segunda-feira, 6 de julho de 2020

Sílvio Romero (A Fonte das Três Comadres)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado todos os recursos da medicina, deixou de usar de remédios, e já estava desenganado de que nunca mais chegaria a recobrar a vista. Mas uma vez foi uma velhinha ao palácio pedir uma esmola, e, sabendo que o rei estava cego, pediu para falar com ele para lhe ensinar um remédio. O rei mandou-a entrar, e então ela disse: "Saberá vossa real majestade, que só existe uma coisa no mundo que lhe possa fazer voltar a vista, e vem a ser: banhar os olhos com água tirada da fonte das três comadres. Mas é muito difícil ir-se a essa fonte, que fica no reino mais longe que há daqui. Quem for buscar a água, deve-se entender com uma velha que existe perto da fonte, e ela é quem deve indicar se o dragão está acordado ou dormindo. O dragão é um monstro que guarda a fonte, que fica atrás de umas montanhas". O rei deu uma quantia à velha e a despediu.

Mandou preparar uma esquadra pronta de tudo e enviou o seu filho mais velho para ir buscar a água, dando-lhe um ano para estar de volta, não devendo ele saltar em parte alguma para não se distrair.

O moço partiu. Depois de andar muito, foi aportar em um reino muito rico, saltou para terra e namorou-se lá das festas e das moças. Despendeu tudo quanto levava, contraiu dívidas, e, passado o ano, não voltou para a casa de seu pai.

O rei ficou muito maçado (nota do blog: aborrecido) e mandou preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio para buscar a água da fonte das três comadres. O moço partiu, e, depois de muito andar, foi ter justamente ao reino em que estava já arrasado seu irmão mais velho. Meteu-se lá também no pagode e nas festas, pôs fora tudo que levava, e, no fim de um ano, também não voltou.

O rei ficou muito desgostoso. Então seu filho mais moço, que ainda era menino, se lhe apresentou e disse:

"Agora quero eu ir, meu pai, e lhe garanto que hei de trazer a água!"

O rei mangou com ele dizendo:

"Se teus irmãos, que eram homens, nada conseguiram, o que farás tu?"
Mas o principezinho insistiu, e a rainha aconselhou ao rei para mandá-lo dizendo:

"Muitas vezes donde não se espera, daí é que vem".

O rei anuiu, e mandou preparar uma esquadra e enviou o príncipe pequeno. Depois de muito navegar, o mocinho foi dar à terra onde estavam presos por dívidas os seus irmãos; pagou as dívidas deles, que foram soltos.

Quiseram dissuadi-lo de continuar a viagem e o convidaram para ali ficar com eles; mas o menino não quis e continuou a sua missão.

Depois de ainda muito navegar, o príncipe chegou ao lugar indicado pela velha. Desembarcou sozinho, levando uma garrafa, e foi ter à casa da velha, vizinha da fonte, a qual, quando o viu, ficou muito admirada, dizendo:

"Ó meu netinho, o que veio cá fazer?! Isto é um perigo; você talvez não escape. O monstro que guarda a fonte, que fica ali entre aquelas montanhas, é uma princesa encantada que tudo devora. Procure uma ocasião em que ela esteja dormindo para poder chegar, e repare bem que quando a fera está com os olhos abertos é que está dormindo, e quando está com eles fechados é que está acordada".

O príncipe tomou as sua precauções e partiu. Chegando lá na fonte avistou a fera com os olhos abertos. Estava dormindo. O mocinho se aproximou e começou a encher sua garrafa. Quando já se ia retirando, a fera acordou e lançou-se sobre ele.

"Quem te mandou vir a meus reinos, mortal atrevido?" dizia o monstro; e o moço ia-se defendendo com sua espada até que feriu a fera, e com o sangue ela se desencantou; e então disse:

"Eu devo me casar com aquele que me desencantou. Dou-te um ano para vires me buscar para casa, senão eu te irei ver."

A fera era uma princesa, a coisa mais linda que havia. Em sinal para ser o príncipe conhecido quando viesse, a princesa lhe deu uma de suas camisas.

O príncipe partiu de volta para terra de seus pais. Quando chegou ao reino onde estavam seus irmãos, os levou para bordo para voltarem para seu país. Os outros príncipes seguiram com ele. O menino tinha guardado a sua garrafa no seu baú, e os irmãos queriam roubá-la para lhe fazer mal e se apresentarem ao pai como tendo sido eles que tinham alcançado a água da fonte das três comadres.

Para isto propuseram ao pequeno dar-se um banquete a bordo da esquadra a toda a oficialidade, em comemoração a ter ele conseguido arranjar o remédio para o rei. O pequeno consentiu, e no banquete os seus irmãos, de propósito, propuseram muitas saúdes, com o fim de o embriagarem e poderem roubar-lhe a garrafa do baú. O pequeno de fato bebeu demais e ficou ébrio, os manos então tiraram-lhe a chave do baú, que ele trazia consigo, abriram-no e tiraram a garrafa d’água, e botaram outra no lugar, cheia de água do mar.

Quando a esquadra se apresentou na terra do rei, todos ficaram muito satisfeitos, sendo o príncipe menino recebido com muitas festas. Mas quando foi botar a água nos olhos do rei, este desesperou com o ardor, e então os seus dois outros filhos, dizendo que o pequeno era um impostor, e que eles é que tinham trazido a verdadeira água, deitaram dela nos olhos do pai, o qual sentiu logo o mundo se clarear e ficou vendo, como dantes.

Houve grandes festas no palácio e o príncipe mais moço foi condenado à morte. Mas os matadores tiveram pena de o matar e deixaram-no numas brenhas, cortando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei.

O menino foi dar à casa de um roceiro, que o tomou como seu escravo, e muito o maltratava. Passado um ano, chegou o tempo em que ele tinha de voltar para se ir casar, segundo tinha prometido à princesa da fonte das três comadres, e, não aparecendo ela mandou aparelhar uma esquadra muito forte, e partiu para o reino do moço príncipe, que há um ano tinha ido a seus reinos buscar um remédio, e que lhe tinha prometido casamento, isto sob pena de mandar fogo sobre a cidade.

O rei ficou muito agoniado, e o mais velho de seus filhos se apresentou a bordo, dizendo que era ele. Chegando a bordo a princesa lhe disse: "Homem atrevido, que é do sinal de nosso reconhecimento?" ele, que nada tinha, nada respondeu e voltou para terra muito chateado.

Nova intimação para terra, e então foi o segundo filho do rei, mas o mesmo lhe aconteceu. A princesa mandou acender os morrões, e mandou nova intimação à terra. O rei ficou aflitíssimo, supondo que tudo se ia acabar, porque seu último filho tinha sido morto por sua ordem.

Aí os dois encarregados de o matar declararam que o tinha deixado com vida, cortando-lhe apenas um dedo. Então, mais que depressa, se mandaram comissários por toda a parte procurando o príncipe, dando os sinais dele, e prometendo um prêmio a quem o trouxesse. O roceiro, que o tinha em casa, ficou mais morto do que vivo, quando soube que ele era filho do rei. Botou-o logo nas costas e o levou ao palácio chorando.

O príncipe foi logo lavado e preparado com sua roupa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava um pouco apertada e curta. O prazo que a princesa tinha concedido já estava a expirar, e já se iam acendendo os morrões para bombardear a cidade, quando o príncipe fez sinal de que já ia.

Chegando à esquadra, foi logo reconhecido pela princesa, que lhe exigiu o sinal do reconhecimento e ele lhe apresentou. Então seguiu com ela, com quem se casou e foi governar um dos mais ricos reinos do mundo.

Descoberta assim a tramoia dos dois filhos mais velhos do rei, foram eles amarrados às caudas de cavalos bravos, e morreram despedaçados.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

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