Tanto reclamaram, que acabei telefonando ao Arnaldo: que diabo de retrato é esse que vocês foram me arranjar? Ele achou graça, disse que não tinha encontrado coisa mais recente, mas que eu ficasse descansado: ia dar nova busca no arquivo, tratar de substituí-lo. E sugeriu que eu tirasse outro, acrescentando — o meu bom Arnaldo! — num assomo de otimismo: um retrato novo, porreta!
Porreta que fosse — desde que me deixo seduzir por este belo adjetivo com ar de palavrão: retrato novo é mesmo este aqui, que acompanha regularmente a minha crônica na revista.
Olho-o pela primeira vez com atenção, num número atrasado. Para falar com franqueza, podia ser até do Marechal Dutra, eu pouco estaria me incomodando: a cara não tem nada a ver com o que se escreve, quem vê cara não vê coração. Mas a verdade é que a reclamação dos conhecidos tem cabimento, a minha não é mais esta.
Vejo um jovem de nariz fino e olhar assustado, com ar de quem vai se erguer de um momento para outro e começar a viver. O meu nariz continua fino e cada vez mais torto, talvez de tanto se meter onde não é chamado. Mas a vida já não assusta os olhos de quem dela recebeu mais do que esperava.
É fotografia tirada há bem uns vinte anos, daí para mais. Em vinte anos muita água correu debaixo da ponte. Mudei de casa, de hábitos, de profissão e de mulher. Continuei escrevendo, mas não escrevi o que devia. Ganhei e perdi tempo, amigos e ilusões. (Mais um pouco e sairia para uma letra de samba.) No entanto, tudo bem pensado e medido, nada me aconteceu.
A esta altura paro, e o leitor comigo, para me perguntar: a que vem esta conversa? Estamos habituados, um escrevendo e outro lendo, a casos pitorescos ou triviais, colhidos na vida cotidiana. Onde está o caso de hoje, a propósito ou não de velhas fotografias?
Pois aqui vai ele:
Era um fotógrafo de rua, desses que fingem fotografar e, depois de aceito e pago o talão, saem correndo para bater a chapa. Estávamos na Avenida Rio Branco, era de tarde, meu amigo e eu resolvemos documentar o acontecimento de sermos amigos e estarmos juntos numa tarde qualquer, na Avenida Rio Branco. Dois anos depois, não digo que o mesmo fotógrafo, mas na mesma Avenida Rio Branco, e em companhia do mesmo amigo, sou de novo fotografado. Não haveria nada de especial no fato de termos aceitado esta nova fotografia de rua, se não me ocorresse um dia compará-la com a anterior. Éramos praticamente os mesmos dois amigos — dois anos não haviam feito em nós grande estrago. Mas, para meu assombro, um sujeitinho baixo, magro e de bigode, que numa das fotos nos seguia na rua a poucos passos, era também o mesmo que na outra caminhava atrás de nós.
A coincidência era impressionante. Mas o que me perturbou mesmo foi a suspeita de estar sendo seguido pelo tal sujeito, já que ele não poderia ter ficado andando à toa pela Avenida Rio Branco durante dois anos. Neste caso, teria de aceitar a sugestão do Borjalo, a quem contei o caso, de tratar-se de um tira de polícia ou outra espécie qualquer de malfeitor; um anjo-da-guarda de bigode era coisa que eu não podia admitir.
A mesma sensação me vem agora, ao olhar este retrato que encima a minha crônica, por exigências de moderna paginação. Estou sendo seguido. Este jovem me persegue. Já foi flagrado mais de uma vez, caminhando atrás de mim. Não sou eu, mas eu fui assim. E cheguei quase a ficar assim! Nem graças ao elixir de inhame eu hoje seria assim. O Arnaldo prometeu arranjar outra mais recente no arquivo. Como escrevo com uma semana de antecedência, não sei se já fui atendido. Espero que tenha encontrado uma bem porreta.
Mas espero também que ao morrer, queira Deus que velho, bem velho — se o tal sujeito que me segue não tiver antes dado cabo de mim — possa dizer, olhando o retrato deste jovem num recorte antigo, entre meus guardados: nada me aconteceu; em tudo que ele acreditava eu continuo acreditando.
E senti-lo morrer comigo, só então senti-lo morrer dentro de mim.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
Nenhum comentário:
Postar um comentário