segunda-feira, 27 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Quatro: Desvio de conduta


 
 O PACIENTE TERMINAL da enfermaria 69  recebe, naquela manhã  bonita de sol radiante, a visita de um padre:

— Bom dia, meu filho. Desculpe estar aqui logo cedo. Infelizmente a minha visita não é das melhores.

O enfermo, todavia, não se dá  por vencido. Sorri e se abre em mesuras diante da figura negra do recém chegado:

— Bom dia, seu padre.  Esquece as noticias ruins. Ainda vou durar muito. Acho que aguento mais umas duas ou três diárias.

O sacerdote,  rosto fechado, insiste:

— Falei com seu médico. Aliás, foi a pedido dele que vim ter com a sua pessoa:

— Seu padre, se ele falou que estou prestes a virar defunto, perdeu seu tempo...

—Engano seu, meu filho. O doutor Aristeu sabe das coisas. Quando manda me chamar... É caixão, na certa.

— Desta vez ele deu com os burros n’ água.

O representante da igreja parece disposto a deixar o acamado com as suas poucas esperanças para baixo:

— Aposto com o senhor que seu quadro clínico está bastante precário. Suas horas estão contadas... A sua debilitação está às claras:

— Já que o senhor falou em aposta, seu padre, vamos apostar? Quanto?

— Meu amado filho, eu sou um sacerdote. Literalmente contra jogos e apostas. Fique sabendo que jogo, seja ele qual for a modalidade é pecado.

Seguro de si, o moribundo contra ataca:
— Agourar a morte de alguém,  o senhor não acha, que é um tremendo e grande  pecado, seu padre?

O religioso se benze e abre a sua Bíblia:

— Meu filho, toda a equipe médica que está cuidando do seu caso, sabe que o mal que lhe atormenta os fundilhos dos ossos o coloca na beira da sepultura.

—O senhor é um padre estranho. Acaso brigou com Deus?

—Por que diz isto, meu amado filho?

—Acho que a sua presença aqui deveria ser para me colocar para cima, me trazer alento, me revigorar, não me empurrar para os braços da desgranhenta. Olhe para meu estado. Careço de bons fluidos, de energia positiva...

O consagrado, apesar destas palavras segue disposto a desencorajar o infeliz:

 — Meu amado irmão,  não gosto de  mentir para meus paroquianos. Seria como se eu estivesse traindo aquele a quem represento.  Agora, por favor, eleve seus pensamentos ao Pai.

O debilitado tenta levar as palavras do jacobino para o lado da brincadeira:

 —Meu pai já era, seu padre.

— Faço referência ao Senhor Jesus, o nosso Cristo Salvador.

—Ah...!

O presbítero se prepara para  a liturgia:

 —Vamos, feche os olhos.

O valetudinário, embora esteja com a saúde depauperada, capenga das pernas e aleijado dos olhos, tenta levar aquele breve momento trágico, transformando-o numa espécie de piada:

 —De maneira alguma, seu moço. Tenho medo de escuro.

—Não se preocupe, não tema – Acorre o piedoso.  — Eu estarei aqui, a seu lado, para lhe ajudar na passagem.

O acamado emite um riso débil como se fizesse um esforço sobre-humano:

 — Seu padre, tenho quase 98 anos. Não pago mais passagem. Se o senhor olhar nas minhas coisas ai... Verá que tenho um cartãozinho de passe livre.

— Meu querido e amado -, insiste o compadecido da batina -, falo da sua passagem  para o Alto Ceu. Dentro em breve estará saindo daqui... Como diria,  voando...

O moribundo volta a tentar sorrir mas a sua ousadia inutilizada sai ainda mais desfalecida e deformada:

— Outro engano seu, padre. Tenho medo de avião. Sofro da síndrome de Belchior.

— Síndrome de quem?

— De Belchior, o autor daquela música “Medo de avião”, cuja letra diz assim: “foi com medo de avião... Que eu segurei pela primeira vez na sua mão...”.   

— Quem falou em avião?

— O senhor.

— Eu?

—Sim o senhor.

— Eu não falei em avião.

Apesar de quase não se aguentar, o amofinado não desiste:

— O senhor deixou claro que eu sairei daqui voando... Se não tenho asas, como haverei de voar? Acaso tenho parentesco com Ícaro?

— Eu disse voar no sentido de ir em direção às mansões celestiais.

— O senhor, por acaso, sabe como chegarei até Ele?

— Claro, meu filho. Assim que  fechar os olhos, dormirá na paz do Altíssimo.

—Impossível...

— Como assim? Para Deus, nada é impossível.

O deplorável  segue firme na sua determinação de não entregar os pontos:

— Seu padre, faço referência a fechar os olhos e dormir. Esta noite,  por azar, dormi como um nababo. Estou sem sono. Desista. Volte para a sua igreja.

O pontífice, mostra certa irritação:

— Como representante de Deus, aqui na Terra, jamais desisto das minhas missões. Você faz parte delas. Olha, assim que me der a mão, rezarmos, e  eu irei embora. 

— Temos um novo problema que acabou de surgir. Não sei rezar.

— Não seja por isso. Eu lhe ensino.

— Estou velho demais para aprender. Mal enxergo. O senhor mesmo, acredite, estou lhe vendo apenas como um ligeiro vulto esbranquiçado. E olha que o dia acabou de começar.

O pastor abaixa a cabeça, se benze e faz uma pequena oração:

— Não tema. Me dê a sua mão.

— Que isso, seu padre! -  Está me estranhando? - Depois de velho acha que pretendo sair do armário? Nem morta!

— O seu coração não está aberto. Abra seu coração. Se entregue à Deus. Não resista.

O pobre homem estratificado segue brincalhão:

— Coração... Coração. Seu padre, não seria melhor o senhor acionar  à enfermeira e ela mandar vir o meu cardiologista?

— Meu filho, não zombe. Seu caso é sério. Vamos, me dê a sua mão.

O mazelento sai, então, do sério. Não é para menos. Seu estado de depauperismo o coloca fora de controle: 

—  Seu padre idiota, quer saber de uma coisa? Vá plantar batatas...

O confessor mostra certa frieza ao tempo em que franze o cenho:

— Meu filho, só estou querendo ajudar...

— Me ajudar desta forma? Me encalistando? Quer saber? Pra mim chega. Vá de reto, vá de reto...

O abuna, convicto de seu encargo, do seu compromisso não deveria, jamais... Entretanto,  acaba perdendo as estribeiras. Não fala, berra:

 — Ora, seu mal educado. Quer saber digo eu. Vá para os quintos do inferno. Seu ateu do diabo. Nada mais me prende aqui. Passe bem. O capeta que o carregue.

O  fraco e inválido, igualmente fora de si, tenta se levantar. Não consegue. Chorando, a voz embargada não perde a pose:

— Agora o senhor acertou, seu padre. Na mosca. Daqui a pouco vou estar falando com ele.

— Com ele? Ele quem, seu monte de estrume?

— Com o Capiroto, seu burro. Com quem mais? Quer mandar algum recado?  Aproveita   que eu levo e entrego pessoalmente.

O franciscano vira as costas e sai da enfermaria bufando de raiva. 

Fonte:
texto enviado pelo autor.
do livro de Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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