terça-feira, 28 de julho de 2020

Vitor Iorio (O Livro na TV)


A rua é a Dias Ferreira. A livraria é a Dom Casmurro, nome que lembra manhãs de leitura nos bancos do pátio do Colégio Pedro II. A novela, Laços de Família – nome que evoca o título de um livro de Clarice Lispector (certamente uma homenagem de Manoel Carlos). Aliás, o autor de novelas está sempre destacando a literatura em suas criações: diversas vezes confessou fazê-lo com a intenção de estimular o hábito da leitura entre o público cativo da ficção televisiva transmitida em horário nobre. Cenário recorrente de “Laços de Família- a novela”, a rua Dias Ferreira, outro dia, estava tomada pelos caminhões de externa da TV Globo. Embora acostumados com estas frequentes intervenções da ficção na realidade, os cariocas não disfarçavam a curiosidade: os carros passavam devagar pelo local, e os pedestres se agrupavam para testemunhar aquela realidade se transformar em fantasia para um país inteiro. Diante da fachada da Argumento travestida de Dom Casmurro, o bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, estava literalmente iluminado em plena tarde fria de inverno. Sem dúvida, são esses refletores que fazem o imaginário do povo brasileiro.

O dono da livraria é Miguel/Tony Ramos , personagem que herdou do pai a paixão por Machado de Assis. Seu fascínio pela literatura se impõe a cada contato com seus clientes e amigos, sempre a indicar os melhores títulos e a comentar os últimos lançamentos. Embora a escolha de uma livraria como cenário de novela possa sugerir uma estratégia para encobrir um simples merchandising de títulos e editoras que têm na figura de Miguel um convincente garoto-propaganda, a Dom Casmurro serve incontestavelmente para confirmar o compromisso do autor com a literatura: Manoel Carlos escala sempre o livro com titular em todos os seus elencos.

Há quem reclame que o livro na obra de Manoel Carlos seja um personagem virtual: ele povoa cenários, circula nas mãos de outros personagens, é o assunto incidental de diálogos despretensiosos, é trocado, esquecido, emprestado... mas raramente lido. Mesmo que um mero figurante sem chance de grandes “falas”, fruto talvez de uma estratégia mais comercial do que propriamente cultural, ao autor cabe o mérito de garantir-lhe a mais cobiçada vitrine: a novela das oito. E mais: de fazê-lo objeto de desejo de personagens que inspiram o imaginário de milhões de brasileiros. Se é sabido que as novelas lançam modas e estimulam o consumo...

Os iniciados não precisam de tanta luz para a leitura – não são os refletores da mídia que os colocam diante da companhia de um livro. Mas há sempre a esperança de, através da inconsistência fascinante da mídia, conquistar um telespectador incauto, ávido por exibir-se como um ser antenado com as últimas tendências. É “moda” frequentar cafés em livrarias? Circular com um livro debaixo do braço? Muitos hão de desfilar pela cidade carregando seu exemplar de modo a deixar bem à vista o título da obra. Para isso, no entanto, eles terão sido obrigados a descobrir que título convém exibir. Terão sido forçados a entrar numa livraria real. E, lá dentro, terão descoberto que, por força de sua vontade de estar na “moda”, puderam vencer o medo que tinham de parecer pouco inteligentes diante dos vendedores de livro. Desarmados e com baixa resistência, poderão vir a ser contaminados pelo vírus da leitura e deixar-se fascinar por contos, romances, poesias, histórias, sociologia, roteiro de telenovela.

Quem ama o livro não teme a possibilidade de a televisão vir a dessacralizá-lo e não se importa com os caminhos que levam alguém a buscar a companhia de um livro. Merchandising, sedução da imagem, efemeridade e superficialidade da moda, mais exibição de capa do que de leitura? Toda a iniciativa é válida: temos uma população fascinada pela telenovela e distante do livro. Por que não usar um para promover o outro? Popularizar o livro é possibilitar que novos brasileiros descortinem o mundo mágico da leitura. Manoel Carlos fixa na imagem da telenovela o livro como um ícone de um povo que se rende aos encantos de uma trama televisiva mas teme o livro que é fonte de inspiração para muitos desses romances da telinha.

O livro na obra do novelista fica no imaginário do povo como objeto de desejo, pretexto para encontros agradáveis, e até fonte de status. Como um entusiasta da literatura, Manoel Carlos evoca Clarice Lispector com o nome de sua novela, elege uma livraria como um de seus cenários preferidos, e rende homenagem a Machado de Assis, batizando-a de Dom Casmurro. E a referência a Machado de Assis ainda é reforçada pela presença na trama de uma polêmica Capitu. Exímio artífice da teledramaturgia e do poder de enredar o grande público em suas tramas, Manoel Carlos cria uma Dom Casmurro que é referência na vida dos personagens, dá-lhe um dono sensível e um café como ponto de encontro. Ao telespectador, deixa nas entrelinhas um recado: no meio de tanta fantasia, hipocrisia, desamor, quem lê se destaca no Leblon, na vida, na tela, no real e no virtual.
 - - - - - - - - - - - - -
Vitor Iorio é Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mestre em Comunicação e Cultura, Doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio.

 Fonte:
IORIO, Vitor . O Livro na TV. Leia Brasil, 2000. 

Nenhum comentário: