quinta-feira, 9 de julho de 2020

Saki (O Tigre da Sra. Packletide)


Matar um tigre era intenção e desejo da sra. Packletide. Não que o instinto de morte se apossasse dela de repente, nem que ela pretendesse melhorar as condições da Índia, diminuindo a proporção de animais ferozes por milhões de habitantes. De uma hora para a outra ela decidira seguir a trilha de Nemrod pela simples razão de Loona Bimberton recentemente ter voado onze milhas em companhia de um certo aviador argelino — e desde então não se comentava outra coisa. A única maneira de se comparar a ela seria, pois, dar pessoalmente o golpe final na pele de um tigre e aparecer assim na imprensa ilustrada mundial. Antecipadamente, a sra. Packletide planejara um almoço na sua residência de Curzon Street, com o pretexto de homenagear Loona Bimberton; no entanto, o que monopolizaria a atenção geral seria a pele de tigre que se tornaria então o mote obrigatório de todas as conversas. Pensava ainda era mandar encravar uma das unhas do tigre num broche para presentear Loona Bimberton no dia do seu aniversário. Embora talvez seja verdade que a fome e o amor governem o mundo, a maioria dos impulsos e ações da sra. Packletide, fugindo a essa regra geral, dependia de sua própria e particular aversão a Loona Bimberton.

A sorte costumava proteger a sra. Packletide. Com a promessa de mil rúpias a quem lhe oferecesse a oportunidade de caçar um tigre sem maiores riscos nem demasiados esforços, descobriu-se nos arredores de uma aldeia, favorecida pelas incursões de um tigre, outrora formidável e que a idade inclemente reduzira a privar-se ele de sua caça graúda para devorar insignificantes animais domésticos. Ora, a perspectiva de embolsar mil rúpias estimulara o instinto esportivo e a ganância natural dos nativos; revezando-se nas cercanias da mata local, noite e dia, a criançada fiscalizava as idas e vindas do tigre, e temendo, aliás sem razão, que a besta resolvesse rondar outras paragens, para que ele não abandonasse a região, ardilosamente plantavam pelos campos próximos as cabras mais decadentes. O maior perigo era, no entanto, morrer o tigre de velho, antes de poder levar um tiro da "memsaihid". Voltando do trabalho, à tarde, com os filhos nos braços, as mães cantavam em surdina, com medo de incomodar o venerando ladrão de rebanhos que, àquela hora, dormia a sesta sossegado.

Chegou finalmente a grande noite, serena e enluarada. Num confortável palanque, erguido entre os galhos de uma árvore estrategicamente situada, agachara-se a sra. Packletide e sua dama-de-companhia, srta. Mebbin. Uma cabra, amarrada a uma distância razoável e dotada de voz possante, cortava o silêncio noturno com seus berros persistentes e capazes de impressionar os ouvidos algo moucos do tigre. Atenta
à espingarda adaptada e aos ruídos de aproximação, a caçadora aguardava a presa.

— Ai, meu Deus, será que a gente corre algum risco? — perguntou a srta. Mebbin, não tanto apavorada pelo tigre mas sim ante a idéia de servir a patroa nos menores detalhes.

— O quê? — disse a sra. Packletide. — Um tigre decrépito não consegue subir numa árvore destas, nem que queira.

— Mas se o tigre for tão velho assim, por que pagar por ele a enorme soma de mil rúpias?

A srta. Mebbin de fato dedicava ao dinheiro, de toda e qualquer procedência, sem distinção de nome ou de nacionalidade, um carinho bastante fraternal. Intervindo com energia, impedira que a sra. Packletide se derramasse em gorjetas num hotel em Moscou, com muitos rublos, francos e cêntimos que a ela se agarravam, opondo-se por instinto a que eles escorregassem para outras mãos. A entrada em cena do herói da festa interrompeu, no entanto, estas considerações sobre as prováveis depreciações do tigre em questão. Ao ver de longe a cabra amarrada, a fera estendeu-se logo pelo solo, não talvez para se esconder, mas para repousar um pouco, antes do bote final.

— Este animal está doente — exclamou a srta. Mebbin na língua industã, dirigindo-se ao maioral da aldeia, entrincheirado ali, de pé, noutra árvore.

— Psiu! — disse a sra. Packletide, observando a fera rastejar em direção à vítima.

— Olhe só! — insistiu a srta. Mebbin, agitada. — Se não pegar a cabra, não pagaremos nada por ela. (De fato a isca não estava incluída no acerto.)

A espingarda fez um estrondo ao disparar, e a fera, dando um salto, rolou de lado, imobilizando-se na morte. Na mesma hora, uma multidão de nativos acorreu ao local e encheu o ar de gritos estridentes e alvissareiros, enquanto que lá na aldeia os tambores rufavam e juntavam-se ao coro triunfal. Os gritos de vitória repercutiram suavemente no coração da sra. Packletide: estava mais próximo, no horizonte, o tal almoço em Curzon Street.

E eis senão quando a srta. Mebbin reparou que a cabra, ferida de morte, estrebuchava em plena agonia, enquanto que no tigre não se notava o mínimo sinal de bala. Evidentemente, o tiro errara o alvo. O feroz animal sucumbira a um ataque do coração, devido não só ao inesperado estampido como a uma senil esclerose arterial. Diante desta situação incontestável, a sra. Packletide sentiu-se desapontada, mas não de todo. Fosse como fosse, no entanto, ela era dona de um tigre defunto e os nativos, de olhos nas rúpias, de boa vontade fingiram acreditar que fora ela quem matara a fera. E quanto à srta. Mebbin, bem, ela era sua dama-de-companhia. Consequentemente, a sra. Packletide, depois de enfrentar impavidamente as máquinas fotográficas, saiu das páginas do Texas Weekley Snapshot para as do suplemento ilustrado do Novoe Vremva, ganhando fama no mundo inteiro. Quanto a Loona Bimberton, deixou de ler os jornais ilustrados por semanas, e, ao agradecer a garra de tigre transformada em broche, escreveu uma carta plena de emoções recalcadas à sra. Packletide.

O tapete de pele de tigre foi despachado de Cruzon Street para o Solar da Família, a fim de ser devidamente examinado e admirado no condado, onde todos acharam mais do que natural que a sra. Packletide comparecesse ao baile à fantasia da região vestida de Diana, a Caçadora. No entanto, ela se negou a aceitar o, aliás, ótimo conselho de Clóvis* para promover uma soirée dançante pré-histórica, em que todos comparecessem embrulhados em peles de animais recentemente caçados.

— Não que eu tivesse a pretensão, vamos dizer assim, de brilhar — confessou Clóvis — exibindo uma calcinha feita de duas ou três simples peles de coelho. Embora — acrescentara, lançando um olhar de esguelha e de malícia à majestosa Diana — possa me gabar de uma beleza comparável à daquele rapazola lá, fantasiado de dançarino russo.

— Se o pessoal aqui soubesse o que realmente aconteceu daria boas risadas — disse a srta. Mebbin, dias depois do baile.

— Como? O que é que você está dizendo? — exclamou a sra. Packletide, assustada.

— Mas não é verdade que a bala matou a cabra e o tigre morreu de susto? — disse a srta. Mebbin, com seu riso irritante e agradável, ao mesmo tempo.

— Ninguém seria capaz de acreditar numa coisa destas — disse a sra. Packletide, mudando de cor gradualmente, como um livro ilustrado folheado rapidamente.

— Loona Bimberton acreditaria — disse a srta. Mebbin.

Um tom amarelo-esverdeado de péssima aparência acabou se fixando no rosto da sra. Packletide.

— Por acaso você está pretendendo me trair? — perguntou ela.

– Vi, lá perto de Dorking, uma bela casinha de férias – retrucou a srta. Mebbin, com uma aparente incoerência. — Custa apenas seiscentas e oitenta libras. Uma verdadeira pechincha. Ah, se eu tivesse este dinheiro!

Os amigos da srta. Mebbin, desfrutando os fins de semana na tal casinha, por ela batizada de "Les Fauves", não se cansam de admirar os canteiros do jardim, cobertos no verão de lírios tigrados.

– Como será que ela conseguiu comprar esta casa? – comentam, intrigados, uns com os outros.

A sra. Packletide desistiu de uma vez por todas da caça.

— As despesas extras são pesadas demais — confiou ela a amigos curiosos.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa. Viver de Rir II. RJ: Record, 1997.

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