quinta-feira, 16 de julho de 2020

Rafael Figueiredo (A Inveja do Poeta)


E hoje não há mendigo que eu não inveje por não ser eu.”
Álvaro de Campos – Poema Tabacaria


Desde que li os textos do Mestre Zen, nunca mais olhei da mesma forma para as cadeiras. Sempre que vejo uma penso, e meu pensamento é como uma ave de metal, fazendo estardalhaços, em uma frenética e débil tentativa de alçar voos noturnos. Barulhenta e desajeitada, com o antagonismo próprio de sua condição física, munida de asas e desprovida da leveza natural das aves, minha ave-pensar, pesa! As cadeiras não são de fato cadeiras, elas estão. Sua matéria prima foi retirada de uma árvore e seu estado atual é mera formalidade de utensílio, um dia deixará de estar, e estará outra coisa, e depois outra e outra. Tudo é transitório, nada é permanente. Sento-me a escrever pequenas futilidades no papel. É a cadeira mais útil do que eu.

Carrego minha ave-pensar por todo lado, tento inútil, dissimular seu voo desengonçado, mas sempre acabo por expor-lhe as penas, certa vez tive a certeza de ouvir a moça do caixa de um posto de gasolina dizer ao cliente: o banheiro é imaginário senhor. Aquilo fez-me rir por dias. Quando voltei ao posto na semana seguinte e perguntei a moça sobre o assunto e descobri que o banheiro estava interditado. Antes não tivesse voltado, a fantasia é muito mais interessante do que a realidade, e é certo que muitas vezes pode-se viver nela, como fazem os loucos. Mas eu não. Eu, transito entre os dois lados do rio e como de um sonho, desperto inúmeras vezes durante o mesmo dia. Pelo que vejo todos temos aves-pensar, e é certo que alguns tem galinhas, codornas, avestruzes, outros falcões ou corujas. Mas eu tive a desdita sorte de nascer com essa anormalidade que não respeita sequer as leis da física. Por este motivo as vezes sinto um enorme cansaço devido ao vai e vem de minhas ideias, confuso e vago ando entre meus pares. E reconheço em suas faces a origem de suas aves-pensar. É como um retrato, está ali estampado. Aquele tem cara de pensar coruja, aquele outro de pato.

A questão é que alguns dias atrás vi um homem com cara de pensar beija flor. Isso me emocionou, o beija flor é uma espécie muito singular, raramente se vê por ai. Um pensamento desses, quem me dera. Sua sorte está em parar, observar e decidir tudo em um espaço muito curto de tempo e logo seguir seu destino. Outra coisa muito incomum é que nunca se vê um cadáver de beija flor, eles devem ser imortais, imagino, ou apenas se esquecem de morrer. Como vivem correndo por aí esse seria um esquecimento bastante compreensível.

Esse homem, tinha o rosto iluminado e a paz de um pastor de ovelhas, é verdade que nunca conheci um, mas acredito que devem ter aquela mesma expressão, um sorriso esquecido no canto da boca, e os olhos profundos e calmos como uma tarde de outono. Nada é permanente, tudo é transitório diz o Mestre Zen. Mas o homem com alma de beija-flor permanece, e ao contrario de sua ave-pensar anda lento entre os outros que comumente desviam dele. Talvez seja pela grandeza de seu espirito, ou a luz que emana naturalmente de seu rosto. Outra coisa interessante é que sempre lhe dão dinheiro, mesmo que ele nunca peça. Que sorte tem o homem beija flor, tão tranquilo, tão vivido e ainda por cima dão-lhe dinheiro assim a toa. Que inveja sinto dele por não ser eu. Mas, contento-me com este corvo de lata batendo as asas dentro do meu peito diariamente. Ao menos posso observar o homem e vê-lo como é. Ao contrário desses ambulantes que lhe desviam o olhar dia após dia. Eles não, mas o homem-beija-flor sabe que não passamos de aspectos de uma mesma coisa, uma consequência de infinitas possibilidades combinadas nessa grande teia de acontecimentos que chamamos de vida. E por isso volto sempre ao mesmo lugar, e observo seu pensamento voando para lá e para cá, entre as ideias que desabrocham nesta época do ano.
****************************************

Rafael Figueiredo nasceu em 1985 e hoje reside na cidade de Sapiranga. Educador social. No colégio fez aulas de teatro e música, aos 14 anos escreveu suas primeiras peças para o grupo escolar de teatro. Estudou violão e piano em conservatório particular e mais tarde ingressou na universidade de música. Seu repertório autoral conta com mais de duzentas músicas compostas e arranjadas por ele, e contemplam vertentes da música brasileira como as modas de viola, a trova, a música popular, além de temas para peças de teatro.

Fonte:
Escrita Criativa

Nenhum comentário: