segunda-feira, 6 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Diálogos Impossíveis)


TODA NOITE, A MESMA HORA, o telefone toca. Miresola corre a atender sabendo, de antemão, o que acontecerá assim que tirar o auscultador do gancho:

- Alô...?... Alô...?... Alô...?

-...

- Alô...?

-...

Do outro lado da linha ninguém dá sinais de vida:

- Alô...?

Miresola ouve a respiração descompassada, os dedos tamborilando no aparelho, mas voz, que é bom...

- Ora, vamos. Quem é você?  Diga seu nome.  Sua idade? O que quer? Por que me liga todas as noites nesse mesmo horário?

-...

- Fale. Se abra. Acaso se esconde de alguém?

-...

- Tem medo do quê?

-...

- Olha, não vou lhe machucar, nem morder. Ainda que pudesse chegar até a sua beira, viajando pelos fios...

-...

- Converse comigo... fale de você. Sonhos? O que gosta de fazer? Ler, ouvir música, sair, ir ao cinema? Frequenta barzinhos? Mora aqui perto de mim? Quem sabe no mesmo prédio? Acertei? Tem amigos? Pratica algum tipo de esporte? Acaso você é aquela moça que outro dia ajudei com as compras no elevador de serviço?

-...

Sem mais nem menos, um clique interrompe a ligação.

***

Tem sido assim meses e meses a fio. Miresola não sabe mais o que fazer. Percebe que de certa forma se tornou refém daquela situação que não se explica. Se sente como um idiota. Toda noite conversa com alguém, ou melhor, não conversa. Só ele fala, para um personagem desconhecido.

Sabe que é uma mulher. Jovem. A respiração calma, comedida. A maneira como tamborila os dedos. Tem absoluta certeza de que a pessoa que está do outro lado é a moça que ajudou semanas atrás no elevador.  Só não consegue ligar os pontos em relação ao inexplicável dessa criatura não responder.

Ele, inconsequente, fora de si, ama essa garota. Ama, de loucura, esse ser vivo, sem rosto, sem olhos, sem sorriso. Um personagem que ele não sabe afirmar categoricamente quem é.

Se ela ligar de novo...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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