A pequenina igreja de Santa Engrácia estava quase despovoada de fiéis, que se iam retirando, um a um, molhando os dedos na água benta, quando o Onofre penetrou no templo, desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça, à maneira da terra, procurando falar a padre Lourenço, que se achava, no momento, arrumando a paramenta eclesiástica na pequena cômoda da sacristia. Ao ver o caboclo, afamado em toda a vila pela sua desenvoltura, o sacristão, o Zézinho, correu ao seu encontro, levando na mão, pingando cera, o apagador de velas com que abafava, naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.
- Que é que você quer, Onofre? - indagou o sacristão. - Quer falar com "seu" vigário?
- Chame ele! - respondeu o caboclo, soturno.
Cinco minutos depois, após as explicações preliminares, estava o desordeiro ajoelhado diante do confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a cair, em cachos revoltos, sobre a testa e sobre os olhos.
- Qual é o pecado de que se acusa, meu filho? - indagou o sacerdote, bondoso, procurando conduzir com jeito aquela ovelha bravia.
O caboclo baixou a cabeça, e confessou:
- Eu não matei, nem roubei ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um pecadinho de nada. É uma porcariazinha de pecado que nem presta p'ra dizê.
- Conte, filho; conte sempre! - animou o padre.
Onofre tomou fôlego, e principiou a narrar:
- O'ie, "seu" vigaro, foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa Funda, e jurei tomá um desforço, dando as tripa. dele pros urubu cumê. Ontem, de tardinha, me armei, e fui fazê o serviço. Ele tava na porta da casa com a muié e os fio dando cumê pros bicho meúdo. Eu me apiei e avancei pra ele disposto a matá; mas fiquei tão penalizado, "seu" vigaro, com a vista da famia, daquela fiarada que ia ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz, só meti a pontinha da faca no couro dele, um pedacinho de nada. O cabra deu um pulo pra riba, e lá ficou vivo, só com um arranhãozinho na costela, feito pra amedronta. "Seu" vigaro acha que isso é pecado?
Padre Lourenço tomou uma pitada, assoou-se, com estrondo, no lenço de Alcobaça, que lhe tirava todas as dúvidas, e obtemperou, convicto:
- É pecado, sim, meu filho; é pecado. tão grande como o de morte!
- Mas eu não matei, "seu" vigaro! protestou o caboclo.
- Não importa. Houve o pensamento, a ideia de matar. É o que vale, meu filho, é a intenção!
Onofre baixou a cabeça, humilde, e o padre continuou:
- Eu vou dar-lhe uma penitenciazinha. você não torne a cair noutra.
Assoou-se, de novo, e explicou:
- Você vai rezar quarenta e oito padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta salve-rainhas. Antes de sair, porém você vai pôr, ali, no cofre das almas. uma prata de dez tostões.
E levantando-se:
- Vá! O caboclo ergueu-se, pôs o chapéu debaixo do braço, exumou do bolso da calça uma prata de dez tostões que lá dormia, encaminhou-se para o cofre, que ficava perto da porta, e, jeitoso, começou a fricionar, com a moeda, a entrada da caixa, sem deixar, entretanto, que ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter de novo a prata na algibeira, quando padre Lourenço, que o observava, gritou-lhe, de longe:
- Psiu! Que é isso? Vai levando o dinheiro?
O caboclo voltou-se, da porta, e protestou, com um risinho canalha:
- Uê! A "tenção" não vale?
E ganhou a rua.
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.
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