quarta-feira, 1 de julho de 2020

Malba Tahan (A Ciência da Vida)


Naquele ano um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranquilidade da pequena vila de Anadir. Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do cheique Omar Iruã, depois de longa ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdad.

E o inteligente Namedin não perdera tempo na capital; segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.

O rico cheique Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:

— Meu filho, senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias com os “ulemás” do Egito e da Palestina!

Ulemá — como todos sabem — é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidadãos com o honroso título de “ulemá”. E em Anadir, afinal desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Corão; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais doutos.

Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o xeique Omar Iruã chamou o jovem bacharel e disse-lhe:

— A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos nossos conterrâneos.

— Que devo fazer, meu pai? — perguntou ele.

— Nada mais simples — explicou o velho. — Hoje, à noite, depois da prece, haverá uma reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e também o nosso venerável mufti Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cadis e secretários. Farás, nessa ocasião, um eloquente discurso no qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira Ciência da Vida. Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.

— Assim farei, meu pai — volveu com segurança o moço. — Asseguro-te que o povo ficará deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.

E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muçulmana: cheiques com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores etc.

O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar examinou o público que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (2), imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.

Ditas as palavras do ritual: “Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso”, o nosso herói iniciou um vibrante discurso de apresentação. Discorreu, a princípio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloquência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendências sociais.

— Por Allah! Que talento! — murmuravam os ouvintes.

— E, amigos — continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente — o mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber por quê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro inculto, arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.

Essas palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram aos muçulmanos um escândalo nunca visto.

O mufti ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez, apenas, um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou:

— Logo, ao sair, veremos.

E quando Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito agarrado por três capangas e espancado impiedosamente. A sova foi tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.

Muitos dias depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara agressão.

Disse-lhe, então, o velho cheique: — O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdad e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se findo esse novo prazo terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a verdadeira Ciência da Vida.
* * *

Namedin, obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdad e durante vários meses frequentou os cursos da Universidade. Quando regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.

Houve, como da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso. Ao tomar lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura imponente do mufti que, rodeado de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.

Namedin, em longos e eloquentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que ele qualificou de “próspera e progressista”. Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancião venerável, “modelo de virtudes”, “cheique dos cheiques”, “amparo da justiça”, “inspirado de Allah” e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.

E, com um brilho incomparável, Namedin assim falava:

— E devo dizer ainda, ó irmão dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã? Determina o Corão, o Livro de Deus: “Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relíquias”. Cumpre-nos, pois, como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis barbas.

E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancião.

O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e abraçou risonho o nosso herói.

O exemplo de Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos. Os fiéis faziam empenho em obter uma relíquia do “santo”.

Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos, conseguiu o mufti fugir dos exaltados muçulmanos. E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.

E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:

— Agora sim, meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.
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Notas:
(1) Hamã - Casa de banhos.
(2) Mufti — Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.


Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

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