sábado, 11 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 317


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Aqui criamos juízo


Numa certa manhã, meados dos anos 1960, um dos pioneiros da cidade desceu do carro em frente ao local onde estava sendo construída a nova catedral de Maringá, ao lado da antiga igrejinha de madeira. Lá estava, em visita às obras, nosso primeiro bispo, Dom Jaime Luiz Coelho. O grandioso templo, projetado para chegar a 124 metros (mais 10 contando a cruz a ser colocada no topo), já estava com cerca de 30 metros. O homem aproximou-se, cumprimentou o bispo, fez uns rodeios, pediu licença e disse:

Olhe aqui, Dom Jaime, se eu fosse o senhor, mandava parar a construção no ponto em que está, que está muito bom assim, botava um telhado por cima e pregava uma placa dizendo: “Aqui criamos juízo”.

Graças a Deus Dom Jaime não criou “juízo”. Abraçou o amigo, agradeceu o conselho, porém disse que continuaria a obra até o final. No meio da conversa ainda conseguiu que o homem prometesse continuar ajudando, como de fato continuou: no dia seguinte mandou entregar lá um monte de sacas de cimento.

O querido pastor estava acostumado a ouvir espantos relacionados com a imponência do novo templo. Com frequência alguém lhe dizia: “O senhor é um homem peitudo mesmo. Pra tocar uma obra dessas tem que ter muito tutano”. Ele respondia: “Peitudo, na verdade, não sou eu; é o povo de Maringá. Sou apenas um homem de fé. Desde que aqui cheguei senti a fibra desta gente. Tenho certeza absoluta de que vamos juntos concluir logo a construção”.

Ele via a cidade crescer rapidamente em todos os sentidos. Achava então que a Casa de Deus teria de ser grande também, para mostrar que a espiritualidade estava em primeiro lugar no coração das famílias pioneiras. Imaginou um grande cone apontando para o céu, procurou em São Paulo o célebre arquiteto José Augusto Bellucci e em abril de 1958 expôs aos fiéis a maquete da futura catedral.

Quatro meses depois, no dia 15 de agosto, festa da padroeira Nossa Senhora da Glória, fez-se o lançamento da pedra fundamental – um pedaço de mármore retirado das escavações da basílica de São Pedro, no Vaticano, bento pelo papa Pio XII.

Em julho de 1959 iniciaram-se as obras. No dia 10 de maio de 1972, aniversário da cidade (25 anos), festejou-se o término da estrutura. No dia 31 de dezembro do mesmo ano, Dom Jaime celebrou a primeira missa na catedral nova. A Casa de Deus, que o povo de Maringá construiu em união com o primeiro bispo da diocese, está lá até hoje e lá estará por todo o sempre, como realização máxima da geração desbravadora. Quantos ajudaram a erguer tão belo símbolo de fé? Quanto suor de quantos operários? Quantas sacas de café doadas por pequenos e grandes agricultores? Quantas moedinhas oferecidas por humildes fiéis?

Um bispo peitudo e um povo generoso e forte. A fé faz maravilhas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 25-6-2020)
Fonte:
texto enviado pelo autor.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 5


Viandeiro das manhãs. Porcelana azul. Nuvens poucas. Murmúrio das águas. Sol de inverno. O Grande Lago em calmaria. Pensares ruminando. A vida em magnitude.

Junho outra vez. E o vinte chegou. O mês mais bonito e o dia mais querido. Mais um ano vivido. Vívido ? Tentando . . . Nesta volteada do tempo é bom saber que viver em harmonia com o mundo é gratificante - a cultura, as artes, a música, os livros, o contato e relações com as pessoas - nos dá este caldo de bom viver, um cadinho de vivências que só aumenta com o passar do tempo. O bom-humor, a alacridade, o otimismo, são alimentos essenciais para conduzir bons ofícios sempre com simplicidade. Quintana disse que " são as pessoas que fazem os caminhos ".

Sigamos, pois, caminhando, que delícias nos esperam nalguma encruzilhada do futuro. 
BOA VIDA ENTÃO SE TENTA.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Adroaldo Soares de Albergaria (Poemas Escolhidos)


QUEIXUME

No velho casarão, em vaga indiferença,
em tropeços, entrei, num passo muito lento,
minha alma, qual um cofre submerso, em descrença.
viu se apagar a luz de um canto fumarento...

Chorando das desgraças, a corroer-lhe a vida,
estava u'a mulher em trajes infelizes...
Seio dilacerado e a alma ressofrida,
nos braços seminus, extensas cicatrizes,..

Sentado num caixão, olhando-a, desprezada,
depois de apreciar a noite transitória,
e fitando, de perto, a triste desamada,
pedi que me contasse a vida, sua história...

Erguendo-se tristonha e chorosa, tão pálida,
declamou, devagar, uma canção silente:
"Senhor, já tive reino e, hoje, sou inválida,
de todos, esquecida, e agora, assim, doente...

"Senhor, eu fui mulher, em sublime honraria,
via-me, com respeito, a grande humanidade...
Eu fui, senhor, eu fui tua excelsa Poesia,
trovadora do Amor e da Felicidade...

"No século passado, em gala, nos salões,
por todos cortejada, eu fui primeira dama...
Mas tudo se acabou, vim parar nos porões,
por muitos profanada, ora vivo na lama...

"Carcomido o meu peito, nesta noite tétrica,
nada valho nas mãos dos que se acham artistas.
Outrora, tive rima; outrora, tive métrica.
Hoje, estou poluída, às mãos dos modernistas...

"Que me vale, na vida, o gozo de ilusões?
se mataram, sem pena, a minha fantasia...
Só no passado existo, em muitos corações,
num palpitar contínuo, em perene alegria...

"Se Castro Alves souber do meu triste poente,
por certo, há de chorar, lá no seu trono augusto…
Se Azevedo souber ficará descontente,
mesmo que inda voltasse à taberna, e a custo...

"Quando Bilac vir-me estendida na lousa,
o fulgente parnaso estará desolado...
Chamará o Casimiro, o dos Anjos e o Souza
e, aí, protestarão em canto apaixonado…

"De Campos viu-me, noite antiga do passado,
lacrimosa, em surdina — era um momento vário..
Quem dera que pudesse enviar um recado,
inda quando vivendo o brilhante Olegário...

"Ó tira-me, senhor, das horas malfadadas!
ó tira-me, senhor, desta ingente agonia!
e lança-me, eu te peço, ao longo das estradas,
para florir de novo a divina poesia..."
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DUELO COM O POETA

"Já cheguei, poeta louco, vou te levar
para amplidão nefasta da caverna!...
Os teus olhos irão lacrimejar
nas malvadezas da miséria eterna!
Quero é ver o teu corpo na tortura
do páramo infernal da desventura!"

"Eu quero te matar, poeta funéreo,
quero beber teu sangue e, enfurecida,
te transportar até o cemitério!
Supuseste tua alma era esquecida
e que a hora, por certo, não chegava,
de sangrar-te, com minha rubra clava?..."

 - Cala-te, voz de campo funerário,
não receio o teu eco miserando,
nem teu brado de vulto sepulcrário,
nem teu clamor, este clamor nefando!

Cala-te, sussurrar mefistofélico,
meus nervos pra te ouvir já estão aptos!
Olha a distância, sou um arcangélico,
muito acima de vícios mentecaptos!

Ia alta a noite, e a treva, em seu segredo,
mostrando um vulto forte em exorcismo,
enchia-me de tremores e de medo,
de solidão, de dor, de misticismo...

(No destino de minha torpe vida,
nunca ouvi murmurar tão leve brisa...
E a barca do meu ser, tão comovida,
em proceloso mar é que desliza...)

Repercutia e já falava tudo...
E a voz, em convulsões, dentro em meu ego
e, lentamente, eu fui ficando cego,
e, lentamente, eu fui ficando mudo!,..

Não resisti, senhores, fui entregue
ás torpezas da minha negra sorte:
Se uma, angústia intensa me persegue,
muito mais me persegue a voz da morte!...

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CONVULSÕES MENTAIS 


Por uma grande porta semi-aberta,
eu penetrei na casa da loucura...
A minha alma tristonha, já deserta,
retorcia-se de dor e de amargura...

O meu ser, em misterioso recoberto,
deitava-se no chão, em reservado…
A consciência era o oásis do deserto
e o coração, tugúrio infortunado...

Uma jovem na sala das misérias
se deitava num berço sem retoque...
E as algozes, mulheres deletérias,
aplicam-lhe na mente brutal choque...

No universo, inconsciente, em misticismo,
a moça, em transe, em vis crises frenéticas,
se torce nervosa, em seu paroxismo,
de convulsões tremendas, epilépticas...

Puseram-me na mesa do infortúnio
e me aplicaram as fatais descargas:
Minha mente tornou-se um plenilúnio
de coisas miserandas, mui amargas...

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Fernando Sabino (O Retrato)


Tanto reclamaram, que acabei telefonando ao Arnaldo: que diabo de retrato é esse que vocês foram me arranjar? Ele achou graça, disse que não tinha encontrado coisa mais recente, mas que eu ficasse descansado: ia dar nova busca no arquivo, tratar de substituí-lo. E sugeriu que eu tirasse outro, acrescentando — o meu bom Arnaldo! — num assomo de otimismo: um retrato novo, porreta!

Porreta que fosse — desde que me deixo seduzir por este belo adjetivo com ar de palavrão: retrato novo é mesmo este aqui, que acompanha regularmente a minha crônica na revista.

Olho-o pela primeira vez com atenção, num número atrasado. Para falar com franqueza, podia ser até do Marechal Dutra, eu pouco estaria me incomodando: a cara não tem nada a ver com o que se escreve, quem vê cara não vê coração. Mas a verdade é que a reclamação dos conhecidos tem cabimento, a minha não é mais esta.

Vejo um jovem de nariz fino e olhar assustado, com ar de quem vai se erguer de um momento para outro e começar a viver. O meu nariz continua fino e cada vez mais torto, talvez de tanto se meter onde não é chamado. Mas a vida já não assusta os olhos de quem dela recebeu mais do que esperava.

É fotografia tirada há bem uns vinte anos, daí para mais. Em vinte anos muita água correu debaixo da ponte. Mudei de casa, de hábitos, de profissão e de mulher. Continuei escrevendo, mas não escrevi o que devia. Ganhei e perdi tempo, amigos e ilusões. (Mais um pouco e sairia para uma letra de samba.) No entanto, tudo bem pensado e medido, nada me aconteceu.

A esta altura paro, e o leitor comigo, para me perguntar: a que vem esta conversa? Estamos habituados, um escrevendo e outro lendo, a casos pitorescos ou triviais, colhidos na vida cotidiana. Onde está o caso de hoje, a propósito ou não de velhas fotografias?

Pois aqui vai ele:

Era um fotógrafo de rua, desses que fingem fotografar e, depois de aceito e pago o talão, saem correndo para bater a chapa. Estávamos na Avenida Rio Branco, era de tarde, meu amigo e eu resolvemos documentar o acontecimento de sermos amigos e estarmos juntos numa tarde qualquer, na Avenida Rio Branco. Dois anos depois, não digo que o mesmo fotógrafo, mas na mesma Avenida Rio Branco, e em companhia do mesmo amigo, sou de novo fotografado. Não haveria nada de especial no fato de termos aceitado esta nova fotografia de rua, se não me ocorresse um dia compará-la com a anterior. Éramos praticamente os mesmos dois amigos — dois anos não haviam feito em nós grande estrago. Mas, para meu assombro, um sujeitinho baixo, magro e de bigode, que numa das fotos nos seguia na rua a poucos passos, era também o mesmo que na outra caminhava atrás de nós.

A coincidência era impressionante. Mas o que me perturbou mesmo foi a suspeita de estar sendo seguido pelo tal sujeito, já que ele não poderia ter ficado andando à toa pela Avenida Rio Branco durante dois anos. Neste caso, teria de aceitar a sugestão do Borjalo, a quem contei o caso, de tratar-se de um tira de polícia ou outra espécie qualquer de malfeitor; um anjo-da-guarda de bigode era coisa que eu não podia admitir.

A mesma sensação me vem agora, ao olhar este retrato que encima a minha crônica, por exigências de moderna paginação. Estou sendo seguido. Este jovem me persegue. Já foi flagrado mais de uma vez, caminhando atrás de mim. Não sou eu, mas eu fui assim. E cheguei quase a ficar assim! Nem graças ao elixir de inhame eu hoje seria assim. O Arnaldo prometeu arranjar outra mais recente no arquivo. Como escrevo com uma semana de antecedência, não sei se já fui atendido. Espero que tenha encontrado uma bem porreta.

Mas espero também que ao morrer, queira Deus que velho, bem velho — se o tal sujeito que me segue não tiver antes dado cabo de mim — possa dizer, olhando o retrato deste jovem num recorte antigo, entre meus guardados: nada me aconteceu; em tudo que ele acreditava eu continuo acreditando.

E senti-lo morrer comigo, só então senti-lo morrer dentro de mim.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 316


Aparecido Raimundo de Souza (Curva sem Deflexão)


UM BANDO DE OITO ENFERMEIRAS, na folga do hospital em que trabalhavam resolveram pregar um trote no novo estagiário de medicina, aliás, um pedaço de apetência* em forma de homem capaz de virar a cabeça de qualquer mulher em estado de avidez  desesperadora e pronta para transgredir   todos os outros tipos de pecados existentes.

Até as consideradas sérias e castas não ficariam de fora. Diante da sua insana luminosidade, se derreteriam como plástico jogado ao fogo. Depois que cada uma deu vida e forma a sua “aprontação”, se reuniram num restaurante no centro da cidade e passaram a contar as peraltices que fizeram, enquanto almoçavam e bebiam cerveja:

- Eu coloquei algodão no seu estetoscópio  - disse a primeira, caindo na caquinação*.

A segunda não deixou por menos:

- Escondi as roupas dele no armário do diretor, e  ele teve que ir embora pra casa de jaleco e Uber. E gargalhou a mais não poder.

-  Fiz pior, amigas - esclareceu a terceira  enfermeira, uma morena de fechar o comércio e  tirar o planeta do eixo: - Passei a mão num dedo que cortei de um defunto e coloquei no prato dele lá no refeitório, quando ele se levantou para pegar um copo de refrigerante. Como as demais, se escangalhou de tanto que rinchavelhou* do pobre infeliz.

Foi a vez da quarta:

- Meninas, substituí as fichas de seus pacientes e, no lugar delas coloquei fotos de mulheres peladas. Vocês precisavam ter visto a reação dele. Da mesma forma que as demais, galhofou tanto que chegou aos píncaros dos soluços.

A quinta  antes de contar a sua façanha, entornou o copo sobre a própria roupa. Chasqueava* por antecipação da impostura levada à cabo:

- Amigas, despejei óleo de rícino na sopa que serviram na hora do jantar. Não demorou e ele correu espavorido, para o banheiro.

A sexta enfermeira escreveu várias cartas de amor  como se fosse o pobre do estagiário se declarando, e colocou os envelopes, um de cada vez, em dias alternados, na bolsa da doutora Eva, uma ginecologista chata de galocha que tratava  todo mundo como se fossem suas empregadas.

- E aí, o que aconteceu? – quis saber as demais.

- Amigas, na última eu assinei o nome dele. A doutora Eva, que andava cabreira, ao saber de quem se tratava, pegou o coitadinho na garagem do hospital, rasgou as cartas, jogou os pedacinhos na cara dele, e, não contente, aplicou um belo de um tapa na sua fuça.  Meu Deus! Cheguei a ficar com pena. A força da mão da doutora se fez tão forte e vigoroso que até agora pareço estar sofrendo junto com a bofetada desferida.

Chegou a vez da sétima enfermeira trazer à baila a sua sacanagem realizada com o desventurado do estagiário:

- Amigas, eu fui mais sádica na minha perversão. Encontrei um monte de preservativos no bolso do seu jaleco. Sabem o que veio à cabeça? Imaginem! A moça troçava a cada palavra pronunciada,  como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Vocês não vão acreditar. Furei todas, todas, sem deixar uma sequer, com uma agulha que passei os cinco dedos assim que cheguei no plantão, pra trabalhar.

A oitava enfermeira, a mais nova do grupo, e diga-se de passagem, a mais bonita e atraente da turma, até então oculta entre mil palavras, invisível aquele instante das demais colegas, teve entrementes,  um difícil e contínuo fim inesperado: Desmaiou.    
__________________________
* Vocabulário:
Apetência – característica do que é apetitoso.
Caquinação – gargalhada.
Chasquear – Troçar, gozar.
Rinchavelhar – rir destemperadamente, estridentemente.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lóla Prata (Limerique)


O Limerique é um estilo de verso non-sense, popular nos países de língua irlandesa, Iniciado numa cidade da Irlanda, Limerick, e desenvolvido pelo poeta Edward Lear.

São cinco linhas, três versos rimando o primeiro, o segundo e o quinto; o terceiro e o quarto, mais curtos, rimam entre si. Rimas AABBA. Isso dá ritmo; é ótimo para fazer algumas brincadeiras, mas pode ser sério, também.


TATIANA BELINKY
Os Limerick


Os "limerick" são poeminhas            8 sílabas
Que sempre só têm cinco linhas,      8 sílabas
Contando, rimados,                        5 sílabas
Uns "causos" gozados:                   5 sílabas
Estórias bem piradinhas.                 8 sílabas

Em Limeriques da Cocanha (Cia. das Letrinhas), a escritora Tatiana Belinky conta a história dessa terra encantada "que enfeitiça e atrai pela santa preguiça",
A vida ali é um deleite
Suave tal qual puro azeite
Na bela Cocanha
O povo se banha
Em rios de mel e de leite.

Agora, responda ligeiro,
Não leve um dia inteiro
Para decidir
Se quer residir
Naquele país, tão maneiro!

LÓLA PRATA
GESTANDO


Abraço enfeitado de amor
Usando o dom do Criador:
Eis a sementinha
Que fundo se aninha
No abrigo quente e protetor.

Ventura de reproduzir,
Plenitude desse existir...
O embrião se nida
Com força de vida.
Vem a alegria de parir!

Mil sonhos... planos se agigantam,
O sol brilha, pássaros cantam,
Hormônios latejam
Antes que olhos vejam
As surpresas que se alevantam.

Ventre cresce, forma meu feto.
Perfil se arredonda, indiscreto,
Vai amadurar…
Logo há de chegar
Fruto gerado em mútuo afeto.

A novidade se completa!
Felicidade se ejeta.
Criança a chorar
Seiva já a pingar...
Tão saudável, tão concreta...

A inocência a nos reciclar,
Berço se põe a balançar.
Poema.., buquê...
Nana, meu bebê.
Aura de luz envolve o lar!

Fonte:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.
Livro gentilmente enviado pela autora.

Saki (O Tigre da Sra. Packletide)


Matar um tigre era intenção e desejo da sra. Packletide. Não que o instinto de morte se apossasse dela de repente, nem que ela pretendesse melhorar as condições da Índia, diminuindo a proporção de animais ferozes por milhões de habitantes. De uma hora para a outra ela decidira seguir a trilha de Nemrod pela simples razão de Loona Bimberton recentemente ter voado onze milhas em companhia de um certo aviador argelino — e desde então não se comentava outra coisa. A única maneira de se comparar a ela seria, pois, dar pessoalmente o golpe final na pele de um tigre e aparecer assim na imprensa ilustrada mundial. Antecipadamente, a sra. Packletide planejara um almoço na sua residência de Curzon Street, com o pretexto de homenagear Loona Bimberton; no entanto, o que monopolizaria a atenção geral seria a pele de tigre que se tornaria então o mote obrigatório de todas as conversas. Pensava ainda era mandar encravar uma das unhas do tigre num broche para presentear Loona Bimberton no dia do seu aniversário. Embora talvez seja verdade que a fome e o amor governem o mundo, a maioria dos impulsos e ações da sra. Packletide, fugindo a essa regra geral, dependia de sua própria e particular aversão a Loona Bimberton.

A sorte costumava proteger a sra. Packletide. Com a promessa de mil rúpias a quem lhe oferecesse a oportunidade de caçar um tigre sem maiores riscos nem demasiados esforços, descobriu-se nos arredores de uma aldeia, favorecida pelas incursões de um tigre, outrora formidável e que a idade inclemente reduzira a privar-se ele de sua caça graúda para devorar insignificantes animais domésticos. Ora, a perspectiva de embolsar mil rúpias estimulara o instinto esportivo e a ganância natural dos nativos; revezando-se nas cercanias da mata local, noite e dia, a criançada fiscalizava as idas e vindas do tigre, e temendo, aliás sem razão, que a besta resolvesse rondar outras paragens, para que ele não abandonasse a região, ardilosamente plantavam pelos campos próximos as cabras mais decadentes. O maior perigo era, no entanto, morrer o tigre de velho, antes de poder levar um tiro da "memsaihid". Voltando do trabalho, à tarde, com os filhos nos braços, as mães cantavam em surdina, com medo de incomodar o venerando ladrão de rebanhos que, àquela hora, dormia a sesta sossegado.

Chegou finalmente a grande noite, serena e enluarada. Num confortável palanque, erguido entre os galhos de uma árvore estrategicamente situada, agachara-se a sra. Packletide e sua dama-de-companhia, srta. Mebbin. Uma cabra, amarrada a uma distância razoável e dotada de voz possante, cortava o silêncio noturno com seus berros persistentes e capazes de impressionar os ouvidos algo moucos do tigre. Atenta
à espingarda adaptada e aos ruídos de aproximação, a caçadora aguardava a presa.

— Ai, meu Deus, será que a gente corre algum risco? — perguntou a srta. Mebbin, não tanto apavorada pelo tigre mas sim ante a idéia de servir a patroa nos menores detalhes.

— O quê? — disse a sra. Packletide. — Um tigre decrépito não consegue subir numa árvore destas, nem que queira.

— Mas se o tigre for tão velho assim, por que pagar por ele a enorme soma de mil rúpias?

A srta. Mebbin de fato dedicava ao dinheiro, de toda e qualquer procedência, sem distinção de nome ou de nacionalidade, um carinho bastante fraternal. Intervindo com energia, impedira que a sra. Packletide se derramasse em gorjetas num hotel em Moscou, com muitos rublos, francos e cêntimos que a ela se agarravam, opondo-se por instinto a que eles escorregassem para outras mãos. A entrada em cena do herói da festa interrompeu, no entanto, estas considerações sobre as prováveis depreciações do tigre em questão. Ao ver de longe a cabra amarrada, a fera estendeu-se logo pelo solo, não talvez para se esconder, mas para repousar um pouco, antes do bote final.

— Este animal está doente — exclamou a srta. Mebbin na língua industã, dirigindo-se ao maioral da aldeia, entrincheirado ali, de pé, noutra árvore.

— Psiu! — disse a sra. Packletide, observando a fera rastejar em direção à vítima.

— Olhe só! — insistiu a srta. Mebbin, agitada. — Se não pegar a cabra, não pagaremos nada por ela. (De fato a isca não estava incluída no acerto.)

A espingarda fez um estrondo ao disparar, e a fera, dando um salto, rolou de lado, imobilizando-se na morte. Na mesma hora, uma multidão de nativos acorreu ao local e encheu o ar de gritos estridentes e alvissareiros, enquanto que lá na aldeia os tambores rufavam e juntavam-se ao coro triunfal. Os gritos de vitória repercutiram suavemente no coração da sra. Packletide: estava mais próximo, no horizonte, o tal almoço em Curzon Street.

E eis senão quando a srta. Mebbin reparou que a cabra, ferida de morte, estrebuchava em plena agonia, enquanto que no tigre não se notava o mínimo sinal de bala. Evidentemente, o tiro errara o alvo. O feroz animal sucumbira a um ataque do coração, devido não só ao inesperado estampido como a uma senil esclerose arterial. Diante desta situação incontestável, a sra. Packletide sentiu-se desapontada, mas não de todo. Fosse como fosse, no entanto, ela era dona de um tigre defunto e os nativos, de olhos nas rúpias, de boa vontade fingiram acreditar que fora ela quem matara a fera. E quanto à srta. Mebbin, bem, ela era sua dama-de-companhia. Consequentemente, a sra. Packletide, depois de enfrentar impavidamente as máquinas fotográficas, saiu das páginas do Texas Weekley Snapshot para as do suplemento ilustrado do Novoe Vremva, ganhando fama no mundo inteiro. Quanto a Loona Bimberton, deixou de ler os jornais ilustrados por semanas, e, ao agradecer a garra de tigre transformada em broche, escreveu uma carta plena de emoções recalcadas à sra. Packletide.

O tapete de pele de tigre foi despachado de Cruzon Street para o Solar da Família, a fim de ser devidamente examinado e admirado no condado, onde todos acharam mais do que natural que a sra. Packletide comparecesse ao baile à fantasia da região vestida de Diana, a Caçadora. No entanto, ela se negou a aceitar o, aliás, ótimo conselho de Clóvis* para promover uma soirée dançante pré-histórica, em que todos comparecessem embrulhados em peles de animais recentemente caçados.

— Não que eu tivesse a pretensão, vamos dizer assim, de brilhar — confessou Clóvis — exibindo uma calcinha feita de duas ou três simples peles de coelho. Embora — acrescentara, lançando um olhar de esguelha e de malícia à majestosa Diana — possa me gabar de uma beleza comparável à daquele rapazola lá, fantasiado de dançarino russo.

— Se o pessoal aqui soubesse o que realmente aconteceu daria boas risadas — disse a srta. Mebbin, dias depois do baile.

— Como? O que é que você está dizendo? — exclamou a sra. Packletide, assustada.

— Mas não é verdade que a bala matou a cabra e o tigre morreu de susto? — disse a srta. Mebbin, com seu riso irritante e agradável, ao mesmo tempo.

— Ninguém seria capaz de acreditar numa coisa destas — disse a sra. Packletide, mudando de cor gradualmente, como um livro ilustrado folheado rapidamente.

— Loona Bimberton acreditaria — disse a srta. Mebbin.

Um tom amarelo-esverdeado de péssima aparência acabou se fixando no rosto da sra. Packletide.

— Por acaso você está pretendendo me trair? — perguntou ela.

– Vi, lá perto de Dorking, uma bela casinha de férias – retrucou a srta. Mebbin, com uma aparente incoerência. — Custa apenas seiscentas e oitenta libras. Uma verdadeira pechincha. Ah, se eu tivesse este dinheiro!

Os amigos da srta. Mebbin, desfrutando os fins de semana na tal casinha, por ela batizada de "Les Fauves", não se cansam de admirar os canteiros do jardim, cobertos no verão de lírios tigrados.

– Como será que ela conseguiu comprar esta casa? – comentam, intrigados, uns com os outros.

A sra. Packletide desistiu de uma vez por todas da caça.

— As despesas extras são pesadas demais — confiou ela a amigos curiosos.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa. Viver de Rir II. RJ: Record, 1997.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 315


Humberto de Campos (A Intenção)


A pequenina igreja de Santa Engrácia estava quase despovoada de fiéis, que se iam retirando, um a um, molhando os dedos na água benta, quando o Onofre penetrou no templo, desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça, à maneira da terra, procurando falar a padre Lourenço, que se achava, no momento, arrumando a paramenta eclesiástica na pequena cômoda da sacristia. Ao ver o caboclo, afamado em toda a vila pela sua desenvoltura, o sacristão, o Zézinho, correu ao seu encontro, levando na mão, pingando cera, o apagador de velas com que abafava, naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.

- Que é que você quer, Onofre? - indagou o sacristão. - Quer falar com "seu" vigário?

- Chame ele! - respondeu o caboclo, soturno.

Cinco minutos depois, após as explicações preliminares, estava o desordeiro ajoelhado diante do confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a cair, em cachos revoltos, sobre a testa e sobre os olhos.

- Qual é o pecado de que se acusa, meu filho? - indagou o sacerdote, bondoso, procurando conduzir com jeito aquela ovelha bravia.

O caboclo baixou a cabeça, e confessou:

- Eu não matei, nem roubei ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um pecadinho de nada. É uma porcariazinha de pecado que nem presta p'ra dizê.

- Conte, filho; conte sempre! - animou o padre.

Onofre tomou fôlego, e principiou a narrar:

- O'ie, "seu" vigaro, foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa Funda, e jurei tomá um desforço, dando as tripa. dele pros urubu cumê. Ontem, de tardinha, me armei, e fui fazê o serviço. Ele tava na porta da casa com a muié e os fio dando cumê pros bicho meúdo. Eu me apiei e avancei pra ele disposto a matá; mas fiquei tão penalizado, "seu" vigaro, com a vista da famia, daquela fiarada que ia ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz, só meti a pontinha da faca no couro dele, um pedacinho de nada. O cabra deu um pulo pra riba, e lá ficou vivo, só com um arranhãozinho na costela, feito pra amedronta. "Seu" vigaro acha que isso é pecado?

Padre Lourenço tomou uma pitada, assoou-se, com estrondo, no lenço de Alcobaça, que lhe tirava todas as dúvidas, e obtemperou, convicto:

- É pecado, sim, meu filho; é pecado. tão grande como o de morte!

- Mas eu não matei, "seu" vigaro! protestou o caboclo.

- Não importa. Houve o pensamento, a ideia de matar. É o que vale, meu filho, é a intenção!

Onofre baixou a cabeça, humilde, e o padre continuou:

- Eu vou dar-lhe uma penitenciazinha. você não torne a cair noutra.

Assoou-se, de novo, e explicou:

- Você vai rezar quarenta e oito padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta salve-rainhas. Antes de sair, porém você vai pôr, ali, no cofre das almas. uma prata de dez tostões.

E levantando-se:

- Vá! O caboclo ergueu-se, pôs o chapéu debaixo do braço, exumou do bolso da calça uma prata de dez tostões que lá dormia, encaminhou-se para o cofre, que ficava perto da porta, e, jeitoso, começou a fricionar, com a moeda, a entrada da caixa, sem deixar, entretanto, que ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter de novo a prata na algibeira, quando padre Lourenço, que o observava, gritou-lhe, de longe:

- Psiu! Que é isso? Vai levando o dinheiro?

O caboclo voltou-se, da porta, e protestou, com um risinho canalha:

- Uê! A "tenção" não vale?

E ganhou a rua.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Antonio Lycério Pompeo de Barros (Devaneios Poéticos)


MANHÃ SEM SOL

Manhã sem sol! Manhã cinzenta e fria!
A brisa olente! O pássaro que trina!
Sinos que tangem! Tudo, enfim, combina,
Contrista o meu viver e me angustia...

Estranha sensação meu ser invade...
Vou sepultando indiferente, os sonhos
E, os dias meus passados, tão risonhos,
Vou divisando, além, numa saudade!

Manhã sem sol! Manhã cinzenta e fria!
Matando, embora, em mim minha alegria,
Eu te bendigo e te abençoo, ainda...

És para mim, manhã fria e sem sol,
A flor desabrochando no arrebol
Duma saudade muito terna e linda!…
****************************************

MEU ENTARDECER


Vai descambando o sol lá no poente!
O céu toldado está e chove agora.
Parece até que a natureza chora
A tarde que agoniza lentamente...

Caí no telhado a chuva e na vidraça,
Ou sobre o asfalto quente se estraçalha
E enquanto a noite tétrica gargalha,
A tarde, triste e agonizante, passa...

Enquanto a chuva cai e a tarde morre
E a noite avança e a solidão percorre
A vastidão do céu, sereno e escuro,

Penso no entardecer de minha vida!
O sol se pondo e a noite, enfim, caída,
Pesada e fria sobre o meu futuro...
****************************************

NÃO SEI POR QUÊ?!

Não sei dizer, nem lhe explicar, agora,
Por quê me atraí o céu e me fascina.
Por quê minh’alma triste e peregrina,
Subindo vai pelo infinito, afora...

Não sei dizer, nem lhe explicar deveras,
Por quê a solidão do mar a arrasta
E os horizontes e a planície vasta
Povoam-na de sonhos e quimeras!...

Apenas sei que fico só, vazio...
Perdido em meus pensares, me extasio
A solidão me invade e automatiza...

A tudo que me cerca fico alheio!
Sonhar! Subir! Voar! É meu anseio,
Fugindo a um mundo que me brutaliza…
****************************************

SE TE AMO!

Ainda me perguntas se te amo...
Se aceso tenho aquele sentimento,
Que me fez crer em teu amor profano,
Fonte de todo o meu padecimento...

Por mim responda minha mocidade,
Aos braços teus lançada, loucamente...
Buscando, aflito e a rir, felicidade,
Onde morava a ingratidão, somente.

Falem por mim o meu viver errante...
A ânsia que sinto em buscar distante,
O fim desta agonia prolongada...

Falem por mim os vícios que consomem,
Que martirizam este pobre homem,
Hoje sem fé, sem pão, sem Deus, sem nada…
****************************************

SOLIDÃO INTERIOR

Imensa é a solidão que vem das matas
E aquela que se estende nas planuras!
A que provém do céu, lá nas alturas,
Ou que murmura, além, entre cascatas!

Aquela que contorna e envolve os rios
E vai pousar, tranquila sobre os lagos!
Que a brisa traz às praias, entre afagos,
A nos tornar mais tristes, mais vazios...

Grande, demais, é a solidão do mar!
Da tarde que desmaia a soluçar,
Buscando no horizonte seu jazigo!

Mas, a maior, a solidão mais triste!
A mais profunda solidão que existe,
Não vaga por aí... Mora comigo!
****************************************

Antonio Lycério Pompeo de Barros nasceu em Cuiabá/MT, em 1922. No Liceu Cuiabano, nos idos de 1936, começou a desenvolver seus pendores para a literatura, ao descrever passeios, piqueniques e pequenas caçadas, dentre estas “Minha primeira caçada”, revista e ampliada posteriormente. Publicou em Ponta-Porã, em 1946, seu primeiro soneto, intitulado “Ainda perguntas se te amo?”. Viveu como funcionário do Banco do Brasil, em cidades do Mato Grosso, São Paulo, se aposentando em Brasília, como gerente da Agência do Congresso Nacional.

Em 2003 publicou pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso “Devaneio (Poesia & Prosa)”. Possui participação com sonetos de sua autoria, na Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos 54º volume; Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos 55º volume ; Livro de Ouro da Poesia Brasileira; e e-book “Devaneios”, com 12 sonetos, editado por Antonio Fernandes Dantas.

Fonte:
Celeiro de Escritores. Sonetos eternos. Santos/SP: Ed. Sucesso, 2009.

Alberto Figueiredo Pimentel (O Moço Pelado)


Inácio Peroba era um infeliz pescador, homem muito caridoso, honrado e de excelente coração. Tendo se casado cedo, sua mulher mimoseou-o com muitos filhos. Além deles, tinha de alimentar alguns sobrinhos órfãos, sua velha mãe e seu sogro. Por isso, a pesca, de que sempre vivera, até então, já lhe não bastava para sustentar tão numerosa família, e ele vivia desesperado.

Um dia, foi pescar, como costumava. Debalde lançou as redes ao mar, repetidas vezes, durante todo o dia: nem um só peixe, por mais pequenino que fosse, conseguiu apanhar. Ao anoitecer, regressava tristemente para casa, quando a poucas braças da canoa, viu um robalo deitar a cabeça fora da água. E foi com espanto que o pobre homem ouviu o peixe dizer:

– Inácio Peroba, se prometeres trazer-me o que encontrares quando chegares à casa, lança as redes na água...

Peroba prometeu, lembrando-se que, assim que chegava, de volta da pesca, a primeira coisa que lhe aparecia era a cadelinha Mimosa. Atirou as redes, e recolheu tanto peixe, tanto, que encheu a embarcação.

Chegando à casa, a primeira coisa que viu foi um filhinho, que nascera em sua ausência.

O pescador ficou triste; mas, como era homem de honra, cumpriu fielmente a sua palavra. Dizendo à mulher que ia dar a criança a criar, levou-a à praia, e jogou-a no mar.

A criança não morreu. Mal as águas se tinham aberto, apareceu uma grande concha, puxada por peixes, que a apararam, levando-a para o palácio do rei.
***

O menino cresceu. Haviam-no batizado com o nome de Remi. Quando tinha cerca de vinte anos, o rei chamou-o e disse-lhe:

– Vou fazer uma viagem de quinze dias. Fica com as chaves do palácio, mas não abras porta alguma, senão matar-te-ei quando chegar...

O rapaz não pôde conter-se. Assim que o soberano dos Peixes partiu, abriu a porta de um quarto. Dentro havia três grandes caldeirões – um com ouro fervendo, outro com prata e o terceiro com cobre. Abriu novo quarto, e viu três cavalos muito gordos – um preto, um russo-queimado(*) e um alazão, comendo carne fresca, em vez de capim.

Abriu o terceiro, onde se achava um grande e gordo leão, que, ao contrário dos cavalos tinha capim para comer, e não carne. Por último, abriu o quarto aposento. Viu uma bonita mesa de escritório, com as gavetas cheias de papelinhos brancos e verdes, dobrados, e armas de toda a espécie.

O rapazinho, como era arteiro, quis trocar a comida dos animais, dando capim aos cavalos e carne ao leão, mas o alazão falou:

– Não faças isso. Teu padrinho te matará, quando chegar. Agora, se quiseres sair daqui, vai ao quarto onde está a mesa: tira dois papéis – um azul e outro branco; veste-te com a melhor roupa que encontrares; pega numa boa espada; monta num de nós, e leva o outro pela rédea, sai do palácio, mergulhando primeiro a cabeça no caldeirão de ouro. Teu padrinho, ao regressar, há de ir ao teu encalço. Assim que estiver quase a pegar-te, larga um dos papéis; mais tarde o outro; e deixa o resto por nossa conta.

Remi obedeceu pontualmente, depois de ter dourado os cabelos, que ficaram lindíssimos. Montou o alazão, e foi puxando o russo-queimado. Seguiu viagem a todo galope. Ao cabo de vinte dias, o rei dos Peixes chegou ao palácio. Vendo que o afilhado fugira, cavalgou o preto, e foi à sua procura. Depois de muito andar, avistou-o. Então o cavalo alazão disse a Remi que largasse o papelzinho branco. Imediatamente formou-se espesso nevoeiro, que o rei a custo furou. Quando o conseguiu, o rapaz já estava longe.

Dando de esporas, já ia de novo o alcançando, mas Remi, a conselho do alazão, abriu o papel verde. Formou-se um espinhal.

O rei disse para o cavalo preto.

– Se conseguires passar comigo este espinhal, eu te desencantarei.

– Tira-me, então, os arreios, respondeu o animal.

Mas, quando iam chegando ao meio, o cavalo atirou-o ao chão, e seguiu sozinho. Passados alguns dias mais, chegaram perto de uma cidade.

Aí o cavalo alazão tomou a palavra.

– Nós vamos ficar aqui encantados em pedras. Deixa conosco tua roupa e tuas armas, e continua sozinho. Mais adiante encontrarás um boi morto; abre-o; tira-lhe a bexiga, e cobre com ela a cabeça para esconder os cabelos. Vai e segue tua vida. Quando precisares de nós, procura-nos.

O rapaz executou aquelas recomendações.

Chegado à cidade, encontrou um palácio. Falou ao jardineiro, que estava trabalhando, e pediu-lhe emprego. O jardineiro aceitou-o como ajudante, e o moço ficou empregado.

No palácio toda a gente gostava dele, porque Remi era bom trabalhador, mas achavam-no muito esquisito por não ter um só fio de cabelo. Por isso chamavam-no “o Moço Pelado”.

Uma vez, julgando-se ele a sós, tirou a bexiga de boi, e apareceu com os seus lindíssimos cabelos de ouro. A mais moça das filhas do rei, viu-o e ficou apaixonada. Tempos depois, houve importantes cavalgadas, às quais toda a gente compareceu.

O Moço Pelado, que havia ficado sozinho, mal viu o palácio deserto, correu para onde estavam os cavalos, e contou-lhes tudo.

O russo-queimado surgiu deslumbrantemente arreado. O rapaz vestiu-se com roupas próprias, e entrou na liça, onde ganhou os prêmios, oferecendo a argolinha de ouro à filha mais moça do rei.

Ninguém sabia quem era aquele formoso mancebo de cabelos de ouro, montado num cavalo sem igual. Só a princesinha foi quem ficou meio desconfiada, e por isso mesmo, mais apaixonada.

No segundo dia ocorrera-se novas cavalgadas. O rei, querendo saber, a todo custo, quem era o misterioso cavaleiro, que excedia a todos em garbo e valentia, conquistando os prêmios, mais ricamente vestido, conquistando os prêmios, mais ricamente vestido e montando o melhor animal, mandara um numeroso batalhão para prendê-lo.

O Moço Pelado, mesmo assim não se mostrou receoso. Entrou na arena; e, dado o sinal de partida, avançou na frente de todos, ganhando ainda desta vez, a argolinha de ouro.

Como no primeiro dia, ofereceu-a à princesa, e, fazendo um cumprimento geral, disparou o cavalo que voou por cima dos soldados, espantados com aquela audácia e ligeireza.

No terceiro e último dia de festa, tudo sucedeu como nos antecedentes, com a diferença que havia mais gente, e que soldados armados de baionetas, em maior número, foram colocados em todas as saídas, a fim de evitar a fuga do jovem cavaleiro.

Remi, porém, sempre confiado e protegido pelos três cavalos encantados, ganhou o prêmio e conseguiu safar-se, sem que o atingissem as pontas das baionetas e o chuveiro de balas disparadas contra ele.

Nunca se soube, e nem se desconfiou sequer quem fosse o vencedor das cavalgadas. Apenas a princesinha tinha uma ligeira suspeita de que era o ajudante dos jardins reais, o guapo e formoso mancebo. Entretanto nada disse, e as coisas continuaram no ramerrão diário.
***

Passados tempos, o rei anunciou que, quem matasse uma fera terrível que desde muitos anos devastava o país, causando toda a sorte de horrores e estragos, casaria com sua filha mais velha.

Sabendo disso, Pelado foi consultar o russo-queimado, que lhe disse:

– Arranja um espelho, que colocarás no meu peito, e vai dar combate ao bicho. Quando ele vir a sua imagem reproduzida, ficará atrapalhado; e poderás, então, matá-lo.

A coisa passou-se como dissera o cavalo.

No dia seguinte, a fera amanheceu morta.

Ninguém se acusou, todavia, como tendo sido o autor, e o monarca julgou-se dispensado de cumprir a palavra. Resolvendo casar as três filhas no mesmo dia, mandou que elas escolhessem noivos. As duas mais velhas quiseram dois poderosos príncipes, ao passo que a mais moça declarou terminantemente que só se casaria com o Moço Pelado, ajudante do jardineiro real.

O rei, como a estimava muito, não teve remédio senão aceitá-lo como genro. Ordenou que se preparasse um grande banquete, no qual todas as aves seriam caçadas pelos seus futuros genros.

Mas nenhum deles, a não ser o Moço Pelado, nada conseguiu matar. Um dos príncipes, encontrando-o no mato, carregado de caça, e não o conhecendo, propôs-lhe comprar tudo, ao que ele concordou, exigindo, porém, recibo.

Na ocasião do banquete, o rei pediu que cada um dos genros contasse uma aventura curiosa, que lhes houvesse sucedido.

O primeiro, levantando-se, tirou do bolso o cotoco da língua da fera, e declarou:

– A maior façanha que tenho feito em toda a minha vida, foi matar o bicho que assolava o país. Não o disse naquela época, por modéstia.

O segundo, tomando a palavra, disse:

– Tenho feito muita coisa notável, que não quero lembrar. Direi apenas que fui eu quem caçou todas essas aves que estamos comendo.

Todos os convivas aplaudiram muito os altos feitos de tão valentes príncipes.

Chegando a vez de Remi, falou ele:

– E eu tenho a dizer que esses dois moços mentiram descaradamente. A prova é que, o que o primeiro apresentou, foi o cotoco da língua, porque quem matou a fera fui eu, e aqui mostro a ponta. Quanto às aves, eis o recibo que me passou o segundo, o que demonstra que também fui eu quem as caçou.

Dizendo isso, arrancou a bexiga de boi que lhe cobria a cabeça, e apareceu com os seus formosos cabelos de ouro, reconhecendo-se, assim, nele o moço misterioso das cavalgadas, para vergonha dos dois príncipes intrujões.

Os três cavalos desencantaram-se, tendo cumprido a missão que lhes fora destinada de proteger o filho de Inácio Peroba.
______________________________
Notas:
(*) Russo-queimado. Diz-se do cavalo de pelagem castanho clara, quase amarelada.
(*) Alazão. Diz-se do cavalo de pelagem castanho avermelhada.


Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 314


Carlos Drummond de Andrade (No Lotação)


Com o advento dos rádios transistores, o esporte, os fuxicos internacionais e a música popular passaram a ser nossos companheiros de viagem no ônibus e no lotação. Por isso não estranhei ao ouvir, em surdina, "areia da praia branquinha, branquinha, o vento  levou o amor que eu tinha". Olhando por olhar, não vi aparelho receptor junto ao ouvido do rapaz que se sentara a meu lado, e era junto de mim que a canção abria suas pétalas. O rapaz - moreninho, magro, terno escuro bem passado, de pobre caprichoso - tinha o rosto voltado para a rua, sua boca mal se entreabria. Cantava para fora do veículo e para dentro de si mesmo. Parecia ausente, perdido talvez em extensa praia de areia alva, à procura de marcas de pés desaparecidos.

Depois, cantou "se mil vezes você me deixar e voltar, eu aceito", e o fez um pouco mais alto. Passageiros viraram o pescoço  para ver de onde se exalavam essas falas de amor. Não queriam  acreditar  que alguém cantasse no interior do lotação. Rádio se tolera. Mas voz humana, próxima, direta? Dois deles fumavam, perto da inscrição que proíbe expressamente fumar no recinto, sob pena de multa. É tão natural desobedecer a uma proibição, como absurdo fazer alguma coisa que não desobedece a nada, mas não foi expressamente permitida: esta, sim, é a verdadeira, sutil infração. O rapaz cantava, sem proibição escrita. Era quase fenômeno.

Sem dúvida, no espírito de alguns passou a  ideia  de  reclamar. Mas sempre se espera que alguém o faça por nós. Havia o medo do ridículo, a possibilidade de um incidente desagradável. Dizer que o rapaz estava perturbando o sossego dos passageiros seria  demais. Que sossego? A viagem é cheia de rangidos, trancos, finos, freadas  bruscas, berros de  outros motoristas. Ele cometia uma ação inusitada, mas indefinível. Cantava. Cantava por si, talvez por nós, que não sabemos ou temos vergonha de cantar. Até que não cantava mal. "O amor, meu bem, não diz quando vem nem manda avisar ao  coração." Não podendo fazer nada contra o rapaz, uns sorriam, esse sorriso superior dos que sabem que não é direito cantar no lotação, mas que toleram, em nome da boa educação, a falta sonora de educação. Só as mulheres ficaram hirtas e neutrais como se não estivessem ouvindo nada, e portanto não fossem obrigadas a tomar atitude. É admirável nas mulheres esse fazer-de-conta, que lhes confere uma dignidade facial absoluta diante daquilo que elas não sabem como interpretar.

O cantor continuava a exalar o seu cancioneiro de penas de amor, de esperanças e juras cálidas. Sempre alheio à reação dos companheiros de viagem, sempre olhando para a rua ou para além da rua, variando de letras. No Flamengo, calou-se. Tirou o cigarro,  acendeu-o devagar, as pessoas começaram a sentir a estranheza do silêncio, afinal não era  mau ir para o trabalho ouvindo uma voz razoável falar de ternuras  e  praias enluaradas. Mas seria arriscado pedir-lhe que continuasse. Ele preferiu assobiar uma das músicas. Não era a mesma coisa. Terminado o cigarro, voltou a cantar, sério, longínquo.

Ao descer no Castelo, tive vontade de tocar-lhe no braço e dizer-lhe: "Obrigado, amigo." Lembrei-me, porém, daquele grego de Nunca aos domingos, que dançava pelo prazer de dançar, e não admitia aplausos.

Saí, com a cara mais indiferente do mundo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Cadeira de Balanço. RJ: José Olympio, 1976.

Baú de Trovas XI


Este vazio em meu peito,
veja a que ponto chegou:
dói-me tanto, e de tal jeito,
que nem saudade ficou...
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

- - - - - -
A mentira não resiste
por ser sempre incoerente;
vê-se logo que é um chiste:
a verdade é transparente...
ALFREDO BARBIERI
Taubaté/SP

- - - - - -
Por favor, não tire sarro,
pois vou contar-lhe um segredo:
quando saio com meu carro
os postes tremem de medo!
ARGEMIRA F. MARCONDES
Taubaté/SP

- - - - - -
Enquanto a vida não passa,
enquanto a morte não vem,
quem deixa marcas de graça
tem outros mundos no além!
ARI SANTOS DE CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

- - - - - -
Este vazio em meu peito
é só força de expressão.
Não há vazio perfeito,
se cheio de solidão!!!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

- - - - - -
Este vazio em meu peito,
dói tanto… é dor que não finda!
Dor da saudade... que aceito,
sem ela... dói mais ainda!
CAROLINA RAMOS
Santos/ SP

- - - - - -
Na gaiola um ser se agita,
com certeza por saudade...
Só não sei porque não grita
por socorro: LIBERDADE!
CÉLIA APARECIDA SILLI BARBOSA
Ribeirão Preto/SP

- - - - - –
Em meio a um mundo violento
poesia é paz natural.
E a trova mostra o talento
no teatro universal...
CÉLIA GUIMARÃES SANTANA
Sete Lagoas/MG

- - - - - -
Pelos mares do infinito,
jogo anzóis e redes novas,
e, no meu sonho bonito,
pesco cardumes de trovas!
DELCY CANALLES
Porto Alegre/RS

- - - - - -
Beleza é ter a prudência
de uma vida pura e calma,
onde a nossa consciência
não cria rugas na alma!
DILVA MARIA DE MORAES
Nova Friburgo/RJ

- - - - - -
Nas águas turvas da vida
que já não venço, alquebrada,
a fé é corda estendida
que me garante a chegada,
DOROTHY J. MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

- - - - - –
Que dolorosa ironia
é o discurso do patrão,
que fala em democracia
sem a divisão do pão,
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA
Saitama/Japão

- - - - - -
Jogo de amor não tem pressa,
adora preliminares...
Toda sedução começa
num longo beijo... de olhares!
ÉLBEA PRISCILA S. SILVA
Caçapava/SP

- - - - - -
De mãos dadas caminhava
com ele ao lado direito.
Minha alma doce sonhava
num casamento perfeito!
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

- - - - - -
Até mesmo o passarinho,
que pensa ter liberdade,
retorna sempre ao seu ninho,
do qual também tem saudade.
ILZE DE ARRUDA CAMARGO
Santos/SP

- - - - - -
Tenho vivo em minha mente
um porto de salvação,
que me faz muito contente
e feliz meu coração!
ISAIAS TEVES
Amparo/SP

- - - - - –
Jamais somo as amarguras
de minha vida sofrida…
eu somo em dobro as ternuras
para viver bem a vida...
IVONE TAGLIALEGNA PRADO
Belo Horizonte/MG

- - - - - -
A grande dor que apunhala,
a mágoa que me angustia,
é ver, no fundo da sala
tua cadeira vazia...
JANSKE N. SCHLENKER
Curitiba/PR
- - - - - –

Para uma vida perfeita,
devemos ter sempre em mente,
que toda e qualquer colheita,
deve-se à boa semente.
JOSÉ FELDMAN
Maringá/PR

- - - - - -
Para voltar não me peças.
Seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas
e arrepender-me outra vez!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG

- - - - - -
Abençoado é o momento
quando alguém, de coração,
liberta o ressentimento
e diz: -Perdoo-te, irmão!
JUPYRA VASCONCELOS
Belo Horizonte/MG

- - - - - -
A natureza se vinga
de toda agressão sofrida
e essa revolta respinga
no centro de nossa vida!
LUIZ CARLOS ABRITTA
Belo Horizonte/MG

- - - - - -
Á espera do teu regresso,
deixei a vida passar!...
Envelheci, mas... confesso:
valeu a pena esperar!
MARIA MADALENA FERREIRA
Magé/RJ

- - - - - -
Em meu peito, soluçando,
escondo uma dor antiga,
para dizê-la, cantando,
nos versos de uma cantiga!
MATUSALÉM DIAS DE MOURA
Vitória/ES

- - - - - –
Debruçada na janela,
a espargir o seu fulgor,
a lua cheia revela
segredos do nosso amor!
RELVA DO EGYPTO R. SILVEIRA
Belo Horizonte/MG

- - - - - -
Canta o rio a sua sanha
entre as pedras do caminho,
enquanto a noite acompanha
os sonhos do ribeirinho...
RITA MARCIANO MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

- - - - - -
Alegria verdadeira,
neste mundo de ilusão,
é sonhar a vida inteira
sem tirar os pés do chão.
ROBERTO RESENDE VILELA
Pouso Alegre/MG

- - - - - -
O trabalho que mais traz
a paz pela qual se anseia
é aquele que a gente faz
em prol da ventura alheia.
SANDRO PEREIRA REBEL
Niterói/RJ

- - - - - -
Como pode alguém falar
tudo aquilo que se sente,
numa trova singular
e que espelha a alma da gente?!
TALITA BATISTA
Campos dos Goytacazes/RJ

- - - - - -
A trova, grande tesouro
que só o trovador recria;
o sentimento vira ouro...
e os versos pura magia!
VANDA ALVES DA SILVA
Curitiba/PR

- - - - - –
Resta um semblante desfeito...
mas sei que, em tempos risonhos,
este vazio em meu peito
viveu repleto de sonhos...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

- - - - - -
Mesmo feita de madeira
toda ponte é uma passagem,
quer se queira ou não se queira,
que nos leva à outra margem.
VICTOR BATISTA
Barreiro/Portugal

- - - - - –
Este vazio em meu peito...
amor proibido entre nós:
em sonhos, no mesmo leito,
em nossa vida, dois sós!
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 313


Silmar Böhrer (Croniquinha) 4


Noites de ventos são parcerias no meu viver ventaneiro. Por onde ande são perenes companhias, intangíveis, invencíveis. Manhãs, tardes, noites, altas madrugadas.

Vagam ventos vagabundos 
ventarolando vozeiros, 
velhos ventos vagam mundos, 
velozes voláteis, vezeiros.

O responsório parece não ter igual, os ventos são deslumbramentos numa hosana celestial. Vamos, eu e os ventos - esses viajantes transitórios que levam e trazem cantigas de muito longe, as ondas dos mares e a poesia do mundo.

VAGUEIAM VERSOS VENTANEIROS.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Aparecido Raimundo de Souza (Diálogos Impossíveis)


TODA NOITE, A MESMA HORA, o telefone toca. Miresola corre a atender sabendo, de antemão, o que acontecerá assim que tirar o auscultador do gancho:

- Alô...?... Alô...?... Alô...?

-...

- Alô...?

-...

Do outro lado da linha ninguém dá sinais de vida:

- Alô...?

Miresola ouve a respiração descompassada, os dedos tamborilando no aparelho, mas voz, que é bom...

- Ora, vamos. Quem é você?  Diga seu nome.  Sua idade? O que quer? Por que me liga todas as noites nesse mesmo horário?

-...

- Fale. Se abra. Acaso se esconde de alguém?

-...

- Tem medo do quê?

-...

- Olha, não vou lhe machucar, nem morder. Ainda que pudesse chegar até a sua beira, viajando pelos fios...

-...

- Converse comigo... fale de você. Sonhos? O que gosta de fazer? Ler, ouvir música, sair, ir ao cinema? Frequenta barzinhos? Mora aqui perto de mim? Quem sabe no mesmo prédio? Acertei? Tem amigos? Pratica algum tipo de esporte? Acaso você é aquela moça que outro dia ajudei com as compras no elevador de serviço?

-...

Sem mais nem menos, um clique interrompe a ligação.

***

Tem sido assim meses e meses a fio. Miresola não sabe mais o que fazer. Percebe que de certa forma se tornou refém daquela situação que não se explica. Se sente como um idiota. Toda noite conversa com alguém, ou melhor, não conversa. Só ele fala, para um personagem desconhecido.

Sabe que é uma mulher. Jovem. A respiração calma, comedida. A maneira como tamborila os dedos. Tem absoluta certeza de que a pessoa que está do outro lado é a moça que ajudou semanas atrás no elevador.  Só não consegue ligar os pontos em relação ao inexplicável dessa criatura não responder.

Ele, inconsequente, fora de si, ama essa garota. Ama, de loucura, esse ser vivo, sem rosto, sem olhos, sem sorriso. Um personagem que ele não sabe afirmar categoricamente quem é.

Se ela ligar de novo...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Adênis Bergamaschi (Poemas Avulsos)


ASPIRAÇÃO

Quero sorver a doçura do teu beijo
no cálice da minha angústia.
Quero beijar teu fugidio olhar
com os lábios sedentos de minha alma,
uma só vez,
de tal modo
que eu fique satisfeito para sempre.
Quero tragar tua alegria e tua tristeza,
no mesmo instante,
com o mesmo prazer
e com o mesmo dissabor.
Quero abraçar-te com os braços gigantescos
do meu amor imenso
e permanecer unido a ti
no deserto da vida
e na solidão da morte.
****************************************

O RELÓGIO

Soa a meia-hora.
Perdido no tempo,
quero certificar-me da hora exata.
Mas, quando ouço outras pancadas,
não consigo contá-las.
Apenas distingo a meia-hora.
Meu cérebro está confuso...
Quero apenas saber que existo,
independente do tempo.
O relógio bate desordenadamente.
Sei que o tempo não parou.
Basta-me distinguir a meia-hora,
o momento marcado
para a realização do meu sonho.
****************************************

PRIMEIRA NAMORADA

Após tantos anos,
vejo-te surgir no horizonte
da minha adolescência distante.
Vejo-te qual estrela perdida
na noite comprida
da minha lembrança.

Vejo-te bela, sorrindo,
singela, pedindo
o meu coração.
Imagem querida,
por que me persegues?

É de todo impossível
ver-te a meu lado
e reviver, satisfeito,
as horas saudosas
de um sonho desfeito..,
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ROSA ABERTA

A rosa abriu-se
para saudar tua passagem,
Teu pensamento perdido na distância
não percebeu a imensidão do gesto da rosa.
Mas a rosa aberta ficou,
e suas pétalas sorridentes
aclamaram tua passagem.
Seguias por um caminho imaginário,
num momento de luz,
sorrindo às estrelas
no azul do sonho.
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SAUDAÇÃO A PROFESSORA PRIMÁRIA

Salve, Mestra primária, doce amiga
do nosso filho, da gentil criança,
primavera de sonhos, esperança
que todo lar alegremente abriga.

Salve, missão que a tanto amor obriga,
traduzindo em renúncia e confiança
o que será talvez vaga lembrança,
quando não fores mais que a Mestra antiga.

Salve, Mestra — caminho do porvir!
Aclamada serás aonde fores,
porque o bem tu sabes transmitir.

E, percorrendo os ásperos caminhos,
levas nas mãos o bálsamo das flores,
com que aplacas a ira dos espinhos.
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SONETO DE ESPERANÇA

(À memória de minha querida sogra D. Maria Starling do Pinho)

Trilhando a longa senda da Esperança,
vergada à cruz pela existência afora,
com fé e tão sublime confiança,
buscaste sempre a nova e eterna aurora.

Teu doce e puro riso de criança,
iluminando o teu viver, agora
unido à Luz da bem-aventurança,
resplandece na eterna e doce aurora.

Morreste para a vida transitória,
porém na eternidade ressurgiste,
participando da suprema Glória.

E descansas na Paz do amor divino,
onde a ventura verdadeira existe,
rendendo graças num eterno hino.
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TROVA

Ao lado da namorada,
pescava com alegria,
embora sem pegar nada,
que peixão ele trazia!
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Adênis Bergamaschi nasceu em Ribeirão de Cima/ES, em 17 de janeiro de 1935. Filho de Emilio Bergamaschi e de D. Idália Gasir Bergamaschi, falecidos. Casado com Léa Angelo Bergamaschi, bacharel e Licenciado em Letras Neolatinas pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Lecionou em alguns colégios de Belo Horizonte, sendo professor de redação comercial no Centro de Teleducação do SENAC e professor de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira no Colégio Técnico do Sindicato dos Hidrelétricos de Belo Horizonte.

Ex-colaborador de A Gazeta de Vitória/ES. Co-autor do livro "Filigranas" (trovas), publicado pela União Brasileira de Trovadores, seção de Belo Horizonte, à qual pertence. Autor do livro "Janela Vazia" (poemas), publicado em 1974, em Belo Horizonte. Participou do livro "Poetas do Brasil", com o conjunto de poemas intitulado "Silêncio das Horas", publicado sob a direção de Aparício Fernandes, em 1975.


Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Sílvio Romero (A Fonte das Três Comadres)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado todos os recursos da medicina, deixou de usar de remédios, e já estava desenganado de que nunca mais chegaria a recobrar a vista. Mas uma vez foi uma velhinha ao palácio pedir uma esmola, e, sabendo que o rei estava cego, pediu para falar com ele para lhe ensinar um remédio. O rei mandou-a entrar, e então ela disse: "Saberá vossa real majestade, que só existe uma coisa no mundo que lhe possa fazer voltar a vista, e vem a ser: banhar os olhos com água tirada da fonte das três comadres. Mas é muito difícil ir-se a essa fonte, que fica no reino mais longe que há daqui. Quem for buscar a água, deve-se entender com uma velha que existe perto da fonte, e ela é quem deve indicar se o dragão está acordado ou dormindo. O dragão é um monstro que guarda a fonte, que fica atrás de umas montanhas". O rei deu uma quantia à velha e a despediu.

Mandou preparar uma esquadra pronta de tudo e enviou o seu filho mais velho para ir buscar a água, dando-lhe um ano para estar de volta, não devendo ele saltar em parte alguma para não se distrair.

O moço partiu. Depois de andar muito, foi aportar em um reino muito rico, saltou para terra e namorou-se lá das festas e das moças. Despendeu tudo quanto levava, contraiu dívidas, e, passado o ano, não voltou para a casa de seu pai.

O rei ficou muito maçado (nota do blog: aborrecido) e mandou preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio para buscar a água da fonte das três comadres. O moço partiu, e, depois de muito andar, foi ter justamente ao reino em que estava já arrasado seu irmão mais velho. Meteu-se lá também no pagode e nas festas, pôs fora tudo que levava, e, no fim de um ano, também não voltou.

O rei ficou muito desgostoso. Então seu filho mais moço, que ainda era menino, se lhe apresentou e disse:

"Agora quero eu ir, meu pai, e lhe garanto que hei de trazer a água!"

O rei mangou com ele dizendo:

"Se teus irmãos, que eram homens, nada conseguiram, o que farás tu?"
Mas o principezinho insistiu, e a rainha aconselhou ao rei para mandá-lo dizendo:

"Muitas vezes donde não se espera, daí é que vem".

O rei anuiu, e mandou preparar uma esquadra e enviou o príncipe pequeno. Depois de muito navegar, o mocinho foi dar à terra onde estavam presos por dívidas os seus irmãos; pagou as dívidas deles, que foram soltos.

Quiseram dissuadi-lo de continuar a viagem e o convidaram para ali ficar com eles; mas o menino não quis e continuou a sua missão.

Depois de ainda muito navegar, o príncipe chegou ao lugar indicado pela velha. Desembarcou sozinho, levando uma garrafa, e foi ter à casa da velha, vizinha da fonte, a qual, quando o viu, ficou muito admirada, dizendo:

"Ó meu netinho, o que veio cá fazer?! Isto é um perigo; você talvez não escape. O monstro que guarda a fonte, que fica ali entre aquelas montanhas, é uma princesa encantada que tudo devora. Procure uma ocasião em que ela esteja dormindo para poder chegar, e repare bem que quando a fera está com os olhos abertos é que está dormindo, e quando está com eles fechados é que está acordada".

O príncipe tomou as sua precauções e partiu. Chegando lá na fonte avistou a fera com os olhos abertos. Estava dormindo. O mocinho se aproximou e começou a encher sua garrafa. Quando já se ia retirando, a fera acordou e lançou-se sobre ele.

"Quem te mandou vir a meus reinos, mortal atrevido?" dizia o monstro; e o moço ia-se defendendo com sua espada até que feriu a fera, e com o sangue ela se desencantou; e então disse:

"Eu devo me casar com aquele que me desencantou. Dou-te um ano para vires me buscar para casa, senão eu te irei ver."

A fera era uma princesa, a coisa mais linda que havia. Em sinal para ser o príncipe conhecido quando viesse, a princesa lhe deu uma de suas camisas.

O príncipe partiu de volta para terra de seus pais. Quando chegou ao reino onde estavam seus irmãos, os levou para bordo para voltarem para seu país. Os outros príncipes seguiram com ele. O menino tinha guardado a sua garrafa no seu baú, e os irmãos queriam roubá-la para lhe fazer mal e se apresentarem ao pai como tendo sido eles que tinham alcançado a água da fonte das três comadres.

Para isto propuseram ao pequeno dar-se um banquete a bordo da esquadra a toda a oficialidade, em comemoração a ter ele conseguido arranjar o remédio para o rei. O pequeno consentiu, e no banquete os seus irmãos, de propósito, propuseram muitas saúdes, com o fim de o embriagarem e poderem roubar-lhe a garrafa do baú. O pequeno de fato bebeu demais e ficou ébrio, os manos então tiraram-lhe a chave do baú, que ele trazia consigo, abriram-no e tiraram a garrafa d’água, e botaram outra no lugar, cheia de água do mar.

Quando a esquadra se apresentou na terra do rei, todos ficaram muito satisfeitos, sendo o príncipe menino recebido com muitas festas. Mas quando foi botar a água nos olhos do rei, este desesperou com o ardor, e então os seus dois outros filhos, dizendo que o pequeno era um impostor, e que eles é que tinham trazido a verdadeira água, deitaram dela nos olhos do pai, o qual sentiu logo o mundo se clarear e ficou vendo, como dantes.

Houve grandes festas no palácio e o príncipe mais moço foi condenado à morte. Mas os matadores tiveram pena de o matar e deixaram-no numas brenhas, cortando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei.

O menino foi dar à casa de um roceiro, que o tomou como seu escravo, e muito o maltratava. Passado um ano, chegou o tempo em que ele tinha de voltar para se ir casar, segundo tinha prometido à princesa da fonte das três comadres, e, não aparecendo ela mandou aparelhar uma esquadra muito forte, e partiu para o reino do moço príncipe, que há um ano tinha ido a seus reinos buscar um remédio, e que lhe tinha prometido casamento, isto sob pena de mandar fogo sobre a cidade.

O rei ficou muito agoniado, e o mais velho de seus filhos se apresentou a bordo, dizendo que era ele. Chegando a bordo a princesa lhe disse: "Homem atrevido, que é do sinal de nosso reconhecimento?" ele, que nada tinha, nada respondeu e voltou para terra muito chateado.

Nova intimação para terra, e então foi o segundo filho do rei, mas o mesmo lhe aconteceu. A princesa mandou acender os morrões, e mandou nova intimação à terra. O rei ficou aflitíssimo, supondo que tudo se ia acabar, porque seu último filho tinha sido morto por sua ordem.

Aí os dois encarregados de o matar declararam que o tinha deixado com vida, cortando-lhe apenas um dedo. Então, mais que depressa, se mandaram comissários por toda a parte procurando o príncipe, dando os sinais dele, e prometendo um prêmio a quem o trouxesse. O roceiro, que o tinha em casa, ficou mais morto do que vivo, quando soube que ele era filho do rei. Botou-o logo nas costas e o levou ao palácio chorando.

O príncipe foi logo lavado e preparado com sua roupa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava um pouco apertada e curta. O prazo que a princesa tinha concedido já estava a expirar, e já se iam acendendo os morrões para bombardear a cidade, quando o príncipe fez sinal de que já ia.

Chegando à esquadra, foi logo reconhecido pela princesa, que lhe exigiu o sinal do reconhecimento e ele lhe apresentou. Então seguiu com ela, com quem se casou e foi governar um dos mais ricos reinos do mundo.

Descoberta assim a tramoia dos dois filhos mais velhos do rei, foram eles amarrados às caudas de cavalos bravos, e morreram despedaçados.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

domingo, 5 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 312


Rachel de Queiroz (Pici)



Foi em 1927. Eu estava naquela faixa de entreaberto botão entrefechada rosa, louca por desabrochar e ver o mundo. No sertão o vento nordeste já soprava violento, a folha do marmeleiro enrolava e caía, e o mormaço do verão, entre as duas e as três da tarde, era de crestar a pele do rosto e as flores no meu pequeno jardim.

E então nós iniciamos a campanha pelo sítio de veraneio; e meu pai acabou comprando o sonhado sitio: por nome Pici, com açude, pomar, baixio de cana, num vale fresco e ventilado para os lados da lagoa da Parangaba. Só que nesse tempo se dizia Porangaba.

E começou nessa época um período muito feliz. Nós éramos seis filhos — dois rapazes, dois meninos e a caçula que começava a engatinhar. O transporte era o trem suburbano que parava defronte ao Asilo e nos levava para a cidade. Meu pai começou logo a plantar o baixio, a fazer planos para o engenho. Trouxe da fazenda as melhores vacas para a vacaria. Eu me iniciava timidamente, frequentando a roda dos literatos na cidade, roda liderada pelo nosso amado guru, Antônio Sales. Júlio Ibiapina me deixava escrever as primeiras croniquinhas no jornal O Ceará. Foi quando conheci Demócrito Rocha, que me dava muita confiança literária; Djacir Meneses, amigo fraterno até hoje. Jáder de Carvalho, meu primo, já amizade velha. O ruidoso e fulgurante Antônio Furtado. Ah, tantos que ainda hoje são amigos, essa graça Deus me deu de conservar os amigos, só a Inominável os carrega.

Mas isso não são recordações literárias, quero falar no sítio Pici.

O casarão era talvez mais do que centenário, feio e mal-amanhado, o chão interno em diversos planos, cheio de camarinhas e cafuas. Assim mesmo ainda hoje me dá remorso quando recordo que promovi os planos para o reformar — e no que se iam derrubando paredes, abrindo portas, a velha estrutura ia desmoronando toda, e por fim o jeito era arrasar tudo e fazer casa nova. Mereço desculpa, tinha só dezesseis anos, não dava valor a essas obras antigas. Meu pai, sei que lhe doeu a demolição; mas afinal a casa desabou mesmo e não tinha sido erguida nem morada por gente dele, argumento forte. Pertencera à família do Padre Rodolfo Ferreira da Cunha e fora vendida depois a um industrial, José Guedes, de quem a compramos.

A casa nova fizemos imensa, um vaticano, salas largas, rodeada de alpendres como nós gostávamos. Ali escrevi meus primeiros livros; O Quinze, muito perseguida, minha mãe me obrigava a dormir cedo — essa menina acaba tísica! — e assim, quando todos se recolhiam, eu me deitava de bruços no soalho da sala, junto ao farol de querosene que dormia aceso (ainda não chegara a eletricidade lá) e em cadernos de colegial. a lápis, escrevi o livrinho todo. Nas grandes mangueiras do pomar eu armava a minha rede e passava as tardes lendo. De noite, nós formávamos uma pequena orquestra com nosso professor de violão, Litrê, puxando no banjo; e a filha dele, Altair, muito bonitinha e afinada, e tinha um menino, Perose. Nas noites de lua vinham uns moços de Porangaba e nos faziam serenata, cantando Mi noche triste. Porque nesse tempo o chique era tango.

Mas depois fomos dispersando. Os rapazes se formavam, morreu um aos dezoito anos, e desceu uma sombra escura sobre o Pici. Veio a guerra, já então eu andava por longe, os americanos estabeleceram uma base lá perto e os blimps, os pequenos dirigíveis prateados, pousavam quase acima da nossa casa. Enquanto isso a cidade crescia, ia cercando o sítio com seus exércitos de casinholas populares. Dava ladrão na fruta, na cana, até nas galinhas e patos. Meu pai morreu. Morreu o outro rapaz. Minha mãe ainda tentou valentemente ficar — mas o cerco urbano se apertava. Vendeu-se o sítio.

Hoje, me contam que por lá mal há vestígios do que foi; aterraram o açude, onde era o engenho é agora uma igreja, abriram ruas no pomar derrubando as grandes mangueiras. Leio nos jornais a respeito do campus universitário do Pici — será na base dos americanos? Diz que o casarão é hoje uma velha casa de quintal pequeno, habitada por sucessivas famílias de estranhos.

Nunca mais fui lá. Dói demais, vai doer demais, imagino. Eu ainda escuto no coração as passadas de meu pai no ladrilho do alpendre, o sorriso de minha mãe abrindo a janela do meu quarto, manhã cedo: “Acorda, literata! Olha que sol lindo!” E as mangas, bola de ouro, que eram os cuidados dela — terão derrubado a mangueira bola de ouro?

Não, nunca mais quero ir lá. Ninguém desenterra um defunto amado para ver como é que estão os ossos.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.