quinta-feira, 30 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Cinco


DE QUANDO O TIRO SAI PELA CULATRA

“Minha casa era modesta, mas eu estava seguro, não tinha medo de nada“.
De “O Divã” de Roberto Carlos e Erasmo Carlos.


NO LUGAR ONDE EU MORO, ou seja, na casa de meus pais, a coisa anda pra lá de feia. Além do pai e da mãe, doze outras bocas famintas ajudam a aumentar as despesas, contando, é claro, as quatro do fogão. Embora essas não sejam humanas, consomem o gás da botija para manter as panelas com os fundos de suas bundas quentinhas. Ao todo, somos seis homens e quatro mulheres de tirar o sossego do Papa, computadas, igualmente, sem as do vídeo que não funciona. Os números de pés chegam a vinte e sete, incluindo os três da geladeira e quatro do fogão. Felizmente esses não utilizam sapatos.

Cabe aqui uma explicação. O refrigerador ficou capenga em decorrência da mudança. Os carregadores (mais desastrados que apressados, ou as duas coisas juntas) fizeram a gentileza de quebrar um deles, na descida do caminhão. Para que as pessoas se situem, nos escondemos do tempo numa chácara de cinco mil metros quadrados, ao redor da cidade. A construção é bastante antiga e espaçosa, além de engraçada, extremamente engraçada. Existe, nela, uma escada interna em formato de caracol ligando o andar térreo ao superior. Nesse piso, vários quartos se alinham juntamente com dois banheiros extras. De manhã, mesmo com esses dois banheiros extras, é um verdadeiro inferno, com toda a galera querendo, ao mesmo tempo, fazer uso das privadas.

Se alguém não consegue segurar as necessidades mais prementes urge correr nos fundos do quintal (tem uma parte que é só mato), para não sujar as calças com os excrementos. É uma opção não muito acertada, todavia, melhor que ruminar um bolo malcheiroso querendo explodir para fora de qualquer forma. Não dormimos em beliches, mas em colchonetes espalhados pelo assoalho. Meus velhos são os únicos que utilizam uma cama de ferro acomodada em lajotas, presente do Tio Firmino, que morreu ano passado, do coração. Na entrada dos lavabos, meu irmão Luiz afixou uma espécie de prateleira presa a braçadeiras de ferro, onde são guardadas as escovas de dente, da dentadura de vovô e de cabelos, somadas aos tubos de pastas e outras quinquilharias de uso estritamente indispensável ao embelezamento matinal.

Temos o Pavio, sujeito bom que ajuda meus pais nos afazeres diários. Não me recordo, se o incluí na contagem das cabeças, bocas e pés, mas que diferença isso faz agora?  Pavio é considerado membro da família. Uma espécie de criado, na realidade. O coitado só não fala.  Ficou mudo depois que perdeu a língua num assalto. Os bandidos que o renderam, além de levarem todos os pertences, um fusquinha 68, alguns trocadinhos e os tênis, acharam por bem lhe faturar também o órgão da fofoca, perdão, do paladar. Quem botou esse apelido de Pavio, no Pavio, foi á mamãe, que o tirou de Pinóquio, de Collodi, seu livro de cabeceira. 

Meu irmão mais novo, o Zazinho, engajou no exército. É quase tenente. Quando está de folga (permanece muito tempo no quartel), a gente costuma lhe apresentar a vassoura de piaçava para varrer o quintal. O cara fica muito irado, porque a vassoura não tem cabo e ele, para dar conta do recado, precisa se curvar sobre a própria barriga. Papai colocou na sala um sofazinho sem braços. À noite, para assistirmos a televisão de onze polegadas, desligamos o lampião de gás sobre a estante. Temos luz elétrica lá para dentro, quero dizer, lá para cima, porém, o Beto – meu outro irmão (que estudou eletricidade), ainda não achou tempo de puxar a fiação e botar os bicos de luz nos cômodos faltosos.

No imenso quintal, plantamos de tudo. Da alface, para a salada, ao arroz com feijão. Mamãe ganhou um louro que detesta dar o pé. E o mais engraçado. Não gosta que lhe catem os piolhos. Não repete nada do que falamos, vive de olho num gato sem rabo que a Mariana, a consanguínea do meio faturou quando completou quinze anos. Aliás, essa aí é a menina dos olhos de papai. Ele ficou cego de uma vista, por causa da diabete e Mariana é quem o leva todo mês, a tira colo, na caixa para receber a aposentadoria e sair pagando depois, as contas. A nossa rua não é propriamente o que poderíamos chamar de avenida. Está mais para um beco apertado. Não tem saída. Ela termina num encosto de morro que não leva a lugar nenhum. Tio Chico (irmão de papai), a apelidou de ‘via curta’. Não dá mão. Nem pé. Quando o bauzão do mercado entra para vir fazer a entrega das compras, ou um carro de passeio estaciona em outros portões, os motoristas se vêm com os nervos em frangalhos. Chegam a arrancar os cabelos, mesmo aqueles que foram benfazejados pela calvície prematura. Os que não são carecas, falam mal, esbravejam e xingam o prefeito.

O melhor dia, aqui em casa é realmente o domingo. A família, em peso, se reúne em derredor da velha mesa de cozinha para o almoço. Alguém põe sempre para assar uma carne de traseiro. Arrastamos o móvel da vitrola até a varanda e a coisa só não fica cem por cento animada quando o braço do toca-disco resolve não pousar a agulha de cristal nos velhos setenta e oito rotações. Temos consciência que papai está no fundo do poço (a doença que o definha, aos poucos, lembrando, a cegueira, o deixa desanimado, na maioria das vezes), contudo, o mais importante, está direto ao nosso lado, dando o devido apoio e procurando manter a moral erguida e a família unida, igual arroz grudento tipo “unidos venceremos”.

Vamos falar, agora, do poço.  O nosso é desses artesianos, quase cinquenta e dois metros de fundura. Papai, de quinze em quinze dias costuma mandar o Pavio ir lá no fundo para averiguar não sei exatamente o quê. Acho que deve ser para se certificar como está a água, que jorra em abundância e enche não só a nossa caixa como a de mais uma meia dúzia de vizinhos. Temos mania de dizer que Pavio vai e volta do fundo do poço, com uma velocidade incrível, e quando sai do buraco, vem içado num grande balde, preso a fortes correntes do tempo em que vovó e vovô, andavam de bicicleta de uma roda só. 

Papai, de quando em vez, tem umas recaídas brabas. Nessas ocasiões, se tranca, no quarto, para chorar escondido, no colo de mamãe. Meio que apavorada, ela se transforma numa espécie de santa: nessas ocasiões, não fala com ninguém, não atende nenhum de nós e só tem olhos para o esposo (afinal, são quase quarenta e cinco anos de convivência).  Toda vez que isso acontece, ou seja, quando papai se enfurna no colo de mamãe, ficamos apreensivos, pensando que talvez papai, desiludido com a vida, acabe por decidir findar com a existência.

Desde o ano passado, papai encasquetou que está dando muito trabalho, e, em vista disso, por se considerar um trambolho, pularia da ponte. Até então ninguém levou fé. Até sábado retrasado, pelo menos. Meu pai esperou Mariana ir para o trabalho. Sem que ninguém desse pela coisa locou um táxi na pracinha e quando chegou na parte mais alta, no chamado vão central da morte, fingindo um ligeiro mal estar, pediu para que o motorista parasse. Precisava vomitar, teria dito ao motorista. O motorista, coitado, vendo a agonia do cidadão, encostou. Papai saltou e lentamente se achegou da amurada. Olhou para o vazio do mar imenso. Fez pior, subiu na amurada. O motorista do táxi, um sujeito baixo e corpulento, de mãos e pés pequenos, rosto com papada, cabeça arredondada, como uma batata sob um solidéu, apreensivo, imediatamente fechou os olhos. Às apalpadelas, se segurando no carro, tremendo pior que caniço em ventania, chegou o mais rápido que pode, tentando evitar que seu passageiro fizesse a besteira.

Sem contar que o maluco que ameaçava pular, meu querido pai, nem pagara a corrida. Quando voltasse, teria que acertar com o dono do carro. Contudo, quando chegou para segurar meu velho, o cidadão não teve escolha. Precisou abrir os olhos. Ao fazê-lo, se borrou. Deu de cara com o mar imenso. E mais que o mar, com a altura. Não deu outra. Frente ao medo, desmaiou. Papai, que pensava em saltar, sair furtivamente da vida, sem considerar seus dias de glória nem temer o castigo que se abateria sobre seus costados, de repente mudou de ideia e despulou das garras da morte iminente. Correu apressado, afoito, temendo que o pobre motorista viesse a óbito.  Nesse corre-corre sinalizou para outros que cruzavam. Conclusão: prevaleceu a solidariedade da galera. Juntou uma pá de gente e todos se uniram. Levaram o pobre do motorista, para o pronto socorro mais próximo, o semblante deste, branco, mais alvo que rosto de mármore repousando num museu. Era possível enxergar sua alma através da pele. Graças a Deus, com esse peripaque do infeliz, papai tirou definitivamente essa história de querer se suicidar.

Ele e o tal motorista (seu Adão do Fiat 147 amarelo) estão vivos até hoje. Ficaram amigos. Todo final de semana, o referido senhor vem aqui para casa. Sentam ao sol, num banco de madeira, com ares plenos do dever cumprido. O futuro que os contempla, deixa sobre suas carcaças, uma vazia perspectiva a se derramar na eternidade.  Pelo sim, pelo não, mas pelo sim, que pelo não, o incidente serviu para unir dois medrosos abestalhados. Um de pular, e o outro, de perder o valor da corrida. As más línguas atestam o contrário. À boca miúda, observam que papai, na hora agá, tremeu na base, vendo o motorista revirando os olhos e entrando em pânico. Por seu turno, o motorista, com medo de altura, ao olhar para baixo, empalideceu, descorou e por essa razão, desfaleceu boquiaberto. Nessa lengalenga do campeonato, vai se saber! Aliás, é humanamente difícil, senão impossível, de se compreender. E cá entre nós, compreender para quê?! 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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