de Abril,
Vendo os que vão e vêm, a alma sonha e medita:
- "Pela vida- a lutar nesta faina febril,
Este e aquele, onde vão? de onde vêm nesta grita?”
O que se ama ou se odeia ou se busca ou se evita,
Tudo se cruza aqui numa trama sutil.
- Quantos a morte leva ou seja nobre ou vil,
Enquanto em pleno sol o vivente se agita? -
E penso então que desde o tempo mais distante
A rua vê correr a humana vaga, e nela,
Nada mudar da vida o drama palpitante.
E que outras ondas sempre aqui virão rolar...
Sempre as mesmas! porém, desta minha janela,
Outros - não eu! - virão vê-las ir e voltar...
FLAVA DEA
Da discreta persiana pelas fendas
Cuidadosos passai, raios brilhantes
Do sol! segui-os meu olhar! Instantes
Raros vos mostram as mais raras prendas.
Como das ondas das pagas legendas
Súbito surgem deusas triunfantes.
Saltam-lhe as formas níveas, palpitantes
Da branca espuma das nevadas rendas.
Agora uma; agora esta outra poma;
O ventre agora, agora... - que ansiedade! -
Curva por curva, o corpo todo assoma!
Sol! meu olhar! mais ávidos! pois há de
Ao desprender-se farta a loura coma,
Velar da Deusa a nua majestade.
Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.
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