domingo, 26 de julho de 2020

Figueiredo Pimentel (O Moleque da Carapuça Dourada)


Manuel Borba, depois de trabalhar a existência inteira, velho e cansado já, próximo do fim, via-se, como no princípio da sua carreira, cada vez mais pobre, ganhando o indispensável para não morrer de fome. Toda a sua fortuna consistia em uma roça que cultivava com os dois filhos.

Ao chegar a casa, uma tarde, teve notícia que a mulher dera à luz um menino muito desenvolvido e forte que ficou se chamando Anselmo. Não obstante ser pobre, ficou muito contente com o nascimento do filho, que prosperava dia a dia, a olhos vistos, cada vez mais, a ponto de ser, ao cabo de um mês, do tamanho de um homem. Além disso, comia como um gigante; só se contentava com um boi inteiro para jantar!

Borba, vendo que não podia sustentar um filho assim, aconselhou-se com Barbosa, sua mulher, e combinaram os dois de mandar o rapaz procurar a vida. Anselmo não se incomodou com a notícia. Pediu apenas que o pai mandasse fazer uma bengala de ferro, uma foice e um machado, grandes e pesados.

Assim que tais instrumentos ficaram prontos, partiu ele a correr mundo.

Depois de muito andar, chegou à casa de um lavrador, e ofereceu-lhe os seus serviços, que foram aceitos. Sendo incumbido de fazer uma roça, em três ou quatro foiçadas, pôs abaixo todas as matas da fazenda.

O fazendeiro, assustado com semelhante empregado, com uma desculpa qualquer, pensou em despedi-lo, dizendo que não precisava mais dele.

À hora do jantar, quando apresentaram a comida comum, recusou-se Anselmo a jantar, dizendo que, o que estava na mesa não chegava nem para o buraco de um dente, e pediu, para aliviar um pouco a fome com que estava, um boi e dois sacos de farinha.

O fazendeiro mandou dar-lhe o que pedia, e muito admirado, ficou quando o viu devorar tudo. Então, cada vez mais amedrontado, despediu-o.

Partiu o nosso herói em busca de novo emprego chegando ao palácio de um rei.

Perguntando o que sabia fazer, Anselmo respondeu:

– Saberá vossa real majestade que sei fazer, tudo, e sou capaz de tudo neste mundo.

À vista disso, o rei, para experimentá-lo, mandou-o caçar seis leões, que andavam devastando os arredores.

O moço aceitou a incumbência, e pediu um carro com três juntas de bois. Passou seis dias nas matas, onde estavam os. leões. Em cada dia matava um boi para comer, e prendia um leão, que amansava e atrelava ao carro. No fim desse tempo, cortou árvores das mais grossas e trouxe-as para a cidade, no carro puxado pelos leões amansados.

O povo, ao ver aquele carro com árvores enormes, puxado por leões, correu a contar o que via.

Assim que Anselmo chegou à praça, em frente ao palácio real, o rei mandou que os soldados matassem os seis animais ferozes, e avisassem o homem que saísse o mais depressa possível, sob pena de ser fuzilado.

Recebendo tal intimação, ficou Anselmo admirado de ter feito coisa que zangasse a real majestade, e indagando porque motivo o expulsavam do reino, não obteve resposta alguma.

Desconsolado por ver que ninguém queria aceitar seus serviços, partiu da cidade, protestando que não se empregaria mais.

– Agora vou trabalhar por minha conta; não quero mais saber de patrões, pois tenho sido infeliz com meus amos. Quero experimentar a vida, sem ter que dar satisfação a pessoa alguma.

Jornadeava ele por uma estrada muito larga e muito comprida, a ponto de se perder de vista, quando, depois de muito caminhar, encontrou um rio. Parando, para descansar, viu um homem atravessá-lo, sem se molhar.

– Como é que você anda na água, sem se molhar? indagou. Como se chama você?

– Eu me chamo o Homem-peixe. Você admirado de me ver passar este riacho; quanto mais se souber que acabei de atravessar todo o mar!

– Quer vir em minha companhia? perguntou Anselmo.

– Quero, disse o Homem-peixe.

– Pois então, passe-me para o outro lado.

O Homem-peixe carregou-o nas costas e caminhou para a outra margem. Seguiram os dois companheiros, quando, depois de andarem muito tempo, encontraram um homem cortando cipó e emendando-o para fazer um laço.

– Que fazes aí, homem? Como te chamas?

– Chamo-me o Homem-laçador. Estou a fazer este laço para laçar uma boiada que está pastando num campo, dez léguas daqui.

– O que me dizes, Homem-laçador, é admirável! Queres vir em nossa companhia?

– Pois não; e até estimo, porque não gosto de viajar só.

E lá seguiram os três companheiros a procurar a vida, por este mundo de Cristo em fora.

Pararam numa casa abandonada, no meio de uma floresta, e combinaram que o Homem-peixe fosse buscar comida para os três. O companheiro encontrou no caminho um molequinho, muito preto, com uma carapuça dourada na cabeça, que lhe pediu fogo para o cachimbo.

O Homem-peixe, não quis dá-lo; e o moleque, para se vingar, arrumou-lhe o cachimbo na cabeça, com tanta força, que o prostrou sem sentidos, no chão. Quando voltou a si, já não encontrou mais o pretinho, mas dirigiu-se para casa, contando aos outros o que lhe havia sucedido.

Disse o Homem-laçador:

– Qual, Homem-peixe, você é um moleirão! Amanhã quem vai sou eu; quero ver se o molecote me põe também por terra, sem sentidos.

E assim fez.

Estava já o laçador muito longe, quando lhe apareceu o moleque, pedindo-lhe fogo para a cachimbo.

O laçador não quis dar, e os dois começaram a lutar numa briga muito feia que durou mais de uma hora. Afinal, o moleque de carapuça dourada lhe deu com o cachimbo tal pancada na cabeça, que o pôs por terra, desacordado.

Quando o laçador deu acordo de si, voltou envergonhado para casa e contou aos companheiros o que lhe acontecera.

Anselmo começou a caçoar, chamando ambos maricas, moleirões, e disse que era ele quem iria no dia seguinte.

De manhã cedo partiu com a sua bengala de ferro e, depois de muito andar, em um lugar afastado encontrou o tal moleque, que lhe disse:

– Olá, Anselmo, como vai?...

– Bem obrigado. E tu, como vais, moleque?

– Bem. Muito obrigado. Dá-me fogo para acender o meu cachimbo?

– Não, moleque, não dou; e retira-te já daqui, senão... senão...

Meteu-lhe a bengala, e o moleque meteu-lhe o cachimbo. Travaram uma luta medonha de mais de duas horas.

Afinal Anselmo deu-lhe com a bengala de ferro, com tanta força, que o moleque se viu de repente sem a carapuça dourada na cabeça.

Anselmo apanhou-a, mais que depressa.

– Dê-me a minha carapuça, pelo amor de seu pai! dizia o moleque, de joelhos.

– Só te darei, se me deres as três princesas que tens em teu poder, respondeu o valentão.

– Não posso, porque não são minhas.

– Então, vai-te daqui, negro amaldiçoado!

O negro, que era o diabo, que vigiava as três princesas, foi andando... Anselmo acompanhou.

De repente o moleque entrou por um buraco, feito na terra, sempre acompanhado por Anselmo, que não deixava de o perseguir. Chegaram a um palácio riquíssimo, todo de ouro, onde havia muita gente trabalhando em caldeiras, em fogo, em ferro, e outros metais.

Aí chegando, o moleque pensou que o outro tinha medo do que via, e pediu novamente a sua carapuça. Respondeu Anselmo que só a entregaria se o negro lhe desse as três princesas.

O diabo, vendo que era o mais fraco, resolveu-se a entregá-las.

– Agora, só te darei a carapuça se me puseres lá fora, disse Anselmo.

Satanás não quis, e ele meteu-lhe outra vez a bengala. Vendo o diabo que de todo não podia com Anselmo, fez tudo quanto ele exigia.

O Homem-peixe e o laçador, que tinham ido à espreita, assim que viram três moças lindas saírem daquele buraco, fugiram com elas, enganando dessa forma o companheiro.

Anselmo não se incomodou muito com aquilo.

Recebera ele de cada uma das três moças um lenço, e sabia que mais tarde ou mais cedo havia de lhes descobrir o paradeiro.

O Homem-peixe e o Homem-laçador souberam que elas eram filhas de um rei poderoso, que habitava não longe dali, se fossem por mar, e muito longe se a caminhada fosse feita por terra. Seriam, então, precisos dois anos para se chegar lá.

O Homem-peixe disse:

– Com isso não me incomodo, minhas formosas princesas, pois até ando melhor na água do que em terra; o que está me impedindo de fazer a viagem por mar é que não as posso levar e mais o meu companheiro.

– Não seja esta a dúvida, Homem-peixe. Se te comprometeres a nos levar por mar, sem perigo, vou fazer um laço para prender as três lindas princesas e nós dois as levaremos.

Ficaram combinados.

Chegados ao palácio, o rei recebeu com alegria as filhas, e já tratava os dois companheiros como filhos.

Nesse intervalo, Anselmo, cansado de procurar as três princesas, sonhou que os três lenços que elas lhes haviam dado eram encantados, e se ele quisesse o conduziriam ao palácio do rei.

Acordou muito satisfeito, apanhou o primeiro lenço e disse:

– Voa, meu lenço, para o colo de tua dona.

O lenço virou papagaio, e desapareceu.

Quando a princesa o viu, lembrou-se do seu salvador e disse:

– Meu pai, só me casarei com o dono deste lenço.

Anselmo fez o mesmo com o segundo, que foi no colo da segunda princesa, que repetiu ao rei o que sua irmã dissera.

Vendo os dois lenços se transformarem em dois papagaios, Anselmo pegou no terceiro:

– Voa, lenço que a princesa me deu, voa e leva-me até o castelo do rei, seu pai.

O lenço transformou-se num grande papagaio com um selinzinho de ouro nas costas.

Anselmo cavalgou-o, e quando deu acordo estava no palácio.

Descoberto o embuste, Anselmo casou-se com a mais bonita das princesas. Os dois companheiros foram expulsos, depois de bem castigados.

As outras duas princesas casaram-se com dois príncipes vizinhos, senhores de um reino amigo.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

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