A primeira vez que provei bebida alcoólica foi aos 11 anos. Estávamos acantonados nos galpões vazios da antiga Feira de Amostras, ali onde é hoje o Aeroporto Santos Dumont. Havia latas de doce vazias, invólucros sem conteúdo, rótulos sem produto — restos da última exposição: nada que satisfizesse a nossa gula. Em companhia de outro pivete (que acabaria regenerado tornando-se hoje um competente cirurgião), arrombei a janela de um galpão que supúnhamos cheio de comedorias, para acabarmos apanhados em pleno malfeito pelo vigia do lugar. (O que nos valeu um esculacho pouco digno da nossa condição de escoteiros.) Até que alguém mais esperto descobriu num desvão da antiga feira um depósito de garrafas cheias.
Cheias de que? Só vim a saber quando vi os mais velhos fazendo correr uma garrafa de mão em mão, e bebendo pequenos goles furtivos entre risinhos de malícia. Fui buscar meu caneco de folha e pedi que me dessem um pouco. Tanto insisti que acabaram se enchendo, e encheram o caneco para se verem livres de mim. Eu imaginava que aquilo tivesse o gosto delicioso de alguma soda limonada, groselha ou guaraná. E virei tudo de uma vez só.
Era cachaça pura.
Só não morri ali mesmo porque quis Deus me experimentar ao longo da vida, propiciando-me generosamente outras espécies de bebida. Mas passei a noite delirando, depois de haver vomitado a própria alma até o rabo. Hoje sinto náuseas ao mais leve cheiro de cachaça.
Enquanto escrevo, entre um gole e outro de uísque, penso se serei capaz de me revestir da seriedade que o assunto exige. A sabedoria, que faz de beber uma arte, talvez repouse nos mesmos princípios de proporção, equilíbrio e harmonia que regem as outras artes. E que estabelecem o primado da qualidade sobre a quantidade. Beba bem e viva melhor — seria o slogan que eu proporia a uma campanha publicitária de apologia da bebida.
A essa altura já ouço o leitor abstêmio comentar, indignado: — Apologia da bebida. Esse cretino ousa sugerir publicidade para um dos mais terríveis males que afligem a humanidade.
Ouso sugerir que a humanidade é afligida não pelo álcool, mas pelo alcoolismo. A arte de bem beber se contrapõe justamente ao vício de beber mal. O álcool em si não é bom nem mau, e existe desde que o homem é homem. Todas as civilizações conhecidas produziram alguma espécie de bebida alcoólica. O mal não está no que entra no homem, mas no que dele sai, como afirmou Cristo. Ele próprio não consagrou a água, o leite ou a Coca-Cola: consagrou o pão e o vinho, como alimentos do corpo e do espírito.
É preciso respeitar a bebida — não saber beber é que constitui um dos mais terríveis males que afligem a humanidade. Esta é uma lição que eu gostaria de saber de cor antes de beber e não na manhã seguinte, como geralmente me acontece.
Um cientista sueco, por sinal que Prêmio Nobel, descobriu recentemente uma substância capaz de neutralizar a toxidez do álcool, impedindo sua metabolização no organismo, sem impedir seus agradáveis efeitos no cérebro. Esta descoberta terá, em relação à bebida, o mesmo impacto que a pílula teve em relação ao sexo: agora é que eu quero ver o que será da humanidade, bebendo sem parar, e se sentindo fisicamente cada vez melhor.
Aos 15 anos tomei o primeiro grande pileque de minha vida. De gim, que até hoje me sabe a loucura e tem o gosto de consequências fatais. Na manhã seguinte fui curar minha ressaca enfrentando a ressaca ainda mais poderosa do mar no Posto Dois. Se não morri de beber na véspera, poderia ter morrido afogado. Mas eu era jovem, e como todo jovem, imortal.
Até que chegou o momento, com alguns chopes de permeio, de finalmente me iniciar no uísque, a que permaneci fiel. Era um baile no Automóvel Clube, em Belo Horizonte, e o uísque da moda era Old Parr. Tomado com guaraná! Entrei no uísque como se fosse refrigerante, e entrei bem. Meu irmão me encontrou em coma alcoólica debaixo do chuveiro aberto, ainda vestido no elegante dinner-jacket da minha primeira festa a rigor — rigorosamente ensopado e vomitado.
Com tantos fracassos sucessivos, não sei como não caí na mais intransigente das abstinências. É que em pouco surgia a hora da verdade, no grupo de quatro amigos já composto para a vida inteira. Encharcados de chope e literatura, enchíamos de desvario a silenciosa noite de Minas, convertendo a bebida em indispensável combustível de nossa rebeldia. Rebeldia contra que? Contra tudo. Tínhamos de beber para justificar a embriaguez da mocidade em que vivíamos.
Deixemos que falem os entendidos — no caso, os mestres Luís Lobo e Leopoldo Adour da Câmara. Assim se expressam eles no seu admirável receituário “A Arte do Rabo de Galo”, um “breve discurso em torno de copos e garrafas”: “Não há motivo para criticar a bebida em razão dos que se embriagam. Como ninguém critica a comida simplesmente porque há gente capaz de comer até morrer de indigestão.”
Falou. Ou melhor, falaram — e está falado: como a comida, assim a bebida, em quantidade razoável, é perfeitamente inofensiva, tendo o efeito de estimular o apetite, ajudar a digestão, relaxar os nervos e tornar a vida mais agradável.
Mas, aqui entre nós, onde ficam os limites do razoável?
Não será, certamente, na primeira dose. Esta apenas prepara o caminho para a segunda. E a segunda dose... Já dizia o prefeito de Rochester a Henrique Savile (dois indivíduos de quem eu nunca ouvira falar, mas competentes, desde que citados pelos autores acima mencionados): “Oh, aquela segunda dose; é o mais sincero, o mais sábio, o mais imparcial amigo nosso; diz a verdade sobre nós mesmos e força-nos a dizer a verdade sobre os outros. Barra a lisonja das nossas bocas e a desconfiança dos nossos corações; coloca-nos acima da política dos preconceitos de cortesia, os quais nos fazem mentir de dia com receio de sermos traídos à noite.”
E a terceira dose?
A partir da terceira dose, reconheço, as coisas se complicam um pouco. Se a humanidade está atrasada de três uísques, como dizia Humphrey Bogart, ao recuperar o atraso a gente se vê de súbito, copo vazio na mão, ante o dilema de tomar mais um ou se dar por satisfeito com a recuperação. E é aí que intervém a já referida sabedoria da dupla Lobo e da Câmara, afirmando: “Um bom conselho em relação à quantidade é parar de beber quando sentir que dá para beber mais um, porque dois será demais. Este um provavelmente também o será.”
Por isso é que um velho amigo meu, conhecido pelo hábito de sempre tomar mais um, afirmava outro dia num bar que, de sua parte, jamais passava de três uísques. Ante o protesto geral, insistiu, com a mais cínica das convicções: “Eu só tomo três; depois do terceiro me transformo noutro sujeito, e este sim, bebe como gente grande.”
Fiquemos, pois, no terceiro. Ainda que a contagem varie de bebedor para bebedor, podendo começar a partir do terceiro, ou mesmo ser regressiva, como no lançamento de foguetes.
Por falar em foguetes: e a ressaca? Entendidos de lado, falo de experiência própria: não há cura mais eficiente do que evitá-la. Como se sabe, (ou não se sabe?) — a ressaca começa pelo cigarro fumado. Mesmo pelos que não fumam: quatro horas de permanência num ambiente fechado e cheio de fumaça pode corresponder até a vinte cigarros fumados. Há outras causas, é óbvio — a partir da bebida de má qualidade. É incrível como tantos que se dizem bons bebedores são capazes de aceitar como bebida legítima as mais grosseiras falsificações. No entanto, um mínimo de atenção e cuidado ao beber seria o suficiente para denunciá-las. O bom uísque, por exemplo, não morde a gente: cai bem, sem causar estranheza, sem chamar atenção sobre a língua, redondo dentro da boca, sem arestas, sem azinhavre nas bordas, sem largar ferrugem ao longo da garganta, sem deixar gosto de lápis no esôfago, sem levantar poeira no estômago. O bom uísque, enfim, é aquele sobre o qual não resta a menor dúvida.
Falou.
Falei — e não disse. Ao fim de minhas digressões, vejo que não cheguei a sair do princípio, ou seja, sinto que mal cheguei a entrar no assunto. Agora é tarde: só me resta tomar mais um e dar por atingido o meu propósito (ou despropósito, se preferirem) de enaltecer a bebida como fator de bom entendimento entre os homens. Ou, pelo menos, do homem consigo mesmo.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
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