terça-feira, 25 de setembro de 2018

Olivaldo Júnior (Com a mala cheia de livros*)


Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Clarice Lispector

Pelas ruas, com a mala cheia de livros, acho que pareço um fugitivo de minha própria vida, clandestina essência que me habita e me transmuta em ser. Sou o quê? Poeta, escritor, ensaísta? Não, acho que não sou nada disso. Mas, na instância de tentar fugir com a mala cheia de livros, me livro um pouco de mim, do eu que não tem gostado de ser eu. Eu, que me revisto de palavras, me disfarço com poesia, me refaço a cada letra e melodia, eu mesmo.

Ninguém sabe que, dentro da mala, do oco sem fundo, um mundo, moinho, gira e gera um novo mundo em si. A mala, cheia de livros, denota que um dia eu lerei o que ela contém. Ainda que tenha mais livros do que tempo para ler. “Mas quem quer mesmo sempre acha tempo para tudo...”, dirão alguns, talvez você. Mas careço de tempo. Aliás, não só de tempo, mas de um ser que o administre de forma a fazer meu dia caber em mim, em minha vida.

Abençoado pela mala cheia de livros, que os ganhei, meio que pedi, não vou para casa de pronto. Antes, vou à Oração, quem sabe, só pelo gosto de andar mais um pouco nas ruas com a mala nas mãos, como a exibir seu obscuro conteúdo por aí. Clarice escrevera: Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Carrego, então, o peso da bênção esta noite nas mãos. Ninguém sabe que a mala está cheia de livros. Mas eu, meu ser, ele sabe.
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Nota:
* Escrito ao som de Tocando em frente, canção de Almir Sater e Renato Teixeira, na voz de Maria Bethânia.

Fontes:
Texto enviado pelo autor 

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