sábado, 21 de maio de 2022

Versejando 112

 

A. A. de Assis (Pobreza de rico)

Numa viagem de ônibus de Curitiba para Maringá, sentou-se na poltrona a meu lado um senhor de cabelos brancos. Era um professor aposentado e vinha visitar parentes que moravam num sítio perto de Itambé. No meio da conversa contou uma experiência muito interessante vivida por ele no início dos anos 1990, quando passara cerca de dois anos na Dinamarca fazendo pós-graduação.

Em Curitiba participava de um grupo de vicentinos, com os quais praticava caridade ajudando famílias carentes. Chegando à Europa, quis dar continuidade ao seu apostolado, porém logo de início percebeu um “problema”: a quem ajudar?

A Dinamarca é conhecida como “um país onde há pouca riqueza... e muito menos pobreza”. Isso mesmo: lá não há ninguém carente de alimento, agasalho, escola, assistência médica, remédio, proteção à infância, amparo à velhice etc. O estado garante tudo.

Felizmente já existem no mundo vários lugares assim, onde a sociedade se aprimorou de tal modo que os dramas resultantes da pobreza praticamente zeraram. Bons governos, boa legislação, alto nível de cultura e honestidade são algumas das razões desse progresso.

Como então, num país como esse, praticar aquilo que ele estava habituado a chamar de caridade? A quitinete onde morava em Copenhague dava frente para uma pequena praça. Da janela começou a observar um senhor idoso que toda manhã aparecia lá, sentava-se num banco e passava horas olhando os passantes.

Um dia resolveu descer e ir lá bater um papo. Não entendia ainda quase nada de dinamarquês, mas por sorte o homem era fluente em inglês. Era um engenheiro aposentado, bem-informado, bem-agasalhado, enfim uma pessoa aparentemente sem do que se queixar. Único problema: não tinha com quem conversar. Viúvo, os filhos e netos distantes, morava sozinho, comia em lanchonetes ou restaurantes, contava apenas com uma diarista que ia uma vez por semana lavar suas roupas e dar uma limpadinha no apartamento.

Meia hora depois o rapaz despediu-se do novo amigo, prometendo voltar outras vezes. Nos olhos do velhinho notou uma escancarada alegria. Era a resposta que procurava. Nem só de carência material se faz a pobreza. Nos países ricos e socialmente bem-resolvidos ninguém morre de fome, de frio ou de doença facilmente curável. Há, todavia, outros males igualmente dolorosos, entre os quais, em primeiro lugar, a solidão.

O então jovem professor acabara de descobrir de que maneira se faz caridade em países como a Dinamarca: além de papear frequentemente com o amigo da praça, passou também a visitar, sempre que possível, instituições que davam assistência a alcoólicos, depressivos, idosos solitários, refugiados etc., aos quais levava simplesmente isto: palavras de compreensão e esperança e bons ouvidos para ouvi-los com ternura e amor.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 12-5-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XV

A CARTA

(Lendo o Soneto “A Carta interrompida”, de COLOMBINA - 1882-1963)

A carta interrompi. Ninguém resiste
que tanto amor acabe desprezado.
Meu mundo colorido ficou triste,
quando escrevi: “Está tudo acabado.”

O trauma deste amor inda persiste,
— por que viver assim amargurado?
A minha mão se agita e ainda insiste
em terminar o show já começado...

Basta postar a carta já escrita,
tudo acabou, a vida é só desdita,
vou aprender viver no meu limite...

No envelope lacrado — quanto medo,
o correio há de levar o meu segredo,
mas o meu coração já não permite!
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AMOR E PAZ

Hoje, pensei na paz do teu amor
que a minha vida triste, ganharia
e lembrando que fui um sofredor,
não sinto mais o fel dessa agonia.

Não desejei ser grande nem senhor,
que o teu amor a mim já bastaria,
hoje sou mais feliz, sou servidor
e cultuo o teu ser, estrela guia.

O amor que nos uniu na caminhada
trouxe-nos paz, ventura à nossa estrada
e a água que faltava em meu deserto.

E ao recordar vitórias alcançadas,
meu desejo é sonhar nas madrugadas
sabendo que estarás aqui bem perto!
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CAPRICHO

Quis o destino, caprichoso, um dia,
que eu sofresse, na terra, grande dor.
Conspiração dos astros da poesia
que me fizeram crer no teu amor.

Ingênuo, acreditei na fantasia
que me ofertou teu lábio sedutor,
e vi morrendo, aos poucos, a alegria
quando partias como o beija-flor.

Eras a estrela vésper do meu sonho
povoavas meu céu sempre risonho
em noites de fulgor e de luar...

Mas me deixaste assim, cama vazia,
sem ter ninguém na madrugada fria,
um condenado à morte por amar.
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DESPEDIDA

É tempo de partir... Quanta amizade
a gente vai deixando para trás.
Meu coração recorda com saudade
os tempos idos que a memória traz.

Vão-se os amores, sonhos e a vaidade,
tudo passou tão rápido e fugaz,
são lembranças da própria mocidade,
são saudades dos tempos de rapaz.

A esperança que outrora me seguia
transformou-se em desgosto e nostalgia
ao recordar a mágoa que me oprime.

Chegando ao fim deste roteiro santo,
que eu possa ser a Luz que brilha tanto
que no meu verso a Inspiração sublime.
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ETERNA BUSCA

Nunca quis navegar por outros mares
que a vida, por acaso, me levou,
nem quis rezar também noutros altares,
pois tua imagem nunca me deixou.

Mas parti procurando outros pilares
para atracar do barco, o que sobrou,
porque no temporal dos meus azares
só saudade, no mundo, me restou.

E agora, já no fim desta procura,
confesso que não tive essa ventura
de esquecer, para sempre, a minha dor.

E tudo que busquei nesta jornada
se resumiu, talvez, num quase nada:
- felicidade, eu sei, só com amor.

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Pedro Melo (Eu e a freira)


Nessa época eu já morava no Paraná, mas tinha ido a São Paulo por alguma razão. Como participaria de um evento em Maringá, onde teria oportunidade de reencontrar, entre outros, meus queridos amigos Assis, Eliana, Olga, Nilsa e Jeanette, em vez de viajar para União da Vitória, peguei o ônibus para Maringá.

Perto de mim se sentou uma senhora alta, esguia, muito elegante e sorridente. Ao olhar para ela, intuí que fosse freira. Não tinha nenhum adorno ou detalhe físico que indicasse isso, mas havia algo nela que me levava a achar que fosse uma religiosa. Sempre gostei muito de conversar com padres e freiras. No curso de Magistério (o antigo Normal), tive aulas de Filosofia da Educação com um padre diocesano e uma colega minha do primeiro ano era uma freira scalabriniana. E aquela senhora parecia freira.

Até cogitei a possibilidade de puxar conversa com ela, mas como sou tímido fiquei com vergonha. A troco de quê eu puxaria conversa com uma desconhecida no ônibus? Mas chegou a oportunidade.

O ônibus fez uma parada na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo e, por alguma razão, estava atrasado. Foi o pretexto para puxar conversa com ela nesse lugar da parada. E aí não paramos mais.

De fato, ela era freira mesmo. E que freira! Era teóloga, com pós-graduação na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Poliglota, servia a Igreja fazia muitos anos. E conversamos muito, não tanto sobre teologia, mas sobre questões sociais e as relações da Igreja com a Sociedade. Falamos muito sobre algumas figuras da Igreja pelas quais eu sempre tive profunda admiração e descobri que ela comungava de minha opinião: o bispo salvadorenho Oscar Romero, assassinado em 1980 devido à sua atuação pelos pobres, e figuras da Igreja brasileira como Ivone Gebara, Leonardo Boff, Dom Hélder Câmara e, na época ainda vivos, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga.

Acho fascinante conversar com pessoas inteligentes, cultas, de mente aberta, com as quais posso aprender. Conversamos animadamente de Santa Cruz do Rio Pardo até Maringá! E aquela simpaticíssima freira, cujo nome infelizmente não recordo, ficou na minha lembrança por ter me proporcionado uma das viagens mais agradáveis e momentos de maior aprendizado que fiz em minha vida!

Em Maringá, durante os festejos do evento a que fui assistir, o poeta A. A. de Assis, com seu jeito bonachão de sempre, brincou com a situação:

- E depois de tanta prosa, a freira não converteu você?

Olhei para ele, sorri, pensei um pouco e respondi:

- A conversa foi muito boa, mas não consigo me imaginar usando um hábito... Acho que não levo jeito pra ser freira!

Piadista incorrigível, ele emendou:

- Mas se a irmã não usava hábito, você também não precisa... ainda dá tempo...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (A lenda pessoal)

Ele era um bom pastor de ovelhas da região de Santa Luzia. Se cumprisse com o destino escolhido pelo pai, logo se tornaria padre. Mas o pastor, um rapaz chamado Santiago, não entendia como poderia ser possível alguém servir a Deus vivendo num único lugar. E,  por essa razão, sua meta de vida era viajar o mundo inteiro. Conhecer novos povos, novas línguas, historias, e não viver apenas como as ovelhas do seu pastoril, que se contentavam apenas com água e comida.

Então, tomando as rédeas de sua vontade, junto de suas ovelhas e sempre carregando um casaco, um pouco de vinho e um livro, ele dá inicio ao seu projeto de se aventurar pisando novos territórios.

Em uma de suas andanças, ao crepúsculo da tarde, chegou com seu rebanho numa  velha igreja abandonada. O teto tinha despencado há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia. Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela porta em ruínas, e então colocou algumas tábuas de modo que elas não pudessem fugir durante a noite. Naquele local, por três noites seguidas Santiago teve o mesmo sonho. Nestes sonhos ele recebeu a mensagem de que havia um tesouro esperando por ele nas pirâmides do Egito. Após uma cigana interpretar o significado do sonho, ele parte rumo ao seu tesouro. E logo em seguida quando estava tentando se concentrar para ler um livro num banco de praça, um misterioso velho senta ao seu lado. O senhor se apresentou como sendo um velho sábio, Rei de Salém. Demonstrou conhecer toda a vida do jovem pastor, lhe ensinou sobre os mistérios dos sinais. E disse que sempre aparecia para aqueles que ousam apostar na  LENDA PESSOAL.  Santiago não sabia o que era lenda pessoal. E o velho disse:

-  “ É aquilo que sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua Lenda Pessoal. Nesse período, tudo é claro, tudo é possível, e elas não têm medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ter na vida. Entretanto,  à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.”  

“Quando você quer alguma coisa com toda a força de sua alma, todo o universo conspira para que você realize o seu desejo.”

Rumo ao tesouro, Santiago passa por muitas dificuldades, é roubado por um estranho que parecia ser honesto e arranja um emprego em uma loja de cristais para recuperar o dinheiro perdido e continuar sua viagem. Partiu em caravana rumo a um oásis . Lá, encontra uma moça chamada Fátima e por ela se apaixona. Durante a sua jornada, Santiago conhece o alquimista que promete guiá–lo até o local do seu sonho. Fátima o incentiva e fica a sua espera. Depois de muito tempo, ele finalmente chega às pirâmides do Egito. Procura pelo tesouro e não o acha. Então recebe a revelação de que o tesouro estava em Santa Luzia, debaixo da árvore onde teve os sonhos repetidos. Só depois de todo o sacrifício pode entender que, os verdadeiros tesouros podem estar bem diante do nosso nariz. Ele volta ao lugar onde tudo começou. Descobre o tesouro e retorna ao deserto para viver feliz com o seu amor.

Sei que a história dispensa apresentações, pois estou falando sobre um dos livros mais famosos do mundo: O Alquimista, de Paulo Coelho e do seu personagem principal, Santiago que vem nos despertar para a nossa verdadeira realidade. Essa realidade nada tem a ver com a maioria das coisas que costumamos ouvir e muito menos com os projetos que algumas pessoas idealizam para nossas vidas. Ao contrário, nos faz imergir na alma do mundo, entender a linguagem de Deus através de sinais que podem indicar os caminhos certos a seguirmos em direção aos objetivos sonhados e, principalmente, a entender a linguagem do coração. A relembrar que na infância tínhamos a mais absoluta certeza do que queríamos de fato para nossas vidas. Que precisamos esquecer os medos, arriscar, lutar, superar, vencer, viver, assumir a lenda pessoal porque sim, é verdade: ela existe e prova que TUDO É POSSÍVEL...

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Daniel Maurício (Poética) 30

 

Carlos Leite Ribeiro (Bolo de Aniversário)

(um conto real)


Naquela noite de 29 de Dezembro de um ano que já não me lembro, cheguei em casa já tarde, pois tive de fazer serão no jornal, a preparar edição especial Fim de Ano. Era um trabalho sempre chato, mas que felizmente só acontecia uma vez por ano. Fazer pesquisas culinárias (ainda não havia Internet); entrevistar chefes de cozinha e afamados cozinheiros; pequenas entrevistas a políticos e a figuras públicas (e não só). Fazer as listas de restaurantes, bares e outros locais de divertimentos, etc.   

Tudo isto além dos noticiários normais que de hora a hora tínhamos que dar à antiga Emissora Nacional. Era um trabalho como dizíamos "do diabo".

Portanto, cheguei em casa muito cansado e com fome. Logo na entrada, veio a meu nariz um cheirinho agradável de bolo. Passei pelo quarto para ver se a mulher estava a dormir, e em seguida, dirigi-me à cozinha de onde vinha aquele maravilhoso cheirinho de bolo quente.

Logo descobri o Pão-de-ló numa forma grande (tínhamos dois tipos de formas cada qual com seu diâmetro). Contente com qualquer pedaço, prestes a comer um pedacinho de queijo, retirei o tal bolo da "estufa" onde estava a "secar" e cortei uma generosa fatia; confesso que tive vontade de comer o bolo todo, mas como é óbvio, tinha que contar com a esposa que estava a dormir.

Dirigi-me ao quarto e delicadamente acordei a esposa, querida: “Tu hoje caprichaste ao fazer o bolo Pão-de-ló! Já comi uma fatia e trago-o aqui para nós o devorarmos.”

Nem pude acabar a frase, pois ela acordou e logo vi que não muito bem disposta:

- Oh seu guloso, o que fizeste ao bolo?!...

- Comi uma fatiazinha!

- Esse bolo era para o aniversário da Maria Figueiredo. Estava a secar para logo de manhã o barrar com molho branco, colocar aquelas bolinhas de enfeite prateadas além das vinte e duas velas. Prometi à moça e agora o que vou fazer?

- Levanta-te e vamos fazer outro. Eu ajudo se puder comer este todo…

- Olha que não estou a brincar … Levas tudo na brincadeira. E eu que prometi à moça que lhe faria o bolo de aniversário. Sai daqui do quarto e vai para a cozinha; mas não comas mais nenhuma fatia de bolo. Guloso …

Vestiu o robe e foi ter comigo à cozinha. Calados só olhávamos para o bolo, eu, intimamente pensava: "que pena não ser todo para mim…".

- Olha, Carlos, parece-me que descobri como safarmos desta enrascada”.

Com uma faca afiada, vou cortar outra fatia do lado oposto e assim, o bolo em vez de ficar redondo vai ficar oval. Como já está quase "seco" vou fazer o molho e tu vai ajudar-me a barrá-lo e a colar com o açúcar em ponto.

Horas depois o bolo estava na perfeição na sua forma oval, e muito bem decorado com as tais bolinhas e os castiçaizinhos para as velinhas.

- Vês, querida, tu és uma enorme artista criativa. Parabéns! Agora posso comer esta fatia, não posso? Ajudei a minha querida …

A resposta veio em tom cortante:

- Nãoooo!!! Quem a vai comer sou eu.

Nem protestei para não ouvir alguma coisa de que não desejaria.

No outro dia fomos ao aniversário da Figueiredo e levamos o bolo que fez grande sensação pelo seu formato oval.

Uma vizinha chegou perto de minha mulher para lhe perguntar:

- Onde é que a senhora comprou esta forma tão fora do comum?

Eu afastei-me logo antes de dar uma sonora gargalhada, enquanto a esposa dizia à senhora, numa cara muito cômica a tentar não se rir.

- Estas formas (metálicas) não se vendem em Portugal. Foi uma amiga que me trouxe de França …

Hinos do Brasil (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul)

MATO GROSSO
O termo “qual novo colosso”, presente na primeira estrofe faz uma comparação entre Mato Grosso e o Colosso de Rodes, uma das sete maravilhas do mundo antigo, e que já não existe mais.
Há ainda uma referência ao pássaro Fênix, que segundo a mitologia, é queimado e ressurge das cinzas. A parte “teu progresso imortal como a Fênix” representa o Estado que, mesmo passando por dificuldades, renascia sempre para o progresso.


 

HINO DO MATO GROSSO
Letra por Dom Aquino Corrêa
Melodia por Emílio Heine


I
Limitando, qual novo colosso,
O ocidente do imenso Brasil,
Eis aqui, sempre em flor. Mato Grosso,
Nosso berço glorioso e gentil!
Eis a terra das minas faiscantes,
Eldorado como outros não há
Que o valor de imortais bandeirantes
Conquistou ao feroz Paiaguás!

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

II
Terra noiva do Sol! Linda terra!
A quem lá, do teu céu todo azul,
Beija, ardente, o astro louro, na serra
E abençoa o Cruzeiro do Sul!
No teu verde planalto escampado,
E nos teus pantanais como o mar,
Vive solto aos milhões, o teu gado,
Em mimosas pastagens sem par!

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

III
Hévea fina, erva-mate preciosa,
Palmas mil, são teus ricos florões,
E da fauna e da flora o índio goza,
A opulência em teus virgens sertões.
O diamante sorri nas grupiaras
Dos teus rios que jorram, a flux,
A hulha branca das águas tão claras,
Em cascatas de força e de luz.

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

IV
Dos teus bravos a glória se expande
De Dourados até Corumbá,
O ouro deu-te renome tão grande
Porém mais, nosso amor te dará!
Ouve, pois, nossas juras solenes
De fazermos em paz e união,
Teu progresso imortal como a fênix
Que ainda timbra o teu nobre brasão.

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!
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MATO GROSSO DO SUL
 
O hino ressalta as belezas naturais do estado e traz diversos personagens históricos. São eles:

Vespasiano Martins: Político que lutou pela divisão do estado, foi prefeito de Campo Grande e também senador;

Camisão e Antônio João: Heróis que lutaram na Guerra do Paraguai em defesa das terras sul-mato-grossenses;

Guaicurus: Conhecido como índios cavaleiros, são lembrados pela habilidade em lutar, resistindo a influência de outros povos;

Ricardo Franco: Protetor do Forte Coimbra.

 


HINO DO MATO GROSSO DO SUL
Letra por Jorge Antonio Siufi e Otávio Gonçalves Gomes
Melodia por Radamés Gnattali

Os celeiros de farturas
Sob um céu de puro azul
Reforjaram em Mato Grosso do Sul
Uma gente audaz

Tuas matas e teus campos
O esplendor do Pantanal
E teus rios são tão ricos
Que não há igual

Estribilho:
A pujança e a grandeza
De fertilidades mil
São o orgulho e a certeza
Do futuro do Brasil

Moldurados pelas serras
Campos grandes: Vacaria
Rememoram desbravadores heróis
Tanta galhardia!

Vespasiano, Camisão
E o tenente Antônio João
Guaicurus, Ricardo Franco
Glória e tradição!

(Estribilho)

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 559


 

Stanislaw Ponte Preta (Desastre de automóvel)

Diz que aconteceu mesmo. O cara que me contou falou que o caso era verídico e ficou até de me apresentar o Cravino, personagem central desta lamentável historinha de cunho conjugal.

É que esse tal de Cravino tem uma mulher que eu vou te contar: se ele fosse casado com um tamanduá estava mais bem servido. Há uns 50 quilos atrás ela ainda era mais ou menos, isto é, tinha um rebolado não de todo desprezível e um rostinho bem razoável. Mas depois que casou, a distinta só fez engordar e embuchar. Hoje em dia, se o Cravino pudesse, dava ela de entrada em qualquer crediário.

E, como se não bastasse, a mulher do Cravino é mais ciumenta que um pierrô. Por qualquer coisinha, parte pra ignorância. A coisa foi num crescendo de amargar. No começo, o Cravino olhava pro lado e levava uma cuatucada nas costelas, porque a mulher achava que ele estava dando bola para alguma desajustada social. Depois, passou da cutucada ao beliscão, que é muito mais doloroso e, ultimamente, diante da complacência do marido (complacência essa ditada por total incapacidade física diante da mulher), iniciou, com bastante êxito, o chamado festival de bolacha. O pobre do Cravino, por qualquer besteira, apanha mais em casa que o time da Portuguesa no campeonato.

O pobre coitado é um conformado de sousa. Até já esqueceu como é mulher e a impressão que se tem é a de que, se alguém mandar ele desenhar uma mulher, o Cravino não vai saber desenhar de cor. Para falar francamente, a única coisa que ainda interessa um pouco o Cravino é automóvel. O rapaz é tarado por um carro bacana, um modelo esporte, um carro de corrida.

E foi mais ou menos por causa de um desastre de automóvel que foi parar num hospital. Não que o Cravino estivesse dentro de um carro acidentado; nada disso. O desastre de automóvel dele foi diferente.

O negócio foi o seguinte: o Cravino tem um amigo que comprou a maior Mercedes-Benz. Um carro alinhadíssimo, o fino da máquina, e, sabendo que o seu cupincha ama carro assim, telefonou para ele e perguntou se não queria dar uma voltinha na Mercedes.

Ora, tá na cara que o Cravino ficou assanhado e topou logo. Seu entusiasmo foi tal que esqueceu a mulher que tinha. O amigo chegou com o carro na porta da loja onde o Cravino é gerente e entregou-lhe a chave:

– Pode rodar pela aí quanto quiser. - falou.

O Cravino, encantado, pegou o carro e saiu rodando pelo asfalto, feliz como um passarinho. Tão entusiasmado estava que esqueceu a hora de voltar. Quer dizer, ele esqueceu, mas a mulher não. Bastou passar cinco minutos da hora normal do marido chegar, que ela começou a pensar o pior:

- Deve estar metido em algum canto, com mulheres! - falou a monstra para si mesma.

Quando já fazia uma hora da hora do Cravino chegar, a mulher já estava queimando óleo 40. Sua indignação era tanta que começou a babar numa bela coloração arroxeada. E o Cravino, nem nada, passeando na Mercedes do amigo.

Só deu as caras em casa duas horas depois. Vinha alegre, de alma lavada, amando o carro do outro. Nem se lembrou do perigo que corria e, ao abrir a porta e dar com a megera indomada à sua frente, ficou estupefato.

– Com que mulherzinha você estava, cretino? – berrou a mulher.

- Eu estava com a Mercedes... - mas nem chegou a dizer Benz. Levou uma traulitada firme por debaixo das fuças e não viu mais nada. Só soube o quanto apanhou no dia seguinte, no hospital, lendo sua ficha médica.

Foi ou não foi um desastre de automóvel?

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLIII

PALAVRAS AO VENTO


MOTE:
Como preces fugidias,
minhas palavras ao vento,
dobram esquinas vazias
nas curvas do firmamento...
Analice Feitoza de Lima
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP


GLOSA:
Como preces fugidias,
emana do coração,
em prantos, ou alegrias,
uma serena oração!

Vou jogando com carinho
minhas palavras ao vento,
que ecoam, no meu caminho,
de encontro ao meu pensamento!

Às vezes, saem tão frias,
cheias de desilusão,
dobram esquinas vazias
em ruas sem emoção!

Vendo a tristeza a chegar,
novas palavras invento,
que se perdem pelo ar
nas curvas do firmamento…
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GASTEI SORRISOS...

MOTE:
Só agora vou sentindo
como a vida me feriu;
gastei sorrisos sorrindo
a quem nunca me sorriu...

Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
Só agora vou sentindo

um mar de pranto em meu peito,
e uma angústia que vem vindo
aninha-se no meu leito!

Vê meu pobre coração,
como a vida me feriu;
e sem qualquer emoção,
o meu coração partiu!

O sorriso é sempre lindo,
quando a gente está amando...
Gastei sorrisos sorrindo
nem sei para quem, nem quando!

Terminou a fantasia:
tudo que era bom, fugiu;
entreguei minha alegria
a quem nunca me sorriu…
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A VIDA É BELA

MOTE:
No coração esperanças
na alma desejos de amar,
jamais pensar em vinganças...
A vida é bela a cantar.
Célia Lamounier
Itapecerica da Serra/SP

GLOSA:

No coração esperanças
que dão força ao nosso dia,
são sempre as boas lembranças
que nos trazem alegria!

Devemos ter, com fartura,
na alma desejos de amar,
essa emoção linda e pura,
devemos alimentar!

Fazer novas alianças,
cultivar sempre a amizade,
jamais pensar em vinganças...
pois dão infelicidade!

São esses doces desejos
que nos fazem continuar.
Cantemos aos doces beijos,
a vida é bela a cantar.
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QUANTA...

MOTE:
Quanta tristeza me invade
nesta vida amargurada...
- Eu quero sentir saudade,
sem ter saudade de nada!
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:

Quanta tristeza me invade
quanta dor, quanta lembrança,
mas não esqueço, é verdade,
esse fio de esperança!

Sofri tanta solidão
nesta vida amargurada...
que o meu pobre coração
é rosa despetalada!

Eu me sinto na orfandade,
mas preciso de alegria...
- Eu quero sentir saudade,
não me deixes só, poesia!

O meu tempo envelhecendo,
se aninha em minha morada:
sigo, mesmo assim, vivendo,
sem ter saudade de nada!
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PEDAÇO DO NADA

MOTE:
Uma luz quase apagada...
Um sonho chegado ao fim...
Eis um pedaço do nada
que tu fizeste de mim!
Conceição Parreiras Abritta
Crucilândia/MG, 1934 - 2015, Belo Horizonte/MG


GLOSA:
Uma luz quase apagada...
num lusco-fusco fraquinho,
deixa uma angústia aumentada
no meu coração sozinho!

Eu sou somente tristeza,
um sonho chegado ao fim...
Meus olhos não vêm beleza,
eu sou quase nada, enfim.

Sigo chorando, alquebrada,
de tudo que um dia fui,
eis um pedaço do nada
que do pranto ainda flui!

Sou mesmo um farrapo triste,
uma bomba, um estopim,
o quase nada que existe
que tu fizeste de mim!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Nilto Maciel (Reportagem)

Há três dias na cidade, quase nada fizera, a não ser alugar a casa, conversar com o fotógrafo e andar pelas ruas. Puxava conversa com um ou outro, à cata de informações. Todos lhe fugiam. Os que não podiam fugir alegavam muitos quefazeres. Procurasse pessoas menos ocupadas.

Acordou, abriu os olhos. O sol já devia clarear tudo. Pôs-se a relembrar um sonho. Levantava-se, dirigia-se ao quintal. Onde andavam o galo e as galinhas? Lavava o rosto numa pia.

Lembrou-se do fotógrafo. A cama vazia. À noite passada dissera-se cansado de tanta monotonia. Iria bebericar por aí, procurar mulheres. Onde andaria? Talvez ainda dormisse no quarto de alguma rameira.

Silêncio assustador. Nenhum galo cantava. As galinhas não cocoricavam. E os vizinhos, os transeuntes, os cachorros, os burros por que não davam sinal de vida? Melhor deixar o sonho para trás e cuidar das obrigações. Talvez outra criança tivesse desaparecido. Ou mais uma jovem tivesse sido raptada.

Espreguiçou-se e caminhou para o quintal. Sim, o sol já clareava tudo. E os galos e as galinhas dos vizinhos por que não cantavam e cocoricavam? Lavou o rosto na pia. Pensou num café. Comprara bolachas e biscoitos. Todo o dia pela frente. Mais conversas, tentativas de conversas.

E o sonho? Preparava um café, abria um pacote de biscoitos. Não, o sonho não tinha a menor importância. Não adiantava relembrá-lo. Afinal, quem não sonha? Melhor sair à rua. Talvez outro homem tivesse ido embora da cidade. E mais uma vez ninguém saberia explicar o motivo dessa fuga misteriosa. A mulher apavorada, triste, revoltada. Os filhos chorosos. Os vizinhos cheios de maledicências. “Fugiu para juntar-se à amante. Um sem-vergonha.”

Procurou a cafeteira. Pareceu-lhe ouvir um canto de galo. Imobilizou-se, agarrado à vasilha. Nada, nem o mais ameno cocorico. Voltou ao quintal. O vento balançava os galhos do limoeiro. O galo seria do vizinho da direita ou da esquerda? E se olhasse por cima do muro? Preferiu ir à porta da rua. Olhou para os dois lados, para as casas em frente. Todas as portas fechadas. Ninguém na rua. Talvez fosse cedo demais. Não, o sol já ia bem alto. Hora de estarem todos bem acordados. As mulheres varrendo calçadas, os meninos brincando. E os jumentos? Pelo menos o do leiteiro. E os cachorros? Pelo menos um deles revirando latas de lixo. E os gatos? Talvez catassem borboletas nos quintais.

Voltou-lhe à mente o sonho. Ouvia um canto de galo. Seria o galo do quintal da esquerda ou da direita? Melhor deixar o sonho para depois. Precisava averiguar aqueles estranhos acontecimentos. Por que tantas crianças e moças desaparecidas? Existiriam mesmo gangues de raptores na cidade? Segundo a polícia e a imprensa, as crianças eram vendidas no exterior. E as moças? Quem as raptava? E os homens, seriam também raptados ou abandonavam suas famílias?

Teve vontade de cantar para acordar os vizinhos. Talvez não soubessem ser dia já. E se todos estivessem nas igrejas? Aquele povo vivia rezando, aos pés dos padres, cheio de pavores. Olhou na direção da igreja matriz. Viu apenas as torres e o relógio. Os ponteiros nas mesmas posições dos ponteiros do seu relógio.

Retomou o sonho. Chegava ao quintal. Nada de cantos e cocoricos. Apenas os galhos do limoeiro balançando-se.

Tolice aquele sonho. Na realidade as coisas eram muito mais buliçosas. Turbulentas até. Não tanto depois de sua chegada à cidade. Os raptos, as fugas não mais haviam ocorrido após sua chegada. E o fotógrafo onde andava? Teria voltado à capital? E se estivesse morto, assassinado num salão de cabaré? Deveria procurá-lo. Não, melhor ir até a igreja. O povo da cidade rezava por sossego. Fechou a porta e saiu. Todas as portas e janelas fechadas. Apressou o passo. Precisava chegar logo à matriz. Nas ruas nenhum sinal de vida. E se assobiasse uma canção? Aproximou-se do templo. As grandes portas fechadas. O povo todo estaria dentro? O padre poderia ter falado de abrigo divino.

Encostou o ouvido a uma das portas. Silêncio absoluto. Onde estaria o povo? Voltou-se para a cidade. Passarinhos e pombos voavam e pousavam nos fios da rede elétrica, nas árvores, nos telhados. Olhou para o céu. Sentiu-se tonto. Pensou em sentar-se no chão. Melhor buscar uma sombra. Um banco de praça. Sentiu sono. Não, não deveria dormir na rua. Voltaria para casa. Talvez o fotógrafo já tivesse retornado. Pôs-se a caminhar. Não queria mais ver as pessoas. Parecia voar. Como se o vento o conduzisse, o arrastasse. Quando cuidou, abria a porta da casa. Cambaleava. Iria morrer? Sentou-se à beira da cama. Onde andava o fotógrafo? Deitou-se. Retomou o sonho. Chegava à porta da rua. Todas as portas e janelas fechadas. Vontade de cantar, acordar os vizinhos. E se todos estivessem na igreja? Fechava a porta e saía. Ninguém na rua. Punha-se a assobiar uma canção. As grandes portas do templo fechadas. Pombos e passarinhos voavam. Sentia-se tonto. Olhava para o céu. Melhor regressar à casa. Voava. Num átimo chegava ao ponto de partida. Abria a porta e corria ao quarto. Sentava-se à beira da cama. Onde andava o fotógrafo? Deitava-se. Logo se punha a sonhar. Acordava, abria os olhos e dirigia-se ao quintal.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo author.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 4

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 53

Ouvidor-mor? Não. Sou o mor ouvidor. E que delícia, e que ouvidos, e que ouvinte eu sou destes faladores, destes falares, das vozes da experiência, do conhecimento, da sabedoria.

Aquela saída para uma volta na quadra enseja momentos sempre desejados. Um amigo que há dias não se vê, uma criança querendo um livro, um passante que entabula conversa.

A audição fica mais aguçada quando se ouve os diaristas da arte de caminhar. Enquanto andam, desfiam bom papo, humorados, histórias e estórias que o tempo não paga.

Momentos fugazes, eternizados, de alguém livre do jugo do relógio, palavras ao vento, semeando conhecimentos de vida.

Bem-fazeres, aulas que não se tem em faculdades, professores da escola da vida borrifando as ideias de quem ouve, jorrando lições simples de bem viver, mostrando que a vida sempre foi feita de bebericos do saber que é oferecido.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Sammis Reachers (O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro)

Alguns dos melhores dias da infância aqui no Jardim Nazareth foram passados no Sítio do seu Pedro. O sítio era na verdade de um japonês misterioso – do qual seu Pedro era o caseiro. Ou semidono, pois o tal japonês quase nunca aparecia.

No grande sítio, tomei o primeiro contato – não numa gôndola de supermercado, não numa sacola de compras de meu pai, mas pegando nas mãos, no próprio pé – com diversas frutas como jambo, carambola, jabuticaba. Até um pé de caqui havia, e curiosidades como uma árvore de cortiça. Mas a principal “lavoura” ali eram as mangas: Dezenas de pés, um carnaval, um tsunami, um apocalipseragnarok-mahapralaya de tanta manga.

O sítio também possuía um equipamento esportivo misterioso para todos nós àquela época: Uma quadra de tênis, em saibro, e isso mais de década antes de Gustavo Kuerten popularizar nos meios de informação o que era o tênis, e, claro, o que era uma quadra de saibro.

Seu Pedro e sua família eram em geral simpáticos e tolerantes – deixavam, a quem pedia com educação, entrar no sítio. Havia regras básicas: Não podia quebrar galhos das árvores, e nem arrancar frutas e deixar no chão (pois limpar aquela imensidão era uma tortura, e desperdiçar comida, como hoje, já era duro pecado naquela época). O acesso livre dependia também da época do ano e de que temporada/ano era aquele. Tinha momentos em que não havia ainda mangas maduras, ou sequer manga alguma, nos pés. Mas, nos melhores anos e na alta temporada, já vi aquele velho senhor negro e franzino, de fala mansa e pausada, abrir covas profundas de uns quase dois metros de profundidade por dois de largura e bem uns quatro de extensão – ou seja, suficiente para sepultar quase um elefante! – apenas para jogar mangas podres (uma tonelada? Duas? Três!?), pois não havia o que fazer com tanta manga. Nem a população do bairro dava conta.

Bem, independentemente de haver mangas e outras frutas ali ou não, a molecada amava entrar no sítio e tentar peneirar alguma coisa. Por vezes a solicitação de entrada era negada, e então os mais afoitos não se faziam de rogados, adentrando no sítio por um dos muitos pontos de acesso “encobertos”.

Foi numa dessas abordagens ou penetrações não autorizadas que me vi, em companhia de Renato e mais uns quase quinze garotos, dentro do sítio, onde entramos lá pela extremidade oposta à daquela em que ficava a casa de seu Pedro.

Seu Pedro também tinha sua espingarda de sal, e miseravelmente um cachorro que, de manso virava perdigueiro quando atiçado por seu dono. Sinistro e opressor padrão!!! Assim, era preciso entrar no sítio bem “na encolha”, e estar atento.

Ali estávamos todos embaixo de um pé de manga espada que, temporão, tinha já suas frutas. A árvore ficava em linha direta com a parte mais sinistra do sítio – Um pequeno casebre abandonado, construído ao lado da tal quadra de tênis. A casa era habitável, e não entendíamos por que ficava vazia, até que um dia um dos moleques ali daquela área – sim, a cada rua, poucos metros de distância, havia uma “galera” mais ou menos independente e, quando queria, hostil – nos informou que aquela casinha era mal assombrada. Para uma criança, aquela informação de mau agouro caía nas costas como uma jaca de inquestionável certeza e medo...

A hora era quase a do almoço, por volta das 11 da manhã, com o sol a pino. Foi quando o sexto sentido de Renato se manifestou, com garbo e brilhantismo. Me cutucando e a alguns outros moleques, ele apontava para um enorme pé de tamarindo, que fazia sombra sobre parte da quadra de saibro. É ridículo relatar isso e, acredite, foi ridículo naquele próprio momento: O que vimos foi uma sombra – sim, um ente perfeitamente translúcido – segurando uma vara de bambu e cutucando a árvore, como quem tranquilamente arrancasse tamarindos para chupar.

Não é piada, nem invenção. Eu VI – foi a única vez em minha vida que vi alguma manifestação do sobrenatural – e olha que hoje e há muito tempo sou um crente pentecostal, e alguns de nós veem com certa rotina coisas do arco da velha... Mas não eu.

Aquela visão inacreditável, surpreendente, inoportuna, cozida e fervida em nonsense foi apontada a um por um dos moleques ali presentes. Todos viram. A sombra, impassível, continuava a lentamente mover aquele bambu.

Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas!

Todos voamos na direção contrária da sombra, de encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento entre os fios de arame que permitia a uma criança ou jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de um a um, claro. Mas naquele momento, moleques jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou torpedos, pouco se importando com os resultados. No empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis, gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca. Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles arames...

Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois como entender um diabo que, dentre o universo de coisas passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e aquele pé de tamarindo como o cramunhão (diabo) evita a cruz!

Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de fim de semana e fazendo festas para seus amigos.

Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o espaço foi novamente vendido, e agora um enorme condomínio de apartamentos populares se ergue naquele lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu naquele terreno em que habitam...
*** *** *** ***

Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de conhecimento corrente de boa parte da população do local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e do outro, um inoportunamente longo e frio muro. Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante!

Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa época em que não havia muita coisa pra se fazer, um indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a cada alma desafortunada que por ali passasse.

Muita coragem embolada com muita safadeza do então jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Manuel du Bocage (Sonetos) VIII

Que ideia horrenda te possui, Elmano ?
Que ardente frenesi teu peito inflama ?
A razão te alumie, apaga a chama,
Reprime a raiva do ciúme insano:

Esperanças consome, ou vive ufano,
Ah! Foge , ou cinge da vitória a rama:
Ama-te a bela Armia, ou te não ama?
Seus ais são da ternura, ou são do engano?

Se te ama, não consternem teus queixumes
Os olhos de que estás enfeitiçado,
Do puro céu de Amor benignos lumes:

Se outro n'alma de Armia anda gravado,
Que fruto hás de colher dos vãos ciúmes?
Ser odioso, além de desgraçado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Às águas e às areias deste rio
Às flores, e aos Favórios deste prado,
Meus danos conto, minhas mágoas fio,
Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado:

A paz do coração posta em desvio,
O gosto em desenganos sufocado,
Lágrimas com lembranças desafio,
E pela tarda morte às vezes brado;

Tão maviosos sãos meus ais mesquinhos,
Tanto pode a paixão que em mim suspira,
Que se esquecem das mães os cordeirinhos:

O vento não se mexe, nem respira;
Deixam de namorar-se os passarinhos,
Para me ouvir chorar ao som da lira.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite feia;
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado:

Desfeito em furacões o vento irado,
Pelos ares zunindo a solta areia,
O pássaro noturno, que vozeia
No agoureiro cipreste além pousado;

Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme, e saudade, a que ando, afeito:

Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Nos torpes laços de beleza impura
Jazem meu coração, meu pensamento;
Esforçada ao servil abatimento
Contra os sentidos a razão murmura:

Eu, que outrora incensava a formosura,
Das que enfeita o pudor gentil, e isento,
A já corrupta ideia hoje apascento
Nos falsos mimos de venal ternura:

Se a vejo repartir prazer, e agrado
Àquele, a este, co’a fatal certeza
Fermenta o vil desejo envenenado;

Céus! Quem me reduziu a tal baixeza?
Quem tão cego me pôs? ...Ah! Foi meu fado,
Que tanto não podia a Natureza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Perdi tudo (ai de mim!) perdi Marfida,
Marfida, a glória minha, a minha amada;
Tenra flor, a esperança malograda
Do mimoso matiz caiu despida:

Pede meu coração mortal ferida,
Só aos ditosos a existência agrada;
Vida entre angústias equivale ao nada,
No risonho prazer consiste a vida.

Eia, amante infeliz, teu fim procura!
Fantástico terror não te reporte,
Nos túmulos não reina a formosura.

Diga triste letreiro a minha sorte;
Dai-me piedosa sombra à sepultura
Teixas, ciprestes, árvores da morte.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

terça-feira, 17 de maio de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 19

 

Jaqueline Machado (A angústia de não ter com quem falar)

Na Bíblia, que é o livro mais vendido do mundo, diz Tiago no importante versículo: 1: 19 – 20: Meus amados irmãos, tenham isto em mente: Sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se, pois a ira do homem não produz a justiça de Deus.

A palavra é um importante dom pertencente ao verbo. Sendo ela também, sem sombra de dúvida, a mais eficaz vacina na prevenção das doenças que afligem a humanidade. Com as bênçãos da palavra bendita, vidas ressuscitam. E através da palavra desabafada, sentimentos destroçados são capazes de se regenerar.

No entanto, poucos possuem tempo para curar as feridas de alguém através de sábios argumentos. Raríssimos são aqueles que, de bom grado, emprestam seus ouvidos para ouvir os desabafos das pessoas que sofrem.

No conto do escritor russo, Anton Tchekhov, o protagonista Iona Potapov, um cocheiro solitário que acabara de perder o filho, tentava desabafar a sua profunda angústia com seus passageiros. Eles, no entanto, confinados em seus próprios interesses, não permitiam que o pobre Iona esboçasse muito além dessas palavras: “MEU FILHO MORREU”. Os passageiros ouviam, sucintamente respondiam ao seu lamento e logo trocavam de assunto ou se calavam.  

Certo dia, sentindo–se cansado, o cocheiro vai para casa antes do entardecer. Fazia muito frio. Acendeu a lenha no fogão, vestiu-se e voltou para a cocheira, onde estava o seu cavalo. Iona pensa sobre a aveia, o feno, o tempo… Estando só, não pode pensar no filho… Não pode falar sobre ele com ninguém, e pensar nele sozinho, desenhar mentalmente sua imagem, dava–lhe um medo quase insuportável… O seu pesar era imenso e dava-lhe a impressão de que, se o seu peito estourasse e fluísse para fora aquela angústia, seria inteiramente inundado com sua tristeza.

Está mastigando? – pergunta Iona ao cavalo, vendo seus olhos brilhantes.– Ora, mastiga, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno… Sim… Já estou velho para trabalhar de cocheiro… O filho é que devia trabalhar, não eu… Era um cocheiro de verdade… Só faltou viver mais… Iona permanece algum tempo em silêncio e prossegue: – Assim é, irmã, minha eguinha… Não existe mais Kuzmá Iônitch… Foi-se para o outro mundo… Morreu assim, por nada…

Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é seu filho. E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo… Dá pena, não é verdade? O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Iona anima-se e já que apenas o animal tinha ouvidos para lhe ouvir, conta-lhe tudo…

Caros irmãos, vejam só que triste realidade.

E como irmãos que somos, por que não nos escutamos afim de obtermos uma irmandade mais solidária e feliz?... Chega de darmos ênfase ao egoísmo. É chegada a hora de despertarmos em nós, o dom da empatia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXX

Amar sempre e sem medida,
não tem contraindicação,
traz bom resultado à vida;
para a mente e o coração.
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A mentira e a falsidade
são filhas do mesmo clã,
gêmeas da infidelidade
sentadas num só divã.
= = = = = = = = = = =

A terra clama socorro,
hoje, tão depauperada,
o perigo está no morro,
que desliza na enxurrada.
= = = = = = = = = = =

A vida anda tão depressa,
lentamente a morte vem,
se a vida da terra cessa
acaba a do homem também.
= = = = = = = = = = =

Como pode alguém dizer,
ter visto um fogo apagado?
O que viu, sim, pode ser
cinzas como resultado...
= = = = = = = = = = =

Disse a rosa, com ciúme,
ao jasmim, seu concorrente,
muito admiro o teu perfume
mas minha cor é envolvente.
= = = = = = = = = = =

Jamais, fira a natureza,
com gestos de atrocidade,
nem subtraia o pão da mesa
na faminta humanidade.
= = = = = = = = = = =

Nada que o tudo não possa
na luta, mais luz prover,
reverter a minha em nossa,
a esperança de vencer.
= = = = = = = = = = =

Não denigres teu porvir
com as manchas do passado,
se optares por denegrir,
teu ser acaba manchado.
= = = = = = = = = = =

Não meça a fertilidade
do solo, pela aparência,
porque a produtividade
se oculta na sua essência.
= = = = = = = = = = =

Não sou rei, mas um guerreiro,
e à paz eu tenho lutado.
Quero, além de brasileiro,
ser gaúcho respeitado.
= = = = = = = = = = =

Não tem presente maior
que um projeto alentador,
nem na vida algo melhor
que um futuro promissor.
= = = = = = = = = = =

Navegador não se abata
se a rota apresentar curvas,
bem melhor, lenta e pacata,
que afundar em águas turvas.
= = = = = = = = = = =

Ninguém se abala à destreza
com que a morte se avizinha,
mesmo assim, diz com clareza:
antes do outro do que a minha!
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No silêncio dos fonemas
subtraídos do alfabeto,
construímos os poemas
com carinho e muito afeto.
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No universo da família,
cada estrela tem seu brilho
e aquela que menos brilha
é a que sempre mais partilha.
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Nunca afirmes: amo alguém,
se nem amas a quem vês...
Como ousas amar a quem,
que jamais viste uma vez?
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Nunca enterres teu talento
com medo de ser roubado,
na clausura, muito lento,
acaba sendo enterrado.
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O tempo promove a cura,
da ferida e nos questiona;
se é remédio ou sepultura,
que à busca nos impulsiona.
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Pra que serve o elevador
se trancado permanece?
Tal um túmulo em terror,
não sobe, tampouco desce…
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Quem navega apenas no ouro,
pode submergir nas mágoas,
tão longe do ancoradouro
aonde serenam as águas.
= = = = = = = = = = =

Sempre que testemunhares
segue à luz da temperança,
para alguém não condenares
com as armas da vingança.
= = = = = = = = = = =

Se os espinhos, nas estradas,
falando fossem sinceros,
deixavam mentes frustradas
por serem demais austeros.
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Temos tudo e nada somos,
porque viver, mal sabemos.
Nem lembramos o que fomos!
Sonhamos, mas não vivemos.
= = = = = = = = = = =

Tens mil razões para optares
e obteres tudo o que queres,
mas se não perseverares,
cai por terra o que fizeres!
= = = = = = = = = = =

Viva a vida com decência,
afinco, esmero e denodo;
sem virtudes, a existência
mergulha num mar de lodo.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (O Pentelho)

O SUJEITO PEGA O TELEFONE E ENQUANTO LIGA PARA O AMIGO vai se desfazendo dos sapatos e das meias pelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala: “Alô? Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos.Acabei de chegar em casa, vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei a campainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretária não veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala ao lado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, me vendo impaciente, andando para lá e para cá, e àquela hora da manhã, ofereceu água gelada e um cafezinho que fez na hora e, depois, caneta e papel para que eu pudesse, antes de virar as costas, lhe escrever um bilhete e enfiar por baixo da porta. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nome que você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrarias da cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de Julia Petit”.

“Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. E ela nunca esteve na lista dos mais vendidos. Liguei para sua casa e consegui falar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmente Julia Petit, com o t mudo no final. Argumentei que na pressa, talvez você tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida. Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, de uva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a dea mendoim. Parti, então, para o Petit. Não seria, Petite, com e, ou Petitte, com dois tes? Consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligações seguintes, a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pela alteração da voz, que meu papo se tornara chato e incômodo. Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e o atropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou me mandando tomar naquele lugar. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiquei como um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadas na garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguém interrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto, feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador na mão. Pior é o tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Só por vingança disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia de cobras e lagartos no escutador de novelas daquela patricinha de Beverly Hills. Perdão, meu amigo, não por raiva, só para que ela aprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeira tentativa, a porcaria deu ocupado e o “tu, tu, tu, tu, tu, tu” se fez ouvir, logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por mais umas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cinco minutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma, duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a porcaria, insistente: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Com certeza, sua filha está de marcação cerrada. Não é possível ficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser, também, que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido. Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolê. Tomei um café, comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei, meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teve uma que resolveu me alugar pra valer. Chato quando alguém lhe torra as medidas, não é verdade? Tentarei reproduzir o diálogo que tivemos”:

- Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem de Julia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual o nome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de autoajuda? Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas? O senhor não levaria, em substituição, o último de Paulo Coelho, ou o mais recente de Lya Luft?

- Obrigado.

- Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “Por Que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.

- E por quê?

- Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom. Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.

- Massa?

- É. Legal!...

- Minha filha, você já leu Kafka?

- Não, senhor.

- E Roberto Shinyashiki?

- Nunca ouvi falar.

- Nem eu. Prefiro Fernando Sabino.

“Esse foi, Luiz, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e a vendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade, carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar e confirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau para cavaco, uma gracinha, a guria. Roldana, o nome da teteia. Lembra a Margarete. Já sei, você vai me questionar: quem é Margarete? Deixa refrescar sua memória. Margarete, aquela do cabelo vermelho, bem curtinho, que você se engraçou, na lanchonete e, depois – me escangalho de rir quando penso nisso – eu flagrei vocês dois, mais tarde, lá na quitinete, na hora exata do “bembom”.

“Para terminar, deixei um lembrete debaixo da porta do seu escritório com os dizeres: “Ligue-me, ligue-me, ligue-me, pelo amor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Carlos”. Em tempo: peça desculpas a Senhorita Bethânia. Na pressa, na correria, acabei trazendo a caneta dela.”
***

Quando Luiz chega em casa, a secretária eletrônica sinaliza que há ligações não atendidas. Aperta o play. Quarenta. Todas, sem exceção, do Carlos. Retorna:

“Carlos, sou eu, Luiz, atenda essa droga de telefone. Caramba! Eu sei que está aí. Recebi seus recados. “Trocentos”, ao todo. Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete, pi, pi, pi, pi, pi, pi (nessa hora, a secretária eletrônica de Carlos começa a apresentar problemas. Luiz encontra dificuldade para gravar a resposta aos insistentes apelos do amigo)... Julia Petit, pi, pi, pi, pi, pi, pi é Ju... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia. Escreve-se, J, u, l, i, a , pi, pi, pi, pi, pi, pi, - e Petit se soletra pi, pi, pi, pi, pi, pi... P, E, T, I, T. O t é mudo, o t é mudo, no final, pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia, pi, pi, pi, pi, pi, pi, Petit... Seu babaca, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é pro... Pi, du, pi, pi, to, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi... Mu, pi, pi, pi, pi, pi, si,cal, pi, pi, pi, pi, pi, pi ... Não,pi, pi, pi, pi, pi, pi, é, pi, pi, pi, pi, pi, pi, es, pi, pi, pi, pi, pi, pi, cri, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra. Ela... Pi, pi, pi, pi, pi, pi, está, pi, pi, pi, pi, pi, pi, na lis, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, mais, pi, pi, pi, pi, pi, pi, bem pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi... Não, pi, dos pi, mais, pi, bem, pi, vendi, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos... Pi, pi, pi, pi, pi. Eu disse... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos pi, pi, pi, pi, pi, pi, Não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vendidos. E, por fa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, me, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, re, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tan, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, o pi, pi, pi, pi, pi, pi, sa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, co. Pi, pi, pi, pi, pi, pi. , pi, pi, pi, pi, pi, pi, para, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, o, pi, pi, pi, pi, pi, pi, in, pi, pi, pi, pi, pi, pi, fer... no... Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. São Paulo: Sucesso, 2009.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 5

Montagem com imagens obtidas no facebook da trovadora
 

Rubem Braga (O homem rouco)

Deus sabe o que andei falando por aí. Coisa boa não há de ter sido, pois Ele me tirou a voz.

Ela sempre foi embrulhada e confusa; a mim próprio muitas vezes parecia monótona e enjoada, que dirá aos outros. Mas era, afinal de contas, a voz de uma pessoa, e bem ou mal eu podia dizer ao mendigo “não tenho trocado”, ao homem parado na esquina, “o senhor pode ter a gentileza de me dar fogo”, e ao garçom, “por favor, mais um pedaço de gelo”. Dizia certamente outras coisas e numa delas me perdi. Fiquei vários dias afônico e, hoje, me comunico e lamento com uma voz de túnel, roufenha, intermitente e infame.

Ora, naturalmente que me trato. Deram-me várias pastilhas horríveis e um especialista me receitou uma injeção e uma inalação que cheguei a fazer uma vez e me aborreceu pelo seu desagradável jeito de vício secreto ou de rito religioso oriental. Uma leitora me receitou pelo telefone chá de pitangueira, laranja da terra e eucalipto, tudo isso agravado por um dente de alho bem moído.

Não farei essas coisas. Vejo-me à noite, no recolhimento do lar, tomando esse chá dos tempos coloniais e me sinto velho e triste de cortar o coração.

Alguém me disse que se trata de rouquidão nervosa, o que me deixa desconfiado de mim mesmo. Terei muitos complexos? Precisamente quantos? Feios, graves? Por que me atacaram a garganta e não, por exemplo, o joelho? Ou quem sabe que havia alguma coisa que eu queria dizer e não podia, não devia, não ousava, estrangulado de timidez, e então engoli a voz?

Quando era criança, agora me lembro, passei um ano gago porque fui com outros moleques gritar “Capitão Banana” diante da tenda de um velho que vendia frutas, e ele estava escondido no escuro e me varejou um balde d’água em cima. Naturalmente devo contar essa história a um psicanalista. Mas então ele começará a me escarafunchar a pobre alma e isso não vale a pena. Respeitemos a morna paz desse brejo noturno onde fermentam coisas estranhas e se movem monstros informes e insensatos.

Afinal posso aguentar isso, sou um rapaz direito, bem comportado, talvez até bom partido para uma senhorita da classe média que não faça questão da beleza física, mas sim da moral, modéstia à parte.

O remédio é falar menos e escrever mais, antes que os complexos me paralisem os dedos, pobres dedos, triste mão que... Mas, francamente, página de jornal não é lugar para a gente falar essas coisas.

Eu vos direi, senhora, apenas, que a voz é feia e roufenha, mas o sentimento é límpido, é cristalino, puro – e vosso.

Fonte:
Rubem Braga. O homem rouco. 1949.

Solange Colombara (Poemetos)

Talvez a velha saudade
seja apenas um embalo
do vento olhando a lua.
O rascunhar de um poema
nas estrelas, o sorriso
desenhado, o pranto solto,
quem sabe o doce bailar
das águas idolatrando
o amor, cálido, sereno,
na sua poesia nua.
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Sou uma leve brisa,
o beijo do dia.
Uma lágrima na noite
fria, solidão sombria.
Sou doce perfume,
suave sangria.
Gargalhada aprisionada
ou veneno, sua alforria.
Sou a rosa do tango,
drama na alegria.
Rodopiando na valsa
sorrio, faço poesia.
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Nas folhas do tempo
ouço o som do vento.
Às vezes lamento,
outras, só fragmento.
As folhas farfalham,
no vento gargalham.
Pedaços se espalham
no tempo, embaralham.
As folhas se agitam
no tempo, levitam
os restos, hesitam.
Os ventos, excitam.
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Um olhar pode eternizar um momento
mas uma noite não dura para sempre.
Um sorriso às vezes é aconchego, ou
pode ser um retrospecto, um lamento.
Mas na noite... O sonho torna-se cura.
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As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no pôr do sol.
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A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
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Ouvia-se os respingos
caindo inertes, sem emoção.
Não era chuva, orvalho,
tampouco pranto.
Somente borrifadas...
Talvez poesia,
talvez um nada no chão.
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Expresso com poesia
as emoções ilusórias
alvoroçadas no vento,
acolhidas no baú do tempo.
Em meus versos sou rimas,
a brisa girando o catavento.
Demonstro na poesia, a flor
do beija-flor em sutil alento.

Fonte:
Solange Colombara. Caramanchão de Palavras. SP: Ed. do Autor, 2021.