quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) III


ANTONIO PEDRO

Antonio Pedro, astro fulgurante
Que cruzas do tablado a vasta senda
Como guerreiro impávido da lenda,
Que, em busca de proezas, vaga errante.

Ei-lo cingindo as armas de diamante!
Sem que o cansaço, ou vil temor o prenda,
Cada vez mais se engolfa na contenda,
Em prol da esquiva fama alti-sonante.

Quando o véu do futuro descortino
No alcáçar da justiça, que rebrilha
Sabeis o que descubro, e vaticino?

(Isto me pasma! transporta! e maravilha!)
Votado a berço humilde p'lo destino
Filho do povo, “a Gloria te perfilha”!

MISTERIOSO ABISMO

Tépido sonho de luz
corpo, que destila aroma
sublime e claro axioma
espargindo amor a flux!

Uma vertigem produz
teu olhar, o seio, a coma,
voluptuoso sintoma
que a fantasia traduz.

Débil flor, que o sol admira
beijando com azedume
as estrelas de safira...

mas ninguém sequer presume
que o meu coração expira
na mortalha do ciúme.

NA FLORESTA

Conversa nos abetos a bafagem,
Nas franças range o vento compassado
E à matilha esquivando-se um veado
Pasma de ver no brejo a sua imagem.

Que rumor tão sutil, que doce agrado,
Poesia terna e pérfida, selvagem,
Em que os ecos se arrastam na folhagem
Entre dóceis de musgo aveludado.

Irrompem as gazelas nos aceiros
E as cobras aparecem na gesta
Quando as gralhas alagam os olmeiros.

Triste como o silencio da floresta,
Ouço dentro de mim uivos d'horror.
Combatem dois leões – “Ciúme e Amor!”

O CÃO DE BORDO

A cerração é densa. O pobre iate
Sem leme desarvora na refrega;
Penetra na escotilha a onda cega,
Alquebra-se o baixel no duro embate.

A trovoada estala, a proa abate;
No escaler a maruja ao céu se apega,
Este a vida infeliz surdo lhe nega,
Que as lágrimas não bastam p'ra resgate!...

Um cão hirsuto, magro, avermelhado,
Com os olhos chorosos, flamejantes,
Que brilham como negros diamantes

Late com desespero, busca a nado,
Mergulha entre os cadáveres boiantes,
O dono encontra, e morre extenuado.

NO HARÉM

No matiz do tapete auri-felpudo
Haydé reclina as formas langorosas,
Cismam d'inveja purpurina as rosas
Admirando-lhe as faces de veludo.

Modelo, que convida a obsceno estudo
N'um desmaio entre gases vaporosas
Pelas cassoulas de prata suntuosas
O âmbar, o beijoim arde a miúdo.

Quando rompe nos céus a madrugada
Sentem-se beijos em lascivo espasmo
Que iluminam a alcova perfumada

E um eunuco decrépito sarcasmo!-
Que a barbacã vigia na esplanada,
Crê-se na terra um mero pleonasmo.


ESCULTURA

Que bela estátua! Colo d'alabastro,
Um riso de cristal, faces ardentes,
Um adereço de pérolas os dentes
E os olhos chispam o fulgor d'um astro!

De maus intentos o porvir alastro
Porque passando desdenhosa sentes,
Que intimidas com lívidas correntes
Quem doido beija o sulco do teu rastro.

Paradoxo cruel! treva d'arminho,
Ídolo deslumbrante, ruim criança
Que da ternura forjas sevo espinho!

Quando te vejo ocorre-me a lembrança,
Flor de gelo, sinistro rosmaninho,
D'enforcar-me a sorrir na tua trança.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

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