Acordara triste. Permanecia triste, sem bem saber o porquê. Nem sempre a tristeza que se sente tem explicação. Algo assim como neblina teimosa, que desce sobre a paisagem, sem mesmo precisar de lógica. A condição de adolescente dava a Maria Augusta o direito de aceitar, sem questionamentos, as íntimas oscilações do ego em busca de afirmação. Direito esse negado a qualquer adulto, para quem alegria e tristeza têm sempre conotações explícitas e imediatistas.
Maria Augusta sentia-se triste porque sentia-se triste, assim como a planta enlanguesce pelo desconsolo de não ter alguém para matar-lhe a sede; assim como o salgueiro debruçado às margens de um rio cantante, não precisa de motivos para justificar a aparente melancolia, mesmo que a brisa marota venha brincar de arrepiar suas folhas.
A exemplo do salgueiro-chorão, a menina-moça, não mais menina e não ainda moça, estava triste, sem razões palpáveis nem preocupações de auto-análise. Faltava-lhe alguém que lhe ninasse a tristeza, que dela partilhasse ou então que a soprasse para longe, como névoa indesejável, dissipada pela brisa amiga, que tristeza é sempre mais triste, se curtida em solidão.
O aroma do café fresco estimulava-lhe os passos, naquela manhã que nascia. Ao passar pelo escritório do pai, há um ano falecido, estacou. Aquele cômodo, situado na parte mais nobre do velho casarão, era, por assim dizer, sagrado. Sempre que o pai nele adentrava, trancando a porta, era como se dependurasse, pelo lado de fora, um aviso: — "Não perturbem". Todos, sem exceção, respeitavam a ordem, como se deveras o letreiro existisse. Por isso mesmo, à moça sempre intrigara aquele pequeno santuário, onde as letras eram cultuadas através de divindades inspiradoras, cujos nomes, desde criança, aprendera a venerar. Era o templo das Musas. Os mortais ficavam-lhe à soleira.
A curiosidade impulsionava Maria Augusta. Torceu a maçaneta e devagarinho insinuou-se no aposento.
A penumbra casou bem com a névoa que trazia na alma. Após pausa emocionada, acendeu o abajur, disposto atrás da escrivaninha. Passeou o olhar pelas paredes forradas de livros. Apanhou alguns volumes abandonados sobre a mesa; soprando-lhes a poeira invasiva, recolocou-os nas vagas das estantes, com o desvelo de que se faziam credores. Tinham credenciais as mais ilustres — sábios, poetas e filósofos, amigos inseparáveis de seu finado pai, que com eles dividira a maior parte de suas horas. Amigos prontos a lhe fazer companhia, sempre que solicitados.
A jovem folheou algumas obras, tentando familiarizar-se com elas. Não conseguiu. Pesavam mais do que suportava sua mente pouco madura, não ainda preparada para leituras de maior consistência. Precisava de outros amigos. Aqueles, tão queridos de seu pai, não pertenciam à sua estirpe. Falavam com jeito passadista, conduzindo-a por vias que não a levavam a lugar algum. A maioria dos problemas que debatiam já estava devidamente suplantada pelo avanço do tempo. Até mesmo as questões passionais pareciam praticamente superadas: — para um amor impossível, havia o aceno promissor do divórcio, a abrir claros de esperança, meio aos trovões domésticos. As distâncias, encolhidas sucessivamente pelos jatos e supersônicos, não impunham mais angústias aos corações apaixonados. Notícias, cavalgando botões e teclas, tinham sabor de agora, na época movida a cibernética. O hoje, daí a um nada, virava ontem e o amanhã, se não navegado com urgência, sem mais aquela, ancorava no passado.
E os sonhos? Onde ficavam, afinal os sonhos?
Se — dentro dessa sensação angustiante de sentir a fuga acelerada dos próprios passos, sem coragem de arrastar-se atrás deles — viver era tão difícil, sonhar, então?! Por quê? Para quê?
A mente simplista, imatura e ao mesmo tempo romântica, da adolescente, mais e mais a separara do legar à filha o brilho da sua riqueza interior.
Maria Augusta deixou as derradeiras reflexões prensadas entre as páginas do último livro folheado. Concentrou a atenção na pequena estante que se destacava das demais — móvel antigo, esculpido com arte e requinte. Como viera aquela estante incorporar-se aos bens da família, não sabia. O sóbrio escritório do pai, há tantos anos, religiosamente o mesmo, sempre contara com a presença dessa peça de arte, estilosa, depositária de precioso acervo de filosofia, história, de qualquer amante da cultura,
Tinha bom gosto o pai!
Maria Augusta passou os dedos, carinhosamente, pela macia ondulação das lombadas. Algumas obras tinham encadernação primorosa, iluminadas artisticamente por douraduras.
Entre aquelas preciosidades, descobriu um pequeno livro, presença humilde, roída pelos dentes implacáveis do tempo. Destoava do todo, por isso mesmo fazia-se notar.
Manuseado por mãos pouco cuidadosas, o velho livro lembrava soldado cansado, remanescente de múltiplas batalhas, guardando no corpo as marcas dos entreveres.
Intrigada, a moça puxou-o da estante, constatando, surpresa, tratar-se de velha cartilha.
Logo à primeira página, o esclarecimento escrito por mão infantil, truncado por misteriosas reticências: "Este livro pertence a... 8 anos — 2° ano primário"
O nome do aluno mantido em segredo e acobertado pelas reticências, instigou mais a curiosidade de Maria Augusta, principalmente depois de ler no rodapé:
— Quer saber o meu nome? Então, vá até a página 28.
Folheou a cartilha rapidamente e, na página indicada, encontrou mais um recado: — Não é aqui... meu nome está quatro páginas adiante.
Já divertida, a moça prosseguiu, pacientemente, ao sabor das pistas, tendo embora a certeza de que não alcançaria, tão cedo, o objetivo.
Uma após outra, as sugestões levavam a leitora a virar e revirar o livro, detrás para diante, de cima para baixo, de acordo com os caprichos do misterioso proprietário da cartilha:
— Você quase me achou... volte três páginas.
— Agora, procure na última.
— Seu bobo, meu nome está na página do meio.
— Nessa? não... na que vem depois.
— Vire o livro de cabeça para baixo. Conte três páginas,
— Calma... é só virar mais uma!
— Juro que se contar dez páginas, vai saber o meu nome.
Já impaciente, Maria Augusta contou, religiosamente, as dez páginas exigidas e, com agradável emoção, pôde ler, afinal, grafado com letra irregular, um nome muito querido — o nome de seu pai!
Vibrou emocionada! Impenetrável, aparentemente frio, austero como o próprio escritório onde passava a maior parte de sua vida, aquele pai sisudo e distante, tinha sido criança, travessa e alegre, como qualquer outra, capaz de uma brincadeira inocente!
Brincadeira que, tantos anos depois, sopraria brumas que enevoavam as fantasias da filha, emocionalmente carente. Entendia, agora, o porquê daquele livro, singelo, em precário estado, ter conquistado o direito de figurar entre obras de tão significativa importância. Era o primeiro degrau de uma escalada brilhante. Sem passar por ele, o pai não teria atingido o estágio privilegiado que lhe dera tanto renome.
Pai e filha reencontravam-se nesse primeiro patamar, com muitos anos de atraso. Não tarde demais, porém, para reconhecer que ali estava o elo de ternura que faltava entre eles!
E havia ainda uma outra surpresa reservada à moça:
Um pequeno envelope, perdido entre as folhas da cartilha, deslizou para o chão. Apanhou-o. Continha uma carta. Maria Augusta arregalou os olhos maravilhados: — uma carta para Papai Noel, assinada por seu pai! Exultou! A data — dezembro de 1924. Oito anos, portanto, tinha o remetente. O texto deliciou-a:
— Querido Papai Noel —
Hoje briguei na escola por sua causa. Meu amigo riu de mim e disse que você não existia. Fiquei fulo da vida! Como é que você. Papai Noel, pode ser meu pai, se meu pai já morreu quando eu tinha três anos?!
Às vezes, fico triste... será que você não existe mesmo?
Não sei nem se vou ter coragem de mandar esta carta, E se mandar, não sei se ela vai chegar até aí. Mas, puxa! eu queria tanto que você existisse!
Pai Noel, se você for mesmo de verdade, por favor, veja se me traz uma caneta bem bonita, dessas que já vêm cheias de tinta azul e também um caderno bem grosso, bem grosso mesmo, para eu escrever uma porção de histórias!
Boa noite. Papai Noel. Prometo que não vou brigar nunca mais com ninguém. Bênção.
Luiz
Maria Augusta enxugou as lágrimas e dobrou a carta, carinhosamente, com um suspiro.
O envelope foi recolocado dentro da cartilha, e esta voltou a ocupar, como venerada relíquia, o lugar onde a deixara o sentimentalismo paterno. Rompera–se a cortina de gelo. Passava a entender o pai como pessoa simples, humana, comum. Gente, enfim! Acima de tudo, gente de grande sensibilidade e, sem dúvida alguma, muito privilegiada. Seu pai ascendera por esforço próprio e méritos incontestáveis, méritos dos quais Maria Augusta, agora, profundamente se orgulhava. Sentia que o amava como nunca pensara amar!
A moça deixou o escritório com o coração mais leve. Crescera um pouco mais,
Fechou, cuidadosamente, a porta e escancarou as janelas da alma!
Aspirou o ar fresco da manhã, tal se fora uma dádiva do céu!
O beijo do sol acariciou-lhe, mornamente, a pele. Notou, então, que a neblina teimosa deixara de toldar a paisagem da sua vida. O Natal avizinhava-se. Feliz, agradeceu a Pai Noel o presente antecipado.
Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.
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