sábado, 15 de setembro de 2018

Malba Tahan (Dez anos de kest)


Interessante seria, meu bom amigo, iniciar este conto, à maneira dos escritores clássicos israelitas, citando cinco ou seis pensamentos, admiráveis, colhidos nas páginas famosas do Talmude. Como me recordar, porém, dos trechos mais belos da Sabedoria de Israel, quando é tão fraca, incerta e claudicante a minha memória? Vem-me apenas à lembrança, neste momento, um velho provérbio muito citado pelos judeus russos:

“Quando o homem é feliz, um dia vale um ano.”

A verdade contida nesse aforismo é indiscutível. E a história que a seguir vou narrar poderá servir para ilustrar a minha asserção.

Vivia em Viena, há mais de meio século, um jovem chamado Davi Kirsch, filho de um malamed (professor), homem prudente e sensato. Davi Kirsch adornava o seu espírito com uma qualidade bastante apreciável. Não ousava tomar resolução alguma de certa relevância sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos.

Quando pensou em casar-se, ouviu de seu judicioso pai a seguinte recomendação:

— Cabe-me dizer-te, meu filho, que deverás evitar qualquer casamento quando no consórcio resultar aproximação, por parentesco, com um roiter-id (judeu vermelho).

E acrescentou, em tom grave, com a prudência que a longa experiência da vida só ensinava aos homens:

— Se algum dia, porém, por triste fatalidade, caíres nas garras de um roiter-id procura sem demora o auxílio de outro roiter-id.

Quis o jovem Davi, com grande empenho, conhecer, mais por curiosidade que por outro motivo, a razão de ser daquele estranho conselho, mas o velho malamed se recusou terminantemente a dar, sobre o caso, qualquer explicação, alegando que tinha, para assim proceder, motivos que de consciência não poderia revelar.

Algumas semanas depois, o jovem Davi Kirsch foi procurado por um schatchhen, isto é, por um agenciador de casamentos. Trocadas as saudações habituais — Scholem Aleichem! Aleichem Scholem —, o schatchhen assim falou, assumindo como sempre um ar de máxima reserva e discrição:

— Como sei que pretendemos resolver do melhor modo possível o problema do teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te de que obtive para o teu caso uma solução admirável. A noiva que tenho em vista é formosa, de família honestíssima e, além do mais, muito culta e prendada.

— E o dote? — indagou Davi grandemente interessado, procurando tocar com a máxima finura naquele assunto tão delicado.

— Quanto ao dote — aclarou logo o schatchhen, com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional — está combinado que será de mil coroas e terás, ainda, dez anos de kest!

— Dez anos de kest! — repetiu Davi, numa sinceridade de veemente surpresa. — Mas isto é espantoso, inacreditável!

Sou forçado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor não judeu, isto é, ao meu bom amigo gói (apelido com que os judeus, em geral, designam um indivíduo que não é judeu. O vocábulo “gói” [ou góim] pertence ao idioma denominado ídiche) um esclarecimento que me parece indispensável. O kest é costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, além do dote (que é de uso também entre os cristãos) concede ao genro, a título de auxílio para iniciar a vida, a permissão de viver durante algum tempo em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentação, quer mesmo com o vestuário. Esse período, durante o qual o pai da jovem toma a seu cargo a subsistência completa dos recém-casados, é denominado kest, e em geral varia de um a três anos. Para um jovem egoísta, sem ânimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistível. Era esse precisamente o caso de Davi Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa vida e do feriado permanente.

Dez anos de kest?

Um judeu sensato não poderia hesitar. A cerimônia do noivado, com a clássica apresentação das famílias, foi marcada para alguns dias depois. Quando Davi Kirsch foi levado à presença da sua noiva, ficou maravilhado; o schatchhen não o havia iludido pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, esbelta, cheia de vida, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lábios todos os ímãs inconcebíveis da beleza. Rébla, a filha do rei de Gorner, não parecera mais sedutora aos olhos do grande Salomão! Dela diria certamente o poeta: “De longe parece uma estrela; de perto, uma flor.”

Dolorosa foi, porém, a surpresa do noivo judeu ao defrontar, pela primeira vez, com o futuro sogro. Pela cor fulva dos cabelos, pelas sardas que repintavam o carão avermelhado, era o velho um tipo perfeito e inconfundível de roiter-id! Naquele momento, invadido por negrejante inquietação, recordou-se Davi do conselho que a prudência paterna lhe ditara: “Evitar qualquer aproximação, pelo casamento, com um roiter-id”! Mas que fazer naquela dependura? A sua palavra estava dada, ademais, acima de qualquer compromisso, esmagando dúvidas e receios, os dez anos de kest constituíam um argumento irrespondível diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consórcio que se lhe afigurava tão promissor. 

Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial e o jovem passou a viver, com sua adorada esposa, o seu belo período de kest, em casa do rico roiter-id.

“Esse judeu vermelho”, pensou Davi, desconfiadíssimo do caso, “alguma peça desagradável prepara contra mim. Custa-me acreditar que ele mantenha essa liberalíssima promessa dos dez anos de kest. Naturalmente aqui, em sua casa, terei um tratamento tão vil e humilhante, que nem mesmo um cão seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou três meses, é certo, serei forçado, pela situação, a procurar outro pouso e trabalho. Alguma perfídia o meu sogro já planejou contra mim!”

Com grande espanto, entretanto, o jovem Davi verificou que o pai da esposa era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianças. O roiter-id mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensava ao novo genro um tratamento principesco. Fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeições, proporcionava passeios agradabilíssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.

“Meu pai não tinha razão”, meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejável que desfrutava em casa do sogro. “Que outro marido poderá ser mais feliz do que eu? Rivekelê (diminutivo carinhoso de Rachel), a minha esposa, é encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho, preocupação ou contrariedade, terei, nesta bela casa, mesa sempre lauta, agasalho, carinho e consideração!”

Ao cabo de alguns dias, o velho roiter-id chamou o indolente marido da filha e interpelou-o muito sério:

— Dize-me, ó Davi! És, na verdade, feliz na tua nova situação de homem casado e chefe de família?

— Muito feliz, meu sogro — confirmou o jovem, num retraimento de espanto. — Sinto-me, aqui, incomparavelmente feliz!

— Se assim é — tornou gravemente o judeu vermelho, medindo-o de alto a baixo — se é assim, o teu kest está terminado!

— Terminado o meu kest? — protestou atônito o marido parasita. — Mas se eu estou casado há pouco mais de uma semana! Como pode ser isso?

— Como pode ser? — repetiu o sogro num tom muito sério, tomando uma atitude que irradiava antipatia. — Nada mais simples. Vou provar claramente. Estás casado com minha filha há dez dias. Bem sabes que no livro dos Provérbios encontramos exalada esta sentença: “Quando um homem é feliz, um dia vale um ano.” Logo, de acordo com esse tradicional provérbio, estás casado há dez anos! Amanhã, portanto, levarás de minha casa tua esposa e irás para a tua residência. Creio que deverás, também, procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim já recebeste o necessário auxílio, o dote e o kest prometidos.

E o nosso herói, diante da imposição do sogro, sentiu-se preso de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso roiter-id se manteve intransigente, e não houve como levá-lo a reconsiderar a resolução que havia tomado, insistindo em afirmar que nada mais fazia senão atender à verdade contida no provérbio: “Quando o homem é feliz, um dia vale um ano.

Não se conformava Davi Kirsch com a ideia de ser obrigado a trabalhar para viver, e a situação a que fora, de repente, atirado envenenou-lhe o espírito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido, a seu ver, indigno o proceder do pai de Rivekelê. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest e depois, por evidente má-fé, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzira o prazo a dez dias! Que tratante! Era um grande velhaco o roiter-id! Quando o interesse estava em jogo, sabia transformar um simples provérbio em lei social!

“Meu pai tinha razão”, murmurou Davi, recalcando os seus rancorosos impulsos. “Toda razão tinha, meu pai! Pratiquei uma imprudência muito séria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que melhor do que eu deve conhecer a vida e os filhos de Israel!”

E, resolvido a não incidir mais uma vez no erro, o jovem, recordando-se da segunda parte do conselho paterno, foi nesse mesmo dia procurar um conhecido seu, chamado Elias Bloch, também judeu vermelho, e pediu-lhe que indicasse um meio que o permitisse sair da situação crítica em que se encontrava. O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem Davi, e depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, expediu uma risadinha seca e maldosa, e respondeu com um relâmpago de inspiração no olhar:

— Não vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irás amanhã à casa de teu sogro, e se seguires as minhas instruções sairás vencedor nesse litígio.

No dia seguinte Davi Kirsch, tendo nas mãos um exemplar da Torá — que é o livro da lei entre os hebreus — foi ter à rica vivenda do seu astucioso sogro. Depois de saudar o velho roiter-id com certa reserva e cerimônia, como se as relações entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou com teatral entonação:

— Por motivos muito graves sou forçado a vir agora à sua presença. Vou divorciar-me!

Divórcio! Essa palavra para a família judaica representa uma calamidade só comparável às maiores calamidades.

— Estás louco, rapaz! — protestou o velho empalidecendo ligeiramente. — Bem sabes que o divórcio só pode ser obtido segundo a lei de Moisés. Que motivo poderá ser aludido para justificativa dessa nódoa infamante com que pretendes golpear a minha família?

— Tenho a lei a meu favor — acudiu com altivez o moço. — Como o senhor mesmo declarou e provou, vivi em sua companhia os dez anos de kest. Os doutores e rabis não ignoram que o Livro da Lei de Moisés — a Torá — diz com a maior clareza: “Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divórcio.” Ora, eu estou casado há dez anos e não tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a Lei, o direito de repudiar minha esposa!

— Que brincadeira é essa, meu filho! — retorquiu o roiter-id, emergindo da sua estupefação e abraçando amavelmente o genro. — Afastemos de nós as ideias tristes, pois já não foi pequeno o susto com que abalaste meu coração de pai. Fizeste mal em tomar a sério o meu gracejo sobre o tal provérbio, dos dias felizes, e, se assim é, fica o dito pelo não dito. Se eu prometi dez anos de kest é certo que poderás viver todo esse tempo em minha casa.

E concluiu, com um gesto convencido e superior, passando lentamente a mão pelos cabelos avermelhados:

— Jamais deixei, menino, como um bom judeu, de cumprir a palavra dada.
____________________________
Fonte:
Malba Tahan. Lendas do Bom Rabi. 
Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2011

Nenhum comentário: