quinta-feira, 2 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Talho Veneno)


DESLIGUEI CORRENDO  A TELEVISÃO, joguei o controle no sofá  e saí da sala, meio que às carreiras. Entrei no banheiro. Nele, um odor indigesto, mas preciso, regido orquestralmente por contornos quadrados, ocupava a habitação. O espelho, colocado sobre o lavatório, devido à pequenez do espaço, cumpria um trabalho inquisitivo, delimitado pela película desgastada do reduzido retângulo antigo. Com tédio comecei a me despir. Primeiro arranquei os sapatos, depois a calça jeans. Em seguida a camisa, e, por fim, a cueca. O surdo rumor que as roupas instalavam no minúsculo cômodo, delimitou o lugar. A um lado, o vaso sanitário emergia sisudo, enfático e silencioso, quieto como uma beluga* estéril, indefesa, sufocada pela estreiteza de sua lapa artificial.

Finalmente, me inclinei sobre o cetáceo*, na espera dos surdos sons que inaugurariam o fluxo do meu começo de dia. Depois disso, o chuveiro frio. Uma vez sob ele,  fechei os olhos. O cubículo se ampliou no tempo em que o vapor do meu corpo se propagava, só que um pouco escuro e quase carente de oxigênio, reticulado em um de seus extremos pelas sonoras estilhas* aquáticas que, por momentos, pareciam inundar o piso. Como de costume, minha cabeleira, precedida por um leve calafrio, se rendeu ante o peso da água, formando um instantâneo casco que cercou minhas orelhas e me arrastou a uma nova dimensão sonora.

A essa hora do dia me era difícil saber com exatidão como ou mediante o que aquele cômodo parecia iluminado e sedoso. Possivelmente uma luz diurna, inicial ou, talvez, se tratasse da velha lâmpada fixada a uma das paredes laterais, cujos filamentos simulavam um pequeno inseto de âmbar ou palha. Ou será que aquela claridade, apenas suficiente, se constituía graças à multiplicidade de pequeninos reflexos provenientes das partículas  de água que se depositavam matemática e delicadamente sobre as paredes para aveludá-las? Não posso precisar a origem da luz, mas sei que o espaço se reduzia sob a claridade fragmentada e nebulosa.

Agora o ar possuía o recente cheiro de urina, parecendo se materializar nas nervuras dos mosaicos quase irreverentes em seu perfeito alinhamento. Não me lembro se em algum momento de minha vida encontrei na cotidiana tarefa do arranjo pessoal certo prazer, porém, faz tempo que sua indiferença me ajuda a decidir rapidamente o tom e a suavidade de minhas roupas. Renunciei sem me dar conta de todo tipo de detalhes, pois nem sequer me permito botões ligeiramente grandes ou de cores inusitadas. Habito familiares urdimentos* que se encarregam de definir meu contorno e apenas outorgam mínimas variações avermelhadas ou cinzentas.

Aceitar minha elegância me resulta acidental. Pode ser que isso tenha a sua origem no aborrecimento quase amável que lentamente me cerca. Escolhi um suéter pressentindo a frialdade* das ruas. Quando cheguei, o gélido e o cheiro de lápis me escoltaram até o lugar habitual. Ao meu redor, a luz estava quase a nascer. As lâmpadas alógenas, através de uma lâmina de plástico cuja superfície possuía um múltiplo desenho hexagonal, como se tratasse de favos elétricos, emanavam uma brancura cirúrgica. As leves cortinas ofuscavam a paisagem metálica da cidade e apagavam os detalhes das varandas vizinhas que, como desarticuladas caixas de sapatos, umas sobre as outras, pareciam se precipitar sobre a calçada.

A rigidez da cadeira, unida ao estreito espaço que havia entre esta e a escrivaninha, me obrigou a dispor do reduzido lugar como se eu fosse um incômodo caracol, ensimesmado e concêntrico, em uma atitude voluntariamente introspectiva que me dava apenas um pouco de segurança. Minha chegada não passou despercebida. Os alunos ocuparam seus lugares maquinalmente e iniciei, ausente e triste, meu discurso cotidiano. Frequentemente me pergunto: como experimento o passar do tempo? Meu trabalho docente me dá uma perspectiva cíclica e vazia dos dias? Talvez seja como uma sensação de permanência em um ponto atemporal e interrompido.

Meus interlocutores, sempre múltiplos e diversos, preconcebidos desde os seus nomes, são na realidade uma só presença que, ao longo dos anos, formula a mesma pergunta, desde o mesmo lugar, a propósito de algo que se repete até se fazer real: "quais os componentes da sinóvia*?". Essa dúvida une o passado e o futuro e faz do presente um hábito, uma ferida única e rotineira, ante a qual tenho logrado sentir indiferença. É por isso que para mim,  março  é sempre março, mas não só isso, se não, também, o exame sobre as agenesias* e os hiatos ósseos*. Carina, minha secretária, traz consigo os tarsos*, segunda parte.

Essa certeza que, como bola de bilhar, se dirige tensa e programática até mim, me produz duas sensações: a comodidade que me lega a predição e o fastio que essa predição implica. Quando me pergunto quem são eles, só consigo recordar riscos que permanecem, algo assim como pernas suaves que, depois de ligeiras vacilações, se firmam sobre a barra da cadeira em frente: como ombros alinhados que se rendem conforme o quadro negro persiste e denuncia; como pares de sapatos brancos, níveos. Quantas vezes devem ter se  insurgido o ruído das carteiras contra o som metálico da campainha escolar.

Quantas canetas sucumbiram tímidas ante a dúvida? Só tenho vivido um dia, que pode ser reduzido a um momento perene. Então, dei a aula perpétua à minha aluna, tudo pairando sob o peso luminoso das lâmpadas e da realidade. À borda do medo, lembrei do que disse uma vez um certo pedagogo de renome: "o professor é alguém que chega e dá resposta a uma série de perguntas que ninguém lhe fez". E o contista? Menos mal que o ensino não é tudo para mim: se não fosse pelo meu turno no hospital, como clínico geral, essa frase deixaria cair impunemente seu gume sobre minha cabeça  e, de roldão, derrubaria a  minha desvanecida existência.

Situar-me-ia no hall do sem sentido. Saí da sala com resignação, mas triste, enquanto a palidez do corredor que leva aos fundos do necrotério me devorava firmemente. Só faltava o dia seguinte para que este pequeno ciclo semanal terminasse. O ferrolho cedeu docilmente. A chave, cuja superfície desenhava um baixo-relevo reticular, se ajustou à fechadura e, como de costume, a abriu. Atravessei o umbral e nesse momento recordei algo que já havia pensado antes: que poder nos oferecem  as coisas capazes de redimensionar uma e outra vez o mesmo espaço! Como influem emocionalmente em nós, cada um de nossos fiéis objetos do dia a dia?

Que significam o sofá suave, a estante lúgubre e a lâmpada aérea? Agora creio que posso lhes ser indiferente, mas se não existissem, se em algum momento como esse deixassem de estar aqui, pressinto que minha consciência se inclinaria, incoerente, até elas (Que parte de nós é todas as coisas?). Um homem ancestral pensou: "esta é minha pedra"; desde esse dia não temos parado de construir e conquistar; só assim poder-me-ia explicar a existência do copo e do pires, da fivela e da caneta, do teclado do computador e da Internet, da chave e do cabide. Fechei a porta. A terrível proximidade do fim de semana me abateu, enquanto caminhava até a cadeira.

Notei que a pequena begônia na varanda agonizava. Que ironia! Os dias no hospital têm transcorrido imperceptivelmente. Sei que esta semana vai morrer o velhinho da enfermaria 22. Vai bater as botas de velhice mesmo.  Se não me engano é o  Sivuca (aquele do acordeon) Em compensação, nasceram duas crianças, todavia isso não muda as coisas. Depois de tudo, a sala de cirurgia, quase aquática, o oxidado purê de maçã que servem no refeitório e a máscara cirúrgica me silenciaram; tenho terminado por me parecer a um de tantos corredores do hospital: desvelado, estéril e simples. Sou isso. Hoje, recebi uma pessoa que havia sido ferida numa briga.

Por momentos a lividez de seu rosto suave, de seus lábios de amêndoa tirou minha atenção. Quando os assistentes investiram furiosamente em suas calças com as tesouras, que multiplicavam com força a luz da lâmpada, assomou uma pele delicada, sob a qual se adivinhava a harmoniosa articulação dos quadris e do fêmur; o sangue se espargia sobre a claridade cutânea como um desfile de suaves e doces cerejas em volta da fragmentada negrura de si. Conforme consegui controlar a hemorragia, a respiração se normalizou e o maxilar inferior foi cedendo até lhe devolver a expressão de descanso ao rosto.

Quando o condutor da maca a levou ao final da sala de observações, senti um forte esgotamento e comecei a tirar as luvas de látex, que pareciam se adelgaçar* devido ao insistente suor de minhas mãos. Eu agonizava. Agora volto às minhas coisas, me aferro à magia da mesa ou à presença vital e latejante do televisor. É tarde e a chuva persiste; a noite, como um pulmão de barro fresco, aspira o silêncio amedrontado e úmido das artérias. O banheiro, agora livre de artifícios luminosos, exala um cheiro de caracol gigante. O espaço (onde durmo) aguarda com a paciência do pó nos armazéns, quieto: no centro, o grande volume aberto tenta me seduzir com suas páginas de arroz e borboleta.

Minhas roupas alegóricas caem como pétalas abatidas junto à sua escrivaninha, de onde me observa como se fosse real, como se sua solidão pendesse, oscilando de um fio de seda sustentado pelos meus dedos de açucena hipotética; miro o enfermo, embalsamado na pele de cera torpemente envolvida pelo pardo cachecol; sua debilidade me invade, me desborda, o que me permite compreender o tédio esmagador de meus dias no colégio e no hospital; lanço minha repreensão às suas orelhas de morcego agonizante, descarrego meu ódio sobre seu cabelo de equino assustado e a pergunta acode como bumerangue.

Por que me manténs aqui,  por que,  por que te desdobras e intentas viver de mim, de nosso inacessível coração de cebola? Por Deus, me deixe ficar em paz e quieto, sossegado e só nesse lugar que imaginei existir num ponto bem distante do meu eu ausente. Não me toques, não me desnudes com tuas metáforas de pétala para evidenciar a minha ausência, para exibir meu corpo entorpecido  pela covardia de tua caneta que não concebe o amor. Estás só e o advertes em meus olhos de tinta, em meus dedos de prosa, em minha boca, que cerras de golpe com a tua assinatura mal parida.
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Glossário (Dicionário Houaiss):
ADELGAÇAR – tornar(-se) delgado, estreito; diminuir a espessura de.
AGENESIA – atrofia de um órgão ou tecido por parada do desenvolvimento na fase embrionária
BELUGA – baleia branca.
CETÁCEO – ordem de mamíferos aquáticos, que inclui as baleias, botos e golfinhos
ESTILHAS – pedaço, fragmento de qualquer coisa; estilhaço
FRIALDADE – friagem.
HIATOS ÓSSEOS – Espaço delimitado por extremos livres de ossos próximos.
SINÓVIA – humor transparente e viscoso que lubrifica as articulações e que é secretado pela membrana sinovial
TARSO – esqueleto da parte posterior do pé; planta do pé.
URDIMENTOS – enredos, tramoias.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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