quinta-feira, 23 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dois: Fuga Letal


O SUJEITO CHEGOU no trigésimo andar vindo pelas escadas. Por algum motivo, não usou nenhum dos elevadores.  Havia quatro cabines verticais à disposição, mas ele preferiu o anonimato dos corrimões e das luzes tênues das escadas empoeiradas. Ao se avolumar com a sua massa corporal no extenso do corredor, notei seu semblante ressabiado e o respirar fatigado. Num primeiro momento, olhou para todos os lados, inúmeras vezes, como se temesse a chegada inesperada de alguém.

Percebi, logo de cara, que as intenções dele não eram assaz benignas. Quem aparece assim, do nada, suando em bicas, elegendo as escadas, para galgar trinta pavimentos, ao invés das comodidades dos ascensores, e o mais importante, amedrontado, se esgueirando feito cobra, pelos cantos escondidos, certamente não vinha disposto a se ajoelhar e rezar para pedir clemência à Deus. Aquele homem tinha outras intenções e eu, com toda certeza, seria, ainda que a contragosto, a testemunha ocular de um possível futuro crime hediondo prestes a acontecer.  

De onde eu estava  (por incrível que pareça, metido no cubículo onde ficava disposta a lixeira que servia a todas as quatro suítes imensas daquele andar), ele não podia me ver, a menos que caminhasse até meu esconderijo e, de supetão, abrisse a porta por qualquer motivo não justificável. Ou, de outro modo, um morador retardatário que naquele horário resolvesse jogar seu lixo fora, surgisse sem prévio aviso e desse comigo clandestinado onde as pessoas apareciam somente para se livrarem de seus expurgos caseiros. Seria muito azar da minha parte. Bota azar nisto.

Fora isto, acrescentando mais dois motivos,  eu seria pego de calças curtas, se produzisse algum ruído estranho, tipo se deixasse cair uma agulha no chão, ou, em face do cheiro forte exalado dos detritos, espirrasse numa sequência de atchins incontroláveis. No pior dos mundos, meu Cristo Salvador, no pior dos mundos, eu seria igualmente surpreendido, no flagra, de saia justa (apesar de não usar saia), se ousasse abrir a boca e gritar pelo fato de ter sido estuprado, quem sabe, por uma barata afoita que surgisse sem motivos justificáveis. 

Depois de se abanar com um jornal enrolado que retirara do bolso esquerdo, tomar fôlego e prescrutar cuidadosamente todos os cantos, de espiar pela janela de vidro inteiriçada incrustada à parede de meia altura o movimento da avenida lá embaixo,  de sentir no rosto o brilho da lua resplandecente, puxou da cintura um chaveiro e, dele, uma lixa e se prestou a procurar  qual apartamento seria o seu destino final. Foi lá, veio cá, passou perto de mim, vagarosamente. Tremi na base. Me benzi, esparramando de qualquer jeito, o Sinal da Cruz. Se o desgraçado resolvesse abrir a lixeira.... Eu estava fe... Entretanto, o cidadão estancou a caminhada diante do 3004. Mandou vê. Em questão de segundos, com a ajuda da gazua, arreganhou a porta da unidade e entrou. Simplesmente abundou aquela residência, como se tudo ali fosse dele.

Dentro do apartamento, norteado apenas pela luz da lanterna do celular, não perdeu tempo. Abriu várias gavetas, vasculhou minuciosamente atrás das cortinas, levantou o tapete que se estendia por boa parte do chão, remexeu nos livros dispostos na estante. Deu a entender que o procurado não fora achado. Afinal, o que o sujeito tinha tanta pressa em colocar as suas garras afiadas?

Finalmente, se esparramou no sofá retrátil de doze lugares, acendeu um cigarro e se fixou a olhar para o teto, sem se preocupar com a porta principal que arrombara e deixara diametralmente aberta ao acaso de outras moradias. Me veio a cabeça que o suspeitoso não se tratava de um ladrãozinho qualquer. Longe disso. Pelo menos, não vestia a pele de um meliante comum. Embora tivesse revolvido e remexido em tudo, deixado no seu remelexo o ambiente em desordem, de nada que viu pela frente, se apoderou para si. Foi aí que entendi a charada.

Claro, que besta quadrada! Só eu mesmo para pensar besteira. O estrangeiro não  fazia parte dos  larápios e salteadores buscando quinquilharias. Sem sombra de dúvidas, eu estava diante (em termos) de um assassino. Um facínora frio e calculista. Esperava, pois, a dona do imóvel. E eu sabia de quem se tratava.  Marcela, uma loira de tirar o sossego de qualquer coração. Andava, a beldade, pela  casa dos vinte e oito anos. A jovem morava sozinha, e, com toda certeza, ele a esperaria para lhe dar o bote e, de roldão, cabo da vida. Fiquei imaginando, com meus botões:  por que o infeliz não encostara a porta que violara?

De repente, ele saltou do sofá. Apagou o cigarro. Foi até a janela. Abriu um pouco a cortina e despachou a guimba ao sabor da escuridão. Um dos elevadores, ou mais precisamente o social parou neste momento e alguém saltou. Sabia que apeara uma pessoa, pelo barulho da porta sendo empurrada. De fato, eu não errara. Marcela havia acabado de aportar. Meu Deus, eu precisava fazer alguma coisa, no mínimo, por descargo de consciência, avisar a coitada. Jesus Cristo, eu seria testemunha de um crime brutal, cometido à revelia de uma inocente e eu não poderia sequer sair de onde estava. Aquela altura, se me delatasse estaria dando um tiro no próprio pé.

Talvez, com  certeza, me enveredasse pelo mesmo destino trágico daquela doçura que acabara de chegar  da rua, ou do trabalho, sei lá, que diferença isto faria agora? Ouvi nitidamente seus passos no corredor. De fato, a moradora se achegava. Enquanto esperava e espiava, temeroso e tremendo, ela passou por mim. Quase a toquei. Senti seu calor. Capturei o cheiro forte do seu perfume, me coloquei dentro dos olhos dela, ambos direcionados para a porta de seu quadrado. Ela percebeu, então, que a sua habitação fora transgredida. Apesar disso, não parou. Caminhou devagar, quase parando, como se não tivesse pressa. Como se sentisse o perigo iminente que a espreitava, mas por alguma razão mais forte, não retrocedia, seguia em frente, os cabelos soltos, em ondas esvoaçantes descendo sedosos até a cintura fina.

Vista por trás, a espetaculosa, se transformara a meus instintos animalescos numa deusa encantada. O corpo perfeito. Seu conjunto escultural, lembrava uma princesa recém saída de um castelo encantado. Coitada! Tão nova, tão linda, tão... Seu fim se  aproximava. À alguns passos e tudo estaria acabado. Acovardado, preso ao chão, eu tremia pior que caniço em temporal. Ela parou no umbral. Acendeu a luz. Ao ver o homem, em pé, quis retroceder.  Tarde demais.

Ele se aproximou, como se voasse. Ligeiro, agarrou a formosa pelos cabelos e a puxou violentamente para si. Ela tentou se libertar. Emitiu uns “me solta, me deixa, pelo amor que você tem à sua mãe”, entre outros impropérios, que acabaram sendo abafados pela força bruta do desumano algoz. Ato contínuo, a arrastou para o sofá, como se fosse, a criatura,  uma pluma. Um beijo se fez ligeiro, depois outro, numa sofreguidão que arrepiou o mais profundo da minha alma. Apavorado, mais que apavorado, aterrorizado, espantado, terrificado, me questionei rezando o Pai Nosso. Que atitude tomar? Correr? Berrar? Buscar ajuda?  Virar homem e sair da toca e chamar a polícia ou pôr para fora o que tinha de fazer ali mesmo e não dava mais para segurar, ou meter o rabo entre as pernas e me escafeder?

Se ao menos eu tivesse trazido o celular... Eu não podia continuar estático, feito um cão assustado, acossado, perseguido e embaraçado... Precisava, carecia, necessitava  fazer algo o mais urgente possível. Tomei, então, uma atitude. Engoli o medo. Mastiguei o receio. Esmaguei meus temores. “Afinal, sou um homem ou um rato?”.  Isso não iria ficar assim. De forma alguma. Me enchi de razão. Resolvi sair do armário, digo, da lixeira. Peguei o controle e, ato continuo, desliguei a televisão. Droga de filme chato!  Apaguei a luz da sala e fui para o meu quarto dormir.

Fonte
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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