sábado, 10 de dezembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 25 - Harley Stocchero (Almirante Tamandaré/PR)


Obs:
Todas as pinturas do Paraná em Trovas Collection são de pintores paranaenses, que retratam imagens do estado paranaense.

João Costa (Falando de Amor)


Num mar de pura magia
o umbral do tempo transponho,
rumo ao reino da utopia,
na caravela do sonho.

Um gosto de fim de festa,
tristeza, desilusão
É tudo, enfim, que nos resta
depois que os sonhos se vão...

Em meu delírio, cansado
de tanto em vão te esperar,
a saudade canta um fado
e faz minha alma chorar.

Peço-te perdão, querida ,
pela audácia de querer-te,
de sonhar-te em minha vida,
de imaginar merecer-te.

Nossas emoções primeiras,
sob o efeito da paixão,
são fortes, mas passageiras,
como chuvas de verão.

Viva intensamente quem
tem um sonho a ser vivido
que a saudade sempre vem
atrás de um sonho perdido…

Não me indagues por que te amo.
Não saberia dizer.
Eu te amo só porque te amo.
Que outra razão pode haver?

A vida é triste, sombria,
nesta minha solidão.
Sem a tua companhia,
é inverno em pleno verão.

A noite é perfeita e bela,
a lua encanta e seduz,
tecendo em nossa janela
uma cortina de luz.

Poesia, vida, beleza,
bem-aventurança, dor,
felicidade, tristeza…
É isso e bem mais o amor.

Jurei que não voltaria,
ao partir, e assim o fiz.
Lamento essa teimosia
que só me fez infeliz…

De príncipe me chamava
e a gente era tão feliz.
E quando não mais se amava,
nem como escravo me quis.

Tu me prendes com abraços,
torturas com tal paixão,
que, sendo algemas teus braços,
bendita seja a prisão!

Nem ouro nem o fulgor
dos diamantes trago, e sim,
no peito, a rosa do amor;
nas mãos, carinhos sem fim.

Passa o tempo… Passa a vida…
E eu não consigo esquecer-te.
Não me perdôo, querida,
pelo crime de perder-te.

É noite… Insone, penando,
nesta triste solidão,
ouço o silêncio gritando
dentro do meu coração.

Na despedida, confiei
na promessa que fizeste:
– Espera-me, eu voltarei!
Mas quando… não me disseste.

Dos bons acontecimentos
de minha vida, bendigo
aqueles doces mementos
que pude viver contigo.

Desiludido da vida,
do amor – em total entrega -,
sou folha no chão caída
que nem o vento carrega.

Desfeito o sonho mais puro,
longe de quem tanto quis,
para não sofrer, procuro
esquecer que fui feliz…

Não ambiciono o Eldorado.
Meu mundo, embora singelo,
contigo sempre ao meu lado,
é dos mundos o mais belo.

Relembramdo tempos idos,
abro a agenda da memória
e encontro sonhos perdidos,
pedaços da nossa história.

Quero um relógio, querida,
cujo mágico processo,
atrase a tua partida
e abrevie o teu regresso.

– Eu volto! – me consolava.
Mas, em profunda agonia,
meu coração pressagiava
que ela jamais voltaria…

Somos metades perdidas
e eu espero te encontrar.
E esperarei quantas vidas
ainda tiver que esperar…

Cansado de tanto errar,
nessa procura infeliz,
já nem sei se ao te encontrar
eu me sentirei feliz.

Que te amo ao mundo proclamo.
Duvidas, mas eu insisto.
Se é mentira, amor, que eu te amo,
é mentira que eu existo.

O tempo passa…Demoras…
E eu aqui a te esperar.
Meu amor, quantas auroras,
nessa espera, vi chegar!…

Voltarás…Que importa quando?
Eu só sei que voltarás…
Estarei sempre esperando
o dia em que tu virás.

Por esta senda de espinhos,
vou sufocando meus ais,
pois eu sou, sem teus carinhos,
o mais triste dos mortais.

Quis-te para sempre, amor,
mas me deste a solidão.
Hoje és saudade e esta dor
é eterna em meu coração…

Quando as almas são unidas
pelo amor, completamente,
deixam de ser duas vidas
para ser uma somente.

A noite é toda poesia.
Lua e estrelas a brilhar…
Mas, sem tua companhia
de que me serve o luar?…

De exuberância suprema,
que nos encanta e extasia,
cada alvorada é um poema
que Deus compõe todo dia.

Tua presença é poesia,
tudo de bom para mim;
teu sorriso pressagia
felicidade sem fim…

Os meus dias são tristonhos.
Tu não vens e o tempo avança.
Nem mesmo no mar dos sonhos
vislumbro a nau da esperança.

Quando eu me for desta vida,
irei a meu Deus pedir
que ele me faça, querida,
reencontrar-te no porvir.

Descobri, ao te perder,
que, sem direito a perdão,
fui condenado a viver
algemado à solidão.

De saudade angustiado,
faço versos soluçando
e cada trova é um recado
por teu regresso implorando.

Mais triste e pior castigo
do que o meu não pode haver:
- Não pode viver contigo,
sem ti não saber viver...

Nós dois... A felicidade...
Muito amor... Sonhos... Depois,
a distância e a saudade
como abismo entre nós dois...

Que importa o tempo passado,
se é tão grata a descoberta?
- Ao ver-te ainda ao meu lado,
sei que fiz a escolha certa!

Dei a ti meu coração,
muito te amei e te quis.
Se tudo foi ilusão,
não importa, eu fui feliz!...

Os meus versos se calaram,
à saudade sucumbi,
minhas lágrimas secaram
de tanto chorar por ti...

Ao partires, me disseste:
- Espera-me, eu voltarei!
O tempo passou... Não vieste...
E o pior: eu te esperei.

Recomeça a nostalgia
quando o dia vai morrendo.
Não suporto esta agonia.
Volta, amor, estou sofrendo!

O tempo que tudo apaga,
promovendo o esquecimento,
em vez de apagar afaga
teu nome em meu pensamento.

Que em tua ausência dispare,
eu apelo ao tempo; e quando
estivermos juntos, pare,
o momento eternizando.

Fonte:
João Costa. Meu Caderno de Trovas. Saquarema, RJ: Edição Artesanal, 2011.

Ribeiro Braz (O Sapo e a Borboleta)


Esta é a história de Priscila Buterfly que nasceu e viveu na floresta de Florzi junto ao mar e ao lago verde-musgo.

Não, ela não era bonita quando nasceu. Ela era muito feia. O seu cabelo quebra pente era amarelo e marrom misturado e seus dentes eram muito dentro da boca, fazendo parecer rindo todo tempo. Raposas, coelhos e jacarés tinham medo dela.

Ela vivia pela floresta colhendo lenha para o fogão da mãe. Nunca ninguém brincava com ela, porque ela não tinha tempo. Quando não apanhava lenha, então carregava água ou então cuidava dos irmãos menores.

Não podia ir até o mar, onde a floresta terminava, porque os meninos atiravam pedras nela, então corria para dentro da floresta e se escondia.

Aos treze anos levou um grande susto. Quando olhou para dentro do lago verde-musgo, ela viu um rosto refletido na água. Descobriu que o rosto era o seu. Então ela percebeu que os meninos tinham razão para enxotá-la. E ela foi reclamar com a sua mãe e sua mãe levou-a até o quintal. Olhando bastante para as folhas conseguiu achar uma lagarta. A mãe explicou que aquela lagarta horrível ao sair do casulo seria então uma linda borboleta. E disse para Priscila que ela ficaria tão linda quanto uma borboleta. “Nós podemos ser feios, mas depois ficamos lindos”. Priscila sorriu e se sentiu feliz esperando que o tempo ao passar a fizesse bonita como as outras meninas. Mas ela não olhava mais para dentro do lago verde musgo.

Um dia ao apanhar lenha na floresta, viu um menino olhando para o lago verde-musgo. Ela quis saber dele, o por quê de olhar tanto para aquele lago. Ao chegar perto do menino, descobriu que ele era um dos quatro que sempre lhe jogava pedras. Então ela correu e se escondeu atrás das árvores. Quando o menino escutou o barulho de folhas se movendo, olhou para trás e conseguiu ver parte do vestido roxo listrado de branco de Priscila. Então ela notou que ele não olhava mais para o lago. Ele olhava sempre para o local em que ela estava escondida. Então não quis mais sair de trás da árvore, porque ele não mais desviava os olhos dali. Mas ela viu que ele estava só e por isso perdeu o medo. Os outros meninos malvados não estavam ali. Mesmo assim ela achou melhor não sair dali. Mas lembrou que a mãe a esperava com o feixe de lenhas para fazer a janta. Mesmo assim, não conseguia sair dali. "E se os meninos malvados aparecerem?" – pensava ela.

- Priscila! - gritou o menino.

Ela levou um grande susto porque nunca havia ouvido alguém gritar seu nome, exceto sua mãe. O pai ela não conheceu, havia sido morto por um leão.

- Priscila Buterfly! - gritou mais uma vez o menino.

Agora o susto foi maior, porque nem mesmo sua mãe gritava seu nome assim. Ele estava agora em pé e de costas para o lago. E ela resolveu aparecer. Gritou:

- O que você quer?

Ele levou tempo para responder. Quase um minuto para responder.

- Preciso falar com você!

Ela saiu lentamente por detrás das árvores. Neste momento ela leva outro susto. Uma borboleta azul pousa rapidamente em seu nariz. Quando ela levanta as mãos, a borboleta voa e some no meio das árvores. Ela, Priscila, anda bem devagar em direção ao menino, mas pára a cinco metros de distância. E diz:

- O que você quer?

- O que você acha de mim?

– Um sapo!!!

Ele abaixa a cabeça tristemente.

- Eu disse um sapo! – grita ela, - tem um atrás de você!

Ele pula para o lado. O sapo se assusta e pula no lago. Ele levanta a cabeça e diz:

– Pensei que o sapo era eu...

- E o que você acha de mim? - pergunta Priscila.

– Muito linda! - diz ele.

– Mentira! Eu não sou linda!- Retruca Priscila.

Ele aponta para a borboleta azul voando atrás dela.

- Tenho de ir, minha mãe me espera com a lenha! – diz ela.

Ele se abaixa para apanhar a lenha e se oferece para levar. Carrega a lenha no ombro pela trilha da floresta. Enquanto andam pela floresta, ele a convida.

–Vamos ao mar?

– Sou muito nova para amar!

– Eu disse vamos ao mar!

- Ela entende e diz – Minha mãe é quem sabe!

O dia amanheceu lindo com o sol vermelho por trás das serras e um céu cor de anil, azul bem escuro. Algumas nuvens bem brancas espalhadas pelo céu azul. Todas as crianças, seus irmãos pequenos estavam prontos para o passeio. Até a mãe de Priscila também queria ver o mar. Finalmente ela iria esquecer um pouco o fogão de lenha e a choupana no meio da floresta. Quando chegaram finalmente ao fim da trilha, com o final da trilha surge o mar.

As crianças pequenas ficaram encantadas com o mar e uma delas correu em direção a ele. Outra ficou agarrada a saia da mãe rindo muito de alegria. E o menorzinho chorou, mas era um choro de alegria. Porque enquanto chorava também sorria. A mãe de Priscila viu quando os quatro meninos apareceram e disse.

– Lá vem os quatro meninos malvados!

Priscila responde:

– Não mãe, agora só três são malvados, o mais lindo é muito bom!

Os quatros chegaram devagar... Quando um deles se aproxima de Priscila Baterfly, então a olha por um minuto e dá um sorriso e ela também sorri para ele. Os outros três ficam de longe observando sem nada entender. Não quiseram mais a amizade daquele que se aproximou de Priscila.

Por algum tempo ficaram ali próximo ao mar mas depois foram embora. Priscila correu na beira do mar e também fez um lanche junto dos seus irmãos e do novo amigo. Ao jogar para ela uma bola feita com pano e folhas ele lhe diz:

- Ontem você não me chamou de sapo, certo?

– Mas se eu te der um beijo você se torna um príncipe! E... daquele dia em diante, realmente ela o viu como um príncipe. Mas agora ela se via sempre no lago e no mar e, quando se via no espelho da água, se via cada vez mais linda e agora tinha a companhia de raposas, coelhos e jacarés.

Com quinze anos ela via o príncipe como um sapo novamente e vivia conversando com os três malvados que como raposas, coelhos e jacarés tinham a sua companhia.

Todos os meninos gostavam dela. Todas as meninas estiveram em sua festa. Cada um deles levou um presente para ela. Ela era odiada pelas meninas por ser a mais bonita da floresta.

O sapo já não aparecia por um bom tempo. Por pouco tempo ele foi um príncipe para ela. Mas ela preferiu a amizade de todos em vez do amor dele somente. Quando lembrava dele só lembrava do lago verde-musgo. Dos outros meninos malvados lembrava o mar de Florzi.

Esta foi a historia de Priscila Buterfly que nasceu e viveu na floresta de Florzi. Morreu com febre aos trinta anos numa casa abandonada. Seus irmãos não quiseram saber dela porque a consideravam ingrata.

Sua mãe havia sido morta por jacarés. Priscila Baterfly morreu muito feia e por isso os meninos malvados não quiseram vê-la mais.

Fonte:
http://www.quemtemsedevenha.com.br/sapo_e_a_borboleta.htm

Francisco Córdula (Poesias Avulsos)


TALVEZ UM DIA

Marca, que fica no destino, sem futuro
Obscuro murmúrio, do medo intacto
Tácito cálice de veneno mortífero
Esperando que mais sangue, seja derramado.

Marca, força reprimida, estopim do latifúndio
Vidas exauridas sem dor, nem prantos
Na carnificina que se tornou o campo
Quantas Margaridas serão necessárias?
Para acabar as sucessivas batalhas?

Marca, facultada, na ponta da navalha e nos tiros da doze.
Grilhões da covardia descambada
Quantos Chico Mendes, serão necessários?
Para dar um basta a estas Chacinas?

PEDAÇOS DE MIM

Quero chegar ao infinito!
Driblar os aflitos,
Tropeçar nos obstáculos
Cair, me levantar
E tentar tudo de novo.
Equilibrar-me como um trapezista
No picadeiro da vida.

Desfrutar da energia
Que sempre carrego comigo, em algum lugar de mim
Encontrar meu espaço no universo
Sempre sendo eclético
Para não definhar e morrer..

OS LADOS DA VIDA

Que elevem a mentira ao quadrado!
E deixem, a vida se tornar um teatro
Teatro mascarado e mentiroso em cada ato
Usando maquiagem exagerada e sem graça
Para uma platéia, com expectativa de gargalhada
Mas será uma comédia ou tragédia?

Nem o autor sabe, vai escrevendo de improviso
Um roteiro patético e cínico
Levando ao ódio e ao riso
Mas sempre na falsidade, sem medo
Ou receio de atropelar alguns atos
Nem receber nenhum ultimato
Que o faça parar, em seu triste espetáculo.

O que o encheria de orgulho?
As palmas ou as vaias?
Isto ninguém sabe.
Constatado apenas o mergulho no delírio
Onde a mentira se torna fato aceitável
E ainda que após, baixada a cortina.
Sem estrelato, ou brilho em cada ato
A realidade se mistura ao teatro
Fazendo de fatos, um grande espetáculo
Sem separação do teatro ou do real
Tudo surrealista, entre sonho e abismo.

Mas num repente cai o pano
Mostrando a nua e crua realidade
Sem volta para lugar algum
Com apenas um caminho a ser seguido
Sempre em frente, sem volta, pra sempre
Entre a loucura e a morte.

O AVESSO

Por trás de cada gesto
Se apresenta uma intenção
Gesto que pode ser leve ou brusco.

Por trás de cada intenção
Existe um dilema
Intenção que pode ser boa ou má.

Por trás de todo dilema
Existe uma sombra
Dilema que pode ter muitas faces.

Por trás de toda sombra
Existe possibilidade de dor
Sombra produzida por pequenos fragmentos.

Por trás de toda dor
Existe a esperança
Dor que se dilui com o tempo.

Por trás de toda esperança
Existe uma vida
Esperança, que nunca deve se esvair.

Por trás de toda vida
Existe um espírito.
Vida, significado maior de todo ser!

NOUTROS TEMPOS

Horizonte revelado, elevando a existência
Do ser, que deplorável, sobreviveu a sua sina
No inexorável final dos tempos
Sem mais lembrar, a profundidade da vida.

Quais não serão as descobertas de tal época
Ou revelações, alarmantes no futuro
Num furo de reportagem de um matutino
Levando o desespero, ao que resta do mundo.

O eclipse ocular, a cegar visões, menos realistas
E as previsões, assim se confirmando
Como num filme, velho e mofado
Passado em um projetor de igual teor e valor.

Restarão, filósofos e visionários
Num sofrimento vislumbrando, o que restou do mundo
Como se tudo acabasse na véspera
Deixando a surpresa e a perplexidade…

CÁLICE DE SANGUE

Entrando em transe a cada instante
Rompante de loucura assola sua alma
Transloucada, livre e solta em sua jornada.
Sem noção do estrago permanente (evidente)
Sente a demência como sua companhia
Já não se importa em ser mais que indecente
Pouco se recorda de sua antiga vida
Se entregando aos delírios viciantes normalmente.

Em seu corpo jovem padece, esmorece.
O pouco da dignidade que ainda lhe resta
Com a capa de ódio que agora se reveste
Investe apenas em sua perversão (se ilude)
E não se envergonha em ser corrompida
E prostituida sem qualquer barganha
Morando na rua ou em qualquer beco
De sentimento “seco”, não se emociona.

Fantoche, fantasma ou zumbi humano.
Farrapo em trapos sem qualquer barreira
Vivendo a beira de um precipício (vicio)
Consumindo, cheirando a sua maneira.
Sem chances de albergue até porque negue
Ou qualquer suplicio indicio de final inglório
Sem noção, tácito “acido” que lhe consome.
Cambaleando e se arrastando para seu velório.

ROTA DO ADEUS

Seguindo o nominado nas placas percorridas
Emplacando uma viagem terrestre solitária
Destino ignorado solo a ser seguido
Instinto do que a vida ainda lhe prepara.

Fatos não vividos e que serão lembrados
Por certo repassado cada sentido em vida
Eufórica alegria de momentos aguardados
Castrada com a depressão atroz em outros dias.

Bom seria se tudo fosse mais afável
Retórica que se esgota e não faz sentido,
Somente assim justificaria o fato, ato.
De ser a vida tão trágica como um tango
Ou tão sofrida como um fado vai saber!

Mas seria de tudo um pouco validado
Se tivesse de fato algo de sensitivo no destino
Ao menos uma chegada
Talvez menos amarga
Embalada de certo alivio momentâneo
Esboçado em um ultimo suspiro titânico
Pra tudo terminar em cinzas
Numa quarta feira de carnaval.

MOSAICO

Um dia,
Somente talvez um dia
Viverei novamente aquela alegria
Que conhecestes comigo
Em um passado recente.

Releve cada momento infeliz
Afinal, muitas vezes por um triz, fomos felizes.
Revivamos aquele matiz de lampejos
E tentaremos num sacolejo
Colocarmos os pingos nos is.

Tudo muito natural
Nada mais do que normal
Em se tratando de nós e nossos nós
Mesmo tentando outra vida
Continuamos “palafitas”
Em nossos sonhos ao largo
Na completa rabeira desta estreita vivencia.

Mas ainda há com que se encante
Nem que seja num rompante
De um otimismo desigual
Ou atitude irrefletida, te colocando.
Em outra vida, não seria nada mal!

Temos ainda outra opção
De enganarmos os infortúnios
E quem sabe a lua em saturno
Poderá nos ajudar
E numa atitude surpreendente
Muito menos exigentes
Voltaremos a nos encontrar.

AINDA TEMOS O AMANHÃ!

Que lenda se pode buscar
Em uma noite a divagar
Com bruma em poucas fadigas
Escutando-se umas cantigas
E exibindo visões dissonantes
E figuras arrogantes
Tentando nos hipnotizar.

Será inicio de pesadelo?
Em se buscando um segredo
Este bem escondido, não se pode achar
Estamos sofrendo um bocado
Sortilégio este danado, não faz o tempo passar
Esperança reduzida dos primeiros raios a brilhar.

Escuridão, paralelo de medo
Escola de bocejos tentando nos dominar
Será esta tortura o bastante?
Para nossa moral rastejante
Em tudo e todos nos derrotar?

Talvez quando tudo pareça perdido
Renasçamos por algum motivo
E voltemos à outra batalha travar.
Já sem medos ou fobias desgastantes
Enfrentando um novo dia radiante
Ai sim, poderemos festejar.

MADRIGAL, VINHO E PAIXÃO

As velas ainda não se apagaram
Duas taças de vinho caídas ao lado
Espalhando líquidos avermelhados
Encharcando o tapete da sala.

Dois corpos nele esparramados
Igualmente encharcados pelo vinho
Inertes enquanto o relógio na parede badala
Anunciando o avançar da madrugada.

Um madrigal no ambiente ainda entoado
Num ritmo para lá de funesto
Que decerto testemunhou tudo em volta
Acontecimento intimista onde restou o sossego.

Que depois de muitos goles, muitas taças viradas
Juras de amor, entremeadas de promessas
Beijos e carícias apaixonadas
Restando somente os dois seres em todo o universo.

E a cada minuto deste momento vivido
Intensamente, insanamente descortinado
A cada peça de roupa ao chão jogado
Novas promessas ambas as bocas murmuravam.

E num erudito de um erotismo exacerbado
Já não havia mais o que dizer ou prometer
Apenas a luxuria como forma de linguagem
E o bailado dos corpos sem palavras, só entrega.

E no “gran finale” a explosão em paixão momentânea
De tão eterna enquanto dure porque não?
E finalmente, após tudo isto o que resta?
Aqueles corpos abandonados, inertes, ao chão.

E O PALHAÇO DISSE ADEUS

Quando o palhaço pisou no picadeiro
para seu espetáculo derradeiro
uma torrente de emoções e visões
invadiu-lhe a mente e a alma.

Transportando-lhe na máquina do tempo
para outros momentos, vasculhados no passado
e o velho palhaço então emocionado
debruçou-se em lagrimas e fincou silencio.

Como que orando neste particular cenário
revivendo tantos espetáculos e movimentos
de uma trajetória que marcou seu tempo
e que a memória, insiste em homenagear.

E dentre tantas agruras relembradas
tantos arroubos e eletrizantes palhaçadas
veio a imagem de sua companheira,
sua paixão da vida inteira, trapezista faceira.

Que um dia ganhou seu coração,
e sua predileção em forma de amor
mas enfim, numa destas incompreensões da vida
ainda na flor da juventude, a trapezista partiu
chamada que foi por Deus para sua companhia.

Mas, a vida prosseguiu apesar da dor dilacerante
e o palhaço continuou naquele picadeiro
não como antes em seu intimo,
pois já não sentia-se completo.

Porém, o espetáculo não pode parar,
e como nas brumas de Brunel, revivendo o papel
que um dia Deus lhe concedeu:
o de palhaço de circo, continuou seu picadeiro.

Na tradução mais altruísta que um artista pode ter
tal qual um Chaplin em grandes filões
de “Grande Ditador” a Vagabundo
o palhaço reacendeu em segundos,
tantas lembranças, tão intensas,
tão verdadeiras e densas,
que o velho coração não resistiu.

E do centro daquele picadeiro
o palhaço embarcou inteiro
para seu espetáculo definitivo
o encontro com a sua trapezista,
seu amor, da vida inteira.

BAILE NEGRO

O Pierrô em um canto do salão cabisbaixo
Enquanto uma lagrima em sua face desliza
E o baile em câmera lenta passa avivado
Cada cena quadro a quadro repassa em sua vista
A Colombina deixando o salão acompanhada
Do Arlequim que a corteja, sua sombra incontinenti
E um clima sombrio contrasta com a alegre musica vigente

O Arlequim tentando soturno consolar a Colombina
Que desolada em um canto soluça amarga
E a cada investida o Arlequim se aguça exalta
Em sua ânsia obsessiva de conquistar a Colombina
E na insistência indecência que lhe embute e nutre
Num rompante de abutre um beijo ele lhe rouba
Desencadeando um abraço envolvendo-a pétrea

O Pierrô em meio à multidão tudo acompanha
E se determina em sua ira de vingança desforra
Surge uma adaga de onde ninguém alcança
E o Pierrô mais que depressa avança destemido
Com o sangue a explodir-lhe as veias artérias
Na intenção de golpear o Arlequim bandido
Avança golpeia em cheio num lance errante
A Colombina sua amada de toda a vida

A Colombina ensangüentada vai ao solo no salão
O Pierrô percebendo em sua mão a adaga indigna
Barbariza-se com o burburinho a sua volta comoção
E não nota o Arlequim em fuga covarde desatina
O Pierrô desaba em choro compulsivo inconformado
E repulsivo se joga no corpo de sua amada morta
O desamparo e o destempero nele são visíveis
E a adaga espetada no próprio peito sofrido
Invoca seu ultimo ato nesta vida sem sentido.

Fontes:
http://www.gargantadaserpente.com/toca/poetas/franciscocordula.php
http://www.novaordemdapoesia.com/2011_04_01_archive.html

Fernando Sabino (A Quem Tiver Carro)


O carro começou a ratear. Levei-o ao Pepe, ali na oficina da Rua Francisco Otaviano:

- Pepe, o carro está rateando.

Pepe piscou um olho:

- Entupimento na tubulação. Só pode ser.

Deixei o carro lá. À tarde fui buscar.

- Eu não dizia? Defeito na bomba de gasolina.

- Você dizia entupimento na tubulação.

- Botei um diafragma novo, mudei as válvulas. Estendeu-me a conta: de meter medo. Mas paguei.

- O carro não vai me deixar na mão? Tenho de fazer uma viagem.

- Pode ir sem susto, que agora está o fino.

Fui sem susto, a caminho de Itaquatiara. O fino! Nem bem chegara a Tribobó o carro engasgou, tossiu e morreu. Sorte a minha: mesmo em frente ao letreiro de "Gastão, o Eletricista".

- Que diafragma coisa nenhuma, quem lhe disse isso? - e Gastão, o Eletricista, um mulatão sorridente que consegui retirar das entranhas de um caminhão, ficou olhando o carro, mãos na cintura:

- O senhor mexeu na bomba à toa: é o dínamo que está esquentando.

Molhou uma flanela e envolveu o dínamo carinhosamente, como a uma criança.

- Se tornar a falhar é só molhar o bichinho. Vai por mim, que aqui no Tribobó quem entende disso sou eu.

Nem no Tribobó: o carro não pegava de jeito nenhum.

- Então esse dínamo já deu o prego, tem de trocar por outro. Não pega de jeito nenhum.

Para desmenti-lo, o motor subitamente começou a funcionar.

- Vai morrer de novo - augurou ele, - e voltou a aninhar-se no seu caminhão.

Resolvi regressar a Niterói. À entrada da cidade a profecia do capadócio se realizou: morreu de novo. Um chofer de caminhão me recomendou o mecânico Mundial, especialista em carburadores - ali mesmo, a dois quarteirões. Fui até lá e em pouco voltava seguido do Mundial, um velho compenetrado arrastando a perna e as idéias:

- Pelo jeito, é o carburador.

Olhou o interior do carro, deu uma risadinha irônica:

- É lógico que não pega! O dínamo está molhado!

Enxugou o dínamo com uma estopa: o carro pegou.

- Eu se fosse o senhor mandava fazer uma limpeza nesse carburador - insistiu ainda. - Vamos até lá na oficina...

Preferi ir embora. Perguntei quanto era.

- O senhor paga quanto quiser.

Já que eu insistia, houve por bem cobrar-me quanto ele quis.

Cheguei ao Rio e fui direto ao Haroldo, no Leblon, que me haviam dito ser um monstro no assunto:

- Carburador? - e o Haroldo não quis saber de conversa. - Isso é o platinado, vai por mim.

Cutucou o platinado com um ferrinho. Fui-me embora e o carro continuava se arrastando aos solavancos.

- O platinado está bom - me disse o Lourival, lá da Gávea. - Mas alguém andou mexendo aqui, o condensador não dá mais nada. O senhor tem de mudar o condensador.

Mudou o condensador e disse que não cobrava nada pelo serviço. Só pelo condensador.

No dia seguinte o carro se recusou a sair da garagem.

- Não é o diafragma, não é o carburador, não é o dínamo, não é o platinado, não é o condensador - queixei-me, deitando erudição na roda de amigos. Todos procuravam confortar-me:

- Então só pode ser a distribuição. O meu estava assim...

- Você já examinou a entrada de ar?

- Para mim você está com vela suja.

E recomendavam mecânicos de sua preferência:

- Tem uma oficina ali na rua Bambina, de um velho amigo meu.

- Lá em São Cristóvão, procure o Borracha, diga que fui eu que mandei.

- O Urubu, ali do “Posto 6”, dá logo um jeito nisso.

Não procurei o Urubu, nem o Borracha, nem o Zé Pára-Lama, nem o Caolho dos Arcos, nem o Manquitola do Rio Comprido, nem o Manivela de Voluntários, nem o Belzebu dos Infernos, esqueci o automóvel e fui dormir. Pela minha imaginação desfilava um lúgubre cortejo de tipos grotescos, sujos de graxa, caolhos, pernetas, manetas, desdentados, encardidos, toda essa fauna de mecânicos improvisados que já tive de enfrentar, cuja perícia obedece apenas à instigação da curiosidade ou à inspiração do palpite, que é a mais brasileira das instituições.

Mas pela manhã me lembrei de um curso que se anuncia aconselhando: "Aprenda a sujar as mãos para não limpar o bolso". Resolvi candidatar-me - e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça, quem tiver carro para guiar, entenda. Fui à garagem, abri o capô, e fiquei a olhar intensamente o motor do carro, fria e silenciosa esfinge que me desafiava com seu mistério: decifra-me, ou devoro-te. Havia um fio solto, coloquei-o no lugar que me pareceu adequado. Mas não podia ser tão simples...

Era. Desde então, o carro passou a funcionar perfeitamente…

Fonte:
SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. 2.ed. RJ: Bestbolso, 2008.

Ialmar Pio Schneider (Soneto da Libertação)


Quero o caminho da libertação
para seguir na vida mais confiante,
se alimentava mórbida ilusão
procurarei bani-la, doravante.

Preciso estar alerta a todo instante
e suportar a humana condição,
minha vigília deve ser constante
neste universo envolto em turbilhão...

Levo comigo a chama da esperança
e apesar dos percalços da existência
tenho fé, tenho amor, tenho confiança...

Não mais serei o náufrago perdido
pelos mares da angústia e da impaciência,
porque vencendo-me, terei vencido !

Fonte:
Soneto enviado pelo autor
Imagem do filme Um Sonho de Liberdade

Trova Ecológica 58 - Wagner Marques Lopes (MG)

Guerra Junqueiro: Contos para a Infância (A Canção da Cerejeira)


Disse Deus na Primavera: – Ponham a mesa às lagartas! E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões de folhas, fresquinhas e verdejantes.

A lagarta, que estava dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca, esfregou os olhos e pôs-se a comer tranquilamente as folhinhas tenras, dizendo:

– Não se pode a gente despegar delas. Quem é que me arranjou este banquete?

Então Deus disse de novo: – Ponham a mesa às abelhas! E a cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores delicadas e brancas.

E a abelha matinal, aos primeiros raios da aurora, pousou sobre elas, dizendo: –Vamos tomar o nosso café; e que chávenas tão lindas em que o deitaram.

Provou, exclamando: – Que deliciosa bebida! Não pouparam o açúcar!

No Verão disse Deus: – Ponham a mesa aos passarinhos! – E a cerejeira cobriu-se de mil frutos apetitosos e verme lhos.

– Ah! ah! exclamaram os passarinhos, foi em boa hora; temos apetite; e ganharemos forças para cantar uma nova canção.

No Outono disse Deus: – Levantai a mesa; já estão satisfeitos. – E o vento f rio das montanhas começou a soprar; e fez estremecer a árvore.

As folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o vento que as lançara ao chão erguia-as novamente, fazendo-as remoinhar.

Chegou Dezembro e disse Deus: – Cobri o resto! – E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja mortalha tudo dorme e descansa.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 421)


Uma Trova Nacional

Preguei uma ferradura
na porta do apartamento.
Escreveu-me a Prefeitura:
Prezado Senhor jumento...
AGNELO CAMPOS/SP–

Uma Trova Potiguar

Deus, quando criou Adão,
fez-lhe a mulher da costela.
Seria por isso, então,
que ele não vive sem ela?
–ROSA REGIS/RN–

Uma Trova Premiada


2004 - Nova Friburgo/RJ
Tema: OTÁRIO - 2º Lugar

- Vai um chopinho? É do bom!
- Eu só bebo destilado.
E o otário do garçom
pôs o copo do outro lado.
–SELMA PATTY SPINELLI/SP–

Uma Trova de Ademar

O meu primo se reveza,
entre o bar, orgia e fé...
Às sete ele está na reza,
e às oito no cabaré!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Na derradeira viagem
feita num dia qualquer,
a gente vira bagagem
da mala que ninguém quer.
–HILDEMAR DE ARAÚJO/BA–

Estrofe do Dia

No monte das “Oliveira”
A comadre da vizinha
Almoçava na cozinha,
Tomando chá de cidreira,
Balançando na cadeira,
Devagar, quase parando.
O mundo tá se acabando!
Meia noite, brilha o sol
Namoro de caracol.
A tarde tá começando!
–NEMÉSIO PRATA/CE–

Soneto do Dia

Comichão de Frente
–EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ–

A Escola evolui com tal agrado,
com as alas perfeitas na harmonia,
que a expectativa pelo resultado
encheu os componentes de alegria...

Na apuração, a nota de um jurado
tornou, porém, a situação sombria,
pois foi-lhe um ponto, sem razão, roubado,
e um sentimento de revolta ardia...

Grudada na TV, a Escola inteira
via, atenta, o “replay” e...de repente,
aparece no vídeo o Zé Coceira

que, agoniado pela comichão,
a desfilar na Comissão de Frente,
coçou “a coisa” em frente à Comissão!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte IV


6.

NA GUERRA

Prefeito despachou estafeta a cavalo com
uma carta ao Imperador.
A carta anunciava a invasão da cidade por
tropas paraguaias
E pedia recursos.
Dois meses depois o estafeta entregava a
carta ao Imperador.
Quando os recursos chegaram os paraguaios
não estavam mais.
Levaram quinze moças louçãs e um pouco
de mantimentos
Para comer na viagem.
Acho que comeram tudo.
(Corumbá é uma cidade cuja população
é bem mesclada de paraguaios.)

Poema narrativa e piada. Jocosamente o poema constrói, valendo-se da história de uma narrativa com forte carga de “ambigüidade”; centraliza-se o sentido no verbo “comer” - Também quer explicar a origem de tantos corumbaenses de ascendência paraguaia.

A leveza do poema une as partes e sustenta a evidente conclusão histórica!

7.

NO SÍTIO

A gente morava no Sítio, duas léguas da Capital.
Na estrada de terra que passava no Sítio só tinha
três vacas vadias, três cabras vadias, um
bandarra velho e a égua Floripa.
Meu avô queria passear na Capital.
Mandou encilhar Floripa. E saiu.
No meio da estrada o avô desamontou para verter
água. Verteu.
No intervalo Floripa virou a cara pro lado do
Sítio. E parou.
Meu avô amontou de novo e apertou a marcha.
Logo Floripa estacou em frente de nossa casa.
Meu avô entrou e disse: Gostei de ver a Capital.
Já tem até vaca na rua!
É fruto de progresso.
Floripa estava parece que rindo na porta.

De forma semelhante ao poema anterior, o poeta constrói o percurso deste a partir da ambigüidade da expressão “virar a cara” e determinar o fecho do poema conforme às circunstâncias da viagem do avô que a tornaram meio histriônica.

Talvez outra expressão que alicerça o sentido hílare do poema surge na afirmação do avô:

-“Gostei de ver a capital!”. Essa circunstância tem o seu valor correlacionado à cultura rural do Pantanal em tempo de fundações das fazendas. Época em que predominando uma cultura rural, “ver a capital!” serviria para confrontar e suscitar intercâmbio de perspectivas. O poema conota essas perspectivas culturais.

8.

OS DOIS

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
E fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
Frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Este poema, em tom jocoso, descreve ou apresenta como o autor se vê.

No confronto consigo mesmo, ser poeta aponta duas vertentes e tenta explicitar a constituição de cada uma. Apresenta suas origens paternas e suas origens poéticas interligadas indistintamente em seu ser, em sua pessoa. Pai e mãe lhe deram a vida humana; talvez Paul Valéry lhe tenha dado o rumo da construção de seu ser poeta: “uma natureza que pensa por imagens”.

O filho de João e de Alice se vê como pessoa qualquer. De roupa e chapéu e vaidades. Ao passo que descendente de Paul Valéry ou das imagens, se vê cheio de letras e palavras. Ambos têm em comum uma propriedade que não se vê mas confere qualidade e postura, ambos estão cheios de vaidades.

Esse elo entre os dois segmentos do poeta traz-lhe consistência e fortalece-lhe o desejo de ser forte em ambos: ser um homem vaidoso e um poeta vaidoso. A vaidade é sua consistência.

Ele o confessa com leveza e muita ironia. Neste ato vê-se também com complacência e agrado; não hesita e reitera a força da vaidade humana e poética que o anima: “Aceitamos que você empregue o seu amor em nós!”

Neste poema existe uma confissão velada da vaidade que anima o poeta – em especial a vaidade surge, alimenta-se do reconhecimento obtido e do esperado.

Tanto o homem como o poeta confessam-se vaidosos. Assume a vaidade de modo ambíguo e universal; declara-se também vaidoso, mas com uma pitada de auto-ironia!

9.

TEOLOGIA DO TRASTE

As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.

Idéias são a luz do espírito — a gente sabe. Há idéias luminosas — a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm.................................
........................................................... Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.

No título estampam-se os horizontes que o poeta quer para o poema: a matéria mais ínfima e a transcendência. Se o traste recebe esta denominação oriunda do cenário das atividades do homem quando se posiciona perante si, perante a natureza e perante os outros homens, com algo que não mais vai lhe servir. Assim o homem capaz de se construir como tal, referencia-se também com algo que está além dele e a que atribui todo o poder que o transcende. Dessa forma esse horizonte que transcende é tomado e integrado ao traste, a tudo aquilo que o homem já desprezou. Assim se compreende o título TEOLOGIA DO TRASTE – Deus e o traste. Para o homem racional que constrói as idéias e os mundos a partir do abstrato, ele, poeta, contrapõe até o transcendente como imanente ao Traste. Aquilo que é desprezível ao homem cujo padrão principal seja a medida da utilidade, ele contrapõe o desprezível tomado pelo transcendente. Teologia do Traste aproxima os opostos e dignifica o traste conferindo-lhe sublimidade à sua concretude desprezível; para o poeta acontece assim a reversibilidade dos opostos: o que é desprezível torna-se sublime e consagrado como tal pelo poder de Deus que, principalmente e ali, está presente conferindo a sublimidade das mudanças e transformações visíveis não racionais. Para o poeta acontece a reversibilidade dos padrões: o racional pode ser poderoso mas não consegue ter a força do traste em contínua mutação visível.

Tudo o que é traste é objeto da estima do poeta que confessa sua fraqueza pelas latas em estado de deterioração. Define-as ironicamente a partir dos conceitos racionais: “Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas!” Aqui a palavra que segura o sentido — “Pessoas léxicas”— como sendo pessoas capazes de estabelecer relações e capazes de criar sentidos ou significados a partir da razão, ao se referirem às latas, se empobrecem, uma vez que não sabem tirar metáforas do concreto.

As pessoas que gostam de latas são os amigos do poeta por serem simples: mendigos, cozinheiras ou poetas. Esse é o horizonte de valor proposto pelo poeta. Proclama outra capacidade inerente às latas: “elas são muito suficientes”! ou mais suficientes que as idéias. Seguindo o poeta o seu raciocínio, demonstra que os objetos concebidos pelo espírito não podem ser “pegos” pelos mendigos ou cozinheiras, ao passo que as latas são melhores que as idéias porque “A gente pega uma lata, enche de areia e sai puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.” Ao passo que as idéias não podem ser tomadas e serem transformadas como uma lata que pode virar ou se transformar em um caminhão de areia. O abstrato das idéias uma vez estabelecido não se muda ou se transforma, ao passo que uma lata pode se transformar naquilo que um inventor como o poeta a quiser transformar. Assim declara o poeta: “Por isso eu acho a lata mais suficiente”... pode-se fazer com ela um mundo lúdico e de felicidade. Ao passo que as idéias utilitárias podem ser o berço de uma bomba atômica, o que é muito desastroso.

Por outro lado, afirma que “Idéias são a luz do espírito” e imediatamente contrapõe sua posição quanto à luz do espírito: “Eu queria que os vermes iluminassem./ Que os trastes iluminassem.” Pois estes não construiriam, mesmo iluminados, a bomba atômica. Os vermes sabem oferecem um mundo mais transformador e iluminado. Inaugurado em muita luz na simplicidade que um traste é capaz de anunciar.

O poeta aqui retoma o seu tema predileto em livros anteriores: tudo o que for desprezível é bom para a poesia. Assim as pequenas coisas, o traste e os objetos desprezíveis são ótimos para um sentido muito amplo da vida, servem para se contemplar a criação, a invenção poética.

10.

GARÇA

A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.

O poema "GARÇA" exemplifica a relação do poeta com as palavras. Usa a natureza, a própria ave como ponto referencial da palavra; a elegância da ave se consubstancia na ‘beleza letral' da palavra. Para o poeta as belezas se comungam e transferem a arte, a beleza ou leveza do ser para o ser do poema com a elegância e altivez de uma ave/garça.

Ao descobrir a integração do belo no verbo e na ave o poeta confessa seu estado de gozo estético ou encantamento. Tanto uma como a outra são portadoras de uma configuração com que preenchem as exigências da verdade de suas belezas ou de uma única beleza simbiótico-verbal.

Para que esse encantamento acontecesse alguns traços se intercalam e compõem o cenário integrado expressivo do belo. Se por um lado a garça/ave se lança ao olhar com altivez, postura e leveza, por outro apresenta presteza, atenção, elegância e certa ferocidade com que, através do bico longo e pontiagudo, ataca a presa com rapidez, precisão e elegância. A garça permanece em sua postura de distinção, de solenidade e de traços muito bem precisos, não se inserindo no cenário com simulações, ao contrário, com sua silhueta muito clara e talhada, escultural.

Da mesma forma a palavra GARÇA tem uma base bem clara e definida os sons de suas duas vogais elementares e abertas; esses ‘as' dão suporte à palavra em termos de extensão e abertura. A pronúncia da palavra sustém a boca em estado de abertura e a imaginação em ângulo que abarque o universo ou o horizonte. Da mesma forma o ‘g' – minúsculo – combina com a esbelteza e altura anatômica da ave; o som do ‘ç' pode indicar um apoio e suavidade, ao passo que o ‘r' pode indicar a sua qualidade de rapina. O ‘r' combina com capacidade de matar para sobreviver, associa-se à qualidade de “rapina” e integra o sentido e a beleza da garça que, por sua vez, também tem que pescar, matar o peixe ou caramujo para sobreviver.

A fonética, a estrutura gráfica e a ave criam um conjunto que ofereceu-se à contemplação do poeta e ele ficou enternecido: “Sofro uma espécie de encantamento poético.” Em outras palavras, entregou-se ao belo que se oferecia à sua imaginação contemplativa da natureza. O poema é o registro estético dessa revelação mediante o trabalho do poeta.

11.

NO ASPRO

Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.

O título do poema exemplifica o seu desenrolar, ou exemplifica a maneira como o poeta trata as palavras que lhe chegam de mansinho em sua mente. ASPRO é resultante de um processo de síncope da palavra ÁSPERO. Justamente tudo que é áspero pode ser trabalhado ou polido ou transformado em algo mais vistoso ou mais elegante ou ainda em algo que corporifique o belo possível.

A forma bruta é áspera ao se pensar em madeira, pedra, terra, argila, massa ou qualquer outra matéria em estado informe; dessa maneira deseja o poeta encontrar o âmago da palavra. Não quer a palavra polida, acertada ou enfeitada por adjetivos, laços ou fitas, lantejoulas ou purpurina, deseja encontrar a palavra já usada ou em estado bruto, rude, elementar. Se não a encontra em ‘estado de dicionário', cheia de formalidades, mas rica de traçado originário, em outros poemas o poeta até que se deixa levar por essa oferta. Ainda uma terceira seara de palavras pode ser agradável ao poeta: quando encontra as palavras em estado de abandono, de traste ou de lixo, em decomposição... Ele as redime dando-lhes novos significados pertinentes de alma ou de suas raízes, ou ainda colocando-as em contato com o estado de deterioração deixando-as se contaminarem por escórias de toda sorte, incute-lhes um vigor rústico e lúdico advindo da terra, da força mutacional de qualquer ser em estado de transformação e que se deixa contaminar por uma força gratuita que recebe por obra e serviço do poeta. Para isso ele se coloca em estado de trabalho e de luta, sua em cima das palavras para que elas adquiram novo vigor em contato com o lixo do ‘desaprender' que o poeta lhe oferece como um prato de lentilhas... Elas se deixam levar por esse mosto sedutor e se dispõem a seguir o jogo do poeta que as trata e lhes revigora o sentido.

Este título é o exemplo de como ele tirou a nobreza, altivez medieval de uma palavra proparoxítona para torná-la comum, mais curta, humilde e mais crua, rompante e cortante. Tirou-lhe a solenidade para torná-la crua, aspra, como que cortante.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – VIII – O Novo Desastre


— Isso é mais difícil. Estou muito velha e perrengue. Poderei molhar-me pelo caminho a adoecer.

Emília, que ainda estava dentro do bolso de Narizinho, espichou para fora a cabeça.

— Molhar como? — disse ela muito espevitadamente. — Pois a senhora vai de guarda-chuva!...

Narizinho empurrou-a outra vez para o fundo do bolso e, voltando-se para dona Benta, perguntou:

— Que presente poderemos dar ao príncipe, vovó? Ele não pode voltar de mão abanando. — Você é que sabe o gosto dele, minha filha.

— Escamado apreciou muito a vaca mocha, mas isso não convém dar. Na minha opinião acho que o melhor é dar... é dar...

Engasgou. Não sabia o que dar. Nisto apareceu Pedrinho, de volta do passeio com o capitão da guarda. Consultado, resolveu o problema imediatamente. — Muito simples — disse ele. – Há aquelas quatro rodinhas que sobraram do despertador que consertei.

Roda é coisa que não existe no oceano. Juro que o príncipe vai ficar contentíssimo.

Todos aprovaram a idéia, e Escamado recebeu de presente as quatro rodinhas como lembrança das quatro pessoas do sítio.

Na hora de partir houve choro. Até Emília fugiu do bolso da menina, aparecendo com duas lágrimas da torneira nos olhos de retrós. Aproximou-se do príncipe, muito cautelosa para que Narizinho não visse, e cochichou-lhe disfarçadamente:

— Se o senhor príncipe me conseguir uma boa aranha costureira, eu arranjo jeito de dona Benta trocar a mocha por um tubarão...

Terminadas as despedidas, lá se foi o príncipe com a sua comitiva, todos de nariz vermelho de tanto chorar.

Dona Benta, tia Nastácia, Narizinho e Emília à janela acenavam saudosamente com os lenços.

— Adeus! Adeus!

Depois que desapareceram ao longe, a primeira a falar foi Narizinho.

— O que vale é que o gato Félix não tarda por aí. Se não fosse isso, não sei o que seria de nós — nesta tristeza das saudades...

Nem bem acabou de falar e o gato Félix surgiu no terreiro, a miar aflito.

— Acudam!... O príncipe está se afogando... Todos correram ao encontro do gato, sem compreenderem o que ele dizia.

— Afogando como, se o príncipe é peixe? — exclamou a menina.

— Sim, mas passou toda a tarde fora d’água e desaprendeu a arte de nadar.

— Socorro! — berrou Narizinho, disparando como louca na direção do rio para salvar o seu amado príncipe...
––––––––
Continua... O Gato Felix – I – A história do gato

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte XI

Justificar
INÍCIO.

Evite iniciar sua redação com digressões. O início deve ser curto, sem evasivas.

INSPIRAÇÃO.

No momento da criação – inspiração – não iniba o que vem à mente, seja o que for. Portanto, rascunhe o que for aparecendo. Pode ser que surja algo muito bom em meio às idéias aparentemente desordenadas.

INTERJEIÇÃO, EXCLAMAÇÃO.

Não abuse do uso das interjeições e exclamações. Tire proveito delas, no entanto, para destacar as emoções e as explosões de sentimentos das personagens.

Arre! Precisava gritar desse jeito e assustar todo mundo?

— Dobre a língua! — gritou vermelha de cólera. — Você é tão arrogante que ninguém mais aguenta a sua presença.

INTERNET.

Na rede mundial de computadores há dezenas de cursos “on-line” de redação, muitos dos quais de altíssima qualidade, sendo alguns gratuitos.

INTRODUÇÃO.

É o início da redação e deve conter um resumo, em poucas pinceladas, daquilo que abordaremos no restante do texto.

A introdução precisa ser rápida. Evidentemente, nunca terá tamanho igual ao do desenvolvimento. Numa redação de 20 linhas, por exemplo, não deve exceder 4 ou 5 linhas.

A Introdução apresenta a idéia que será discutida no desenvolvimento. É nessa parte que se dá ao leitor uma informação sobre o assunto que será tratado. Deve ser pequena, porque, se a alongarmos demais, correremos o risco de esgotarmos o assunto no primeiro parágrafo.

PROCURE EVITAR, NA INTRODUÇÃO, FRASES COMO:

Meu caro leitor,...
Bem, atualmente, no mundo em que vivemos...
Não tenho palavras para exprimir o que sinto, mas...
Vou tentar falar sobre o tema, embora não seja fácil abordar este assunto.
Sei que não sou a pessoa mais indicada para falar sobre esse assunto. Entretanto...
Embora sabendo que a minha opinião é uma gota d’água no oceano, tentarei externá-la.

DIGRESSÃO

Evite iniciar sua redação com digressões (o início deve ser curto). Digressão é não ter ordenação de idéias, é ficar indo e voltando, o que confunde o leitor.

EXEMPLOS DE DIGRESSÕES
Devemos, aqui, propor um parêntese breve...
Evite isso, porque demonstra que a ordem das idéias ainda está confusa.

Por falar nisso, lembro-me de uma situação vivida algum tempo atrás...
Poderia ter sido falado antes, se tivesse havido planejamento da redação.

Antes de falar nisso, voltemos no tempo,...
Gera o processo de sair momentaneamente do tema e pode provocar problemas de entendimento.

IRONIA.

Quando quiser criticar determinado acontecimento ou pessoa, de forma humorística, depreciativa ou sarcástica, e sem apresentar posição às claras para o leitor, use o expediente da ironia.

Menina, você é um primor; não arruma nem sua própria cama!
...o velho começou a ficar com aquela cor de uma bonita tonalidade cadavérica.
Moça linda, bem tratada, três séculos de família, burra como uma porta: um amor.

LEITURA.

Quem lê adquire desenvoltura para criar seu próprio texto.

A leitura completa o homem, enriquece-o; a conversação torna-o ágil; e o escrever dá-lhe precisão.

Quando lemos, nosso cérebro forma uma imagem de cada palavra. É dessa maneira que sabemos como os vocábulos são escritos.

LER é ampliar horizontes; armazenar informações; compreender o mundo; comunicar-se melhor; desenvolver-se; escrever com desenvoltura; relacionar-se melhor com todas as pessoas.

Leia muito, tudo o que encontrar pela frente, inclusive revistas informativas e técnicas (Veja, Isto É, Carta Capital, Superinteressante), jornais (Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil) e, principalmente, boas obras literárias, como romances, dentro de seu nível de estudo e de sua faixa etária. O ato de escrever está muito ligado ao ato de ler.

UM BRADO DE ALERTA: Quem pouco lê vai se dar muito mal em redação quando for prestar vestibular!

A leitura permanente e intensa faz milagre, já que, por meio dela, se aprende muita coisa sem se perceber, especialmente na parte gramatical relativa à acentuação, ortografia e pontuação. Se a pessoa nada lê, será inútil decorar uma infinidade de regras gramaticais.

Uma sugestão bem intencionada para os que querem crescer: estude para assimilar, fixar, enfim, aprender. Só assim será capaz de manipular seu conhecimento com criatividade.

Não cultivar a leitura é um desastre para quem deseja expressar-se bem. Ela é condição essencial para melhorar a linguagem oral e escrita. Quem lê interioriza as regras gramaticais básicas e aprende a organizar o pensamento.

Uma boa sugestão de leitura? A coletânea, atualmente com trinta e um livros, PARA GOSTAR DE LER. A maioria absoluta dos textos é formada por centenas de crônicas dos melhores cronistas brasileiros. Serve para toda a família, inclusive para os filhos em idade escolar a partir dos dez anos. São textos curtos, simples e deliciosos.

LETRAS FLOREADAS.

Evite fazer letras floreadas, enfeitadas, com perninhas e rabinhos porque, às vezes, confundem-se umas com as outras e ficam até deformadas (o “r” minúsculo, estando floreado, parece “s”), o que dificulta sobremaneira o perfeito entendimento do que está escrito. O “o”, por exemplo, é redondo e não tem perninha.

Portanto, NÃO FAÇA:

palavras descendo morro;
última letra do vocábulo com prolongamento exagerado para baixo;
linha ou traços que cortem a palavra;
a letra “c” com traços enrolados sobre ela;
palavra com letras separadas;
“n” parecido com “r”;
“m” com cara de “n”;
“t” se confundindo com “f”;
“rr” parecido com “m” ou vice-versa.

LIMPEZA.

Faça a redação limpa, sem borrões ou garranchos, e bem legível.

A limpeza contribui muito para deixar a redação bem apresentável.

O que dizer das redações cheias de borrões e sujeiras? Uma prova limpa, sem rasuras e legível, causará boa impressão ao professor.

Não risque as palavras nem faça qualquer tipo de rasura na redação, pois esse tipo de detalhe deixará uma impressão muito ruim de você.

Procure manter uma letra razoável, e nada de emporcalhar a folha. É o mínimo que se deve fazer para que o conteúdo e a qualidade do texto não desapareçam no meio de rabiscos.

LINGUAGEM COLOQUIAL.

Evite o uso da linguagem popular (coloquial) ou extravagante, bem como as que atribuem referências grandiosas sem que possam ser aceitas ou cientificamente comprovadas.

LINHAS.

Não exceda o número de linhas pedidas como limites máximos e mínimos. A tolerância máxima é de aproximadamente cinco linhas aquém ou além dos limites.

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Trova 215 - José Lucas de Barros (Natal/RN)

Fernando Sabino (Dez Minutos de Idade)


A enfermeira surgida de uma porta me impôs silêncio com o dedo junto aos lábios e mandou-me entrar.

Estava nascendo! Era um menino.

Nem bonito, nem feio; tem boca, orelhas, sexo e nariz no devido lugar, cinco dedos em cada mão e em cada pé. Realizou a grande temeridade de nascer, e saiu-se bem da empreitada. Já enfrentou dez minutos de vida. Ainda traz consigo, nos olhinhos esgazeados, um resto de eternidade.

Portanto alegremo-nos. A vida também não é bonita nem feia. Tem bocas que murmuram preces, orelhas sábias no escutar, sexos que se contentam, perfumes vários para o nariz, mãos que se apertam, dedos que se acariciam, múltiplos caminhos para os pés. É verdade que algumas palavras, melhor fora nunca dizê-las, outras nunca escutá-las. Olhos há que procuram ver o que não podem, alguns narizes que se metem onde não devem. Há muito prazer insatisfeito, muito desejo vão. Mãos que se fecham. Pés que se atropelam. Mas o simples ato de nascer já pressupõe tudo isso, o primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo. O primeiro vagido é um desafio. A vida aceitou o novo corpo e o batismo vai traçar-lhe um destino. A luta se inicia: mais um que será alvo. Portanto alegremo-nos.

Menino sem nome ainda, não te prometo nada. Não sei se terás infância: brinquedo, quintal, monte de areia, fruta verde, casca de árvore, passarinho, porão fantasma, formigas em fila, pão com manteiga, beira de rio, galinha no choco, caco de vidro, pé machucado. O mundo hoje, tal como estou vendo da janela do meu apartamento, desconfio que te reserva para a infância um miraculoso aparelho eletrocosmogônico de brincar ou apenas uma eterna garrafa de coca-cola e um delicioso chica-bom.

Aceita, menino, esses inofensivos divertimentos. Leva-os a sério, com aquela seriedade da infância; chupa o chica-bom, bebe a coca-cola, desmonta e torna a montar a miraculosa máquina de brincar de nosso século, que a imaginação de teu pai jamais poderia sequer conceber. Impõe a essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a sofreguidão de tua boca, a ousadia de teus olhos e a força de tuas mãos. Imprime a tudo que tocares a alegria que me destes por nasceres. Qualquer que seja a tua infância, conquista-a, que te abençôo. Dela te nascerá uma convicção. Conquista-a também - e vai viver, em meu nome. Nada te posso dar senão um nome.

Nada te posso dar. No teu primeiro instante de vida a minha estrela não se apagou. Partiu-se em duas e lá no alto uma delas te espera, será tua. Nada te posso dar senão um nome e esta estrela. Se acreditares em estrela, vai buscá-la…

Fonte:
SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. 2.ed. RJ: Bestbolso, 2008.

Ialmar Pio Schneider (Soneto I)


Quando leres meus versos, na calada
da noite escura e não te contiveres,
ao relembrar que foste minha amada
e eu poderei estar com outras mulheres...

Ao te sentires só e abandonada,
de minha companhia não dispuseres,
mas sem dormir em alta madrugada
conciliar o sono não puderes...

Quando em teus olhos rebentar o pranto
com amargura que te roube a paz,
perdida em solidão e desencanto,

de me esquecer não fores já capaz,
minha presença vai pesar-te tanto
que fatalmente te arrependerás!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Guerra Junqueiro: Contos para a Infância (Piloto)


Piloto era o mais inteligente e o mais afetuoso dos cães, e o infatigável companheiro dos brinquedos das crianças da quinta.

Fazia gosto vê-lo atirar-se ao tanque a agarrar o pau, que o João lhe lançava o mais longe que podia; pegava nele, metia-o na boca e trazia-o à margem, com grande alegria do pequerrucho e de sua irmã Joaninha.

Esta brincadeira recomeçava vinte vezes sem cansar nunca a paciência do Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos, até que o assobio do criado da quinta chamava o fiel animal ás suas obrigações; partia então como um raio, para escoltar as vacas que levavam aos pastos, e impedi-las de entrar no lameiro do vizinho.

Quando o hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o Piloto o guarda da carroça; e muito atrevido seria quem saltasse à noite a parede da quinta.

Uma vez deu prova de urna extraordinária sagacidade: um jornaleiro, que se empregava muitas vezes em levar sacos de trigo da quinta para casa, tentou de noite roubar um saco.

O Piloto, que o conhecia, não fez a menor demonstração de hostilidade enquanto o homem seguiu o caminho da quinta, mas, desde que se afastou tomando por outro, o guarda vigilante, agarrou-o pela blusa, sem o largar.

Era como se dissesse: «Aonde vais tu com o trigo do meu dono?»

O ladrão quis pôr outra vez o saco donde o tinha roubado; mas o Piloto não deixou, e teve-o em guarda, sem o morder nem ferir, até de manhã; o quinteiro foi dar com ele nesta difícil posição, repreendeu-o vivamente, e despediu-o sem divulgar o caso, para o não desonrar.

O homem, porém, ficou com ódio ao cão, e muito tempo depois, aproveitando a ausência do quinteiro e dos filhos, chamou o Piloto, que correu para ele sem desconfiança; atou-lhe uma corda ao pescoço e arrastou-o à margem do ribeiro.

Atou à outra ponta da corda um grande calhau, e, levantando o animal, arrojou-o à água; mas arrastado ele próprio com o peso e com o esforço, caiu também.

Como não sabia nadar, teria sido despedaçado pela roda do moinho, se o corajoso Piloto, obedecendo ao seu instinto de salvador, e desembaraçando-se da pedra mal atada, não mergulhasse duas vezes, trazendo para terra o seu mortal inimigo.

Este, que já estava quase desmaiado, compreendeu, quando voltou a si, que o cão, que ele tinha querido afogar, lhe salvara a vida.

Envergonhou-se do ato miserável: e desde esse dia, violentando-se, combateu as suas más inclinações.

O exemplo do cão corrigiu o homem.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 420)


Uma Trova Nacional

Dizem que amas de mentira,
mas gosto de acreditar;
e até que um dia eu confira,
vou-me deixando enganar.
–DOROTHY JANSSON MORETTI/SP–

Uma Trova Potiguar

A criança abandonada,
sem lar, na rua, caída,
é uma ostra humana jogada
sobre os rochedos da vida.
–SEBASTIÃO SOARES/RN–

Uma Trova Premiada

2006 - Balneário Camboriú/SC
Tema: PESCADOR - M/E

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes,
pescam nosso coração.
–EFIGÊNIA COUTINHO/SC–

Uma Trova de Ademar

Enfrentarei dissabores
para alcançar minhas metas.
Não é só feito de flores
o caminho dos Poetas!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

A velhice é idade linda,
e não me assusta jamais...
Só não gosto mais ainda
porque ela é curta demais!...
–DOM NIVALDO MONTE/RN–

Simplesmente Poesia


Amores Vêm e Vão
–CELITO MEDEIROS/PR–

Amores, sempre vêm e vão
Uns até ficam, outros não!
Os que partem, nos faltam
Os que ficam, nos fartam!

Alguns amores machucam
Presos em mal entendidos
Lembranças que cutucam
Elos que ficaram perdidos

A dicotomia do ódio e amor
Confundida gera o lamento
Poderia até causar uma dor

Quem não desejar tormento
O coração é um controlador
Abra ou fecha no momento!

Estrofe do Dia

É louvável quem respeita
os sinais de advertência,
se a esquerda é preferência
nunca passe pra direita,
a estrada não foi feita
pra ser pista de corrida,
ao cruzar uma avenida
preste atenção no espelho;
nunca transforme em vermelho
o sinal verde da vida.
–OLIVEIRA DE PANELAS/PE–

Soneto do Dia

O Soneto Moderno
–JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA/BA–

O soneto renasce, e a todo pano,
transita pelos mares da poesia.
É clássico ou moderno, em confraria,
navega ao vento norte ou ao minuano.

É discriminação e puro engano,
Dizer que a rima é velha e sem valia.
O belo é sempre belo, na poesia,
Na pintura, na música... E que dano

Causa o antigo teatro, o enceno, a mímica,
Que afaga o espírito e ilumina a química,
Do riso alegre, da tranquilidade?

Renascendo o acadêmico soneto,
Traz um sentido novo, e, em branco e preto,
Tem gosto e aroma de modernidade!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Paraná em Trovas Collection - 24 - Vidal Idony Stockler (Curitiba/PR)

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte III


Segunda Parte

DESENHOS DE UMA VOZ

1.

SE ACHANTE
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.

O poema mostra as conjecturas do poeta sobre a honestidade de um caranguejo ‘se achante'.

- a novidade é a voz do poeta emprestada ao caranguejo mas sob o ponto de vista e perspectiva do poeta.

- “Se achante” é o reverso do louvor do poeta à majestade do caranguejo. Devido a essa majestade, o poeta desdobra-se em explicitá-la.

No poema está clara a tentativa de o poeta solenizar o que é desprezível – a majestade de um caranguejo.

Assim o caranguejo:

- é idôneo para flor
- andava sem olhar de lado
- montado num coche de princesa
- andava devagar/ Conforme o protocolo (solene para) receber aplausos
- Muito achante demais.
- Nem parou para comer goiaba.
- Ia como se fosse tomar posse de deputado.
- Acabou a fantasia – O coche quebrou!

Após emprestar ao caranguejo todos os trejeitos de pessoas solenes e dadas ao mundo das passarelas e aplausos, ao mundo das pessoas movidas a aplausos...

Conclui-se que: “O caranguejo (devolvido a si mesmo) voltou a ser idôneo para o mangue – sua verdadeira glorificação!”

Neste poema aparece a voz do poeta para proclamar a lealdade e idoneidade da beleza de cada coisa com a configuração do seu meio. Será esplendorosa para quem souber ver e proclamar essa beleza de que todas as coisas, em seu meio, são portadoras. E o poeta diz a beleza de um caranguejo “se achante” pra valer.

2.

SONATA AO LUAR

Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

É uma história de amor em tempo de lua ‘arta' – “Lua arta” é uma expressão da cultura.

O cachorro tornou-se um ‘veículo' muito interessante ou correio.

Quanto o tempo se completou a sinfonia chegou ao auge – E o amor se fez.

Sonata é feita de quadros e tempos: tempos reais, tempos supostos e tempos intensos.

Estrutura da Sonata:

- Introdução: Sombra Boa não tinha e-mail. Escreveu um bilhete;
- Tema recorrente ou conteúdo: Maria me espera debaixo do ingazeiro/ quando a lua estiver arta.
- Variação do tema ou tempo de espera ou de suspiro ou um dueto: amarrou o bilhete no pescoço do cachorro/ e atiçou: / Vai Ramela, passa!/ Ramela alcançou a cozinha num átimo!
- Volta ao tema central/principal, com intensidade: Maria leu e sorriu.
- Intermezzo lírico – addaggio – choroso: Quando a lua ficou arta Maria estava.
- Volta ao tema central – Vibrante e Fortíssimo: E o amor se fez.
- Final suave e amoroso: Sob um luar sem defeito de abril.

Música da vida: - a voz da engenhosidade
- a voz do amor
- a voz cúmplice da natureza (luar) embelezando o amor.

3.

EMAS

Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
A gente sabe que as emas comem garrafas
abotoaduras freios pedras alicates e tais.
Nossa mãe tinha medo que uma ema
Comesse nosso cobertor de dormir e os
vidros de arnica da vó.
Eu tinha vontade de botar cabresto em uma
ema
E sair pelos campos montado na bicha a
correr.
A gente sabia que a ema quase voa no correr.
Que a ema racha o vento no correr.
Eu tinha era vontade de rachar o vento
no correr.

A voz das emas – a voz do poeta ante o vento!

- Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
- Mostra o que são as emas e suas proezas de digestão.
- A voz do poeta, ele quer ‘flanar' numa ema. Apropria-se da voz da ema no vento.
- Velocidade da ema: ...a ema quase voa ao correr/ Que a ema racha o vento no correr.

Apropriação da voz da ema pelo poeta: “Eu tinha vontade de rachar o vento no correr”. Assim a ema torna-se o termo de comparação capaz de expressar o grande desejo do poeta, ou superar o vento como as emas fazem, racham o vento. O poeta quer correr, voar, ser mais veloz que o vento.

De fato as emas deram suporte à imaginação do poeta, são fortes, flanam, poderosas na digestão, capazes e rachar o vento. Nelas se materializou a voz do sonho do poeta: ser muito veloz!

4.

VENTO

Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar uma costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.

O poema mostra o confronto entre o lúdico e o racional. Estrutura-se na luta entre as percepções e o raciocínio.

O infante é retratado em ações concretas e próprias da percepção material ou “coisal” como é do feitio do poeta. Esse encontro de opostos perceptivos é poetizado justamente valendo-se de um elemento ambíguo que se deixa perceber, mas não se vê, somente se sente e é constatado sensorialmente. Da mesma forma a definição racional do vento é clara, mas não constatada, a não ser sensorialmente.

Nessa circunstância, o infante tenta de várias formas constatar a materialidade do vento; vê todas as suas tentativas se frustrarem. Ao fim dá-se por vencido e se proclama vencido pelo racional: “Fiquei estudado!”

A cada ação proposta pelo poeta, aguardava-se um resultado ou reação do vento. Nenhuma, conforme o poeta, se verificou. Nesse processo acontece uma conceituação poética do vento:

– Ele existe mas não olha para trás quando atingido por uma pedra.
– Atingido por uma enxadada não sai sangue.
– Não sente dor.
– Não tem tripa.
– Não tem corpo sensível a facadas.
– Ele é ar em movimento.
– Ele não aceita o suporte de uma costela.
– Mesmo assim o poeta o apedrejou sem resultado.
– Disseram-lhe que o vento não tem organismo.

Mas o vento existe e dele o poeta extraiu esse poema! Não lhe escutou a voz porque não tem organismo. Não pode falar por si mesmo — somente quando em atrito com obstáculos como as árvores ou saliências do terreno.

Confessa o poeta que a racionalidade acabou possuindo-o: “Fiquei estudado!”

5.

ANTÔNIO CARANCHO

Me chamam de Antônio Carancho:
Carancho é por maneira que eu ando de pé virado
Moda carancho mesmo.
Pra bobo eu não sou condicionado.
Sou mais garantido de cantor.
Porém meu canto é fechado.
Lastreadamente sou Antônio Severo dos Santos.
Carancho é de caçoada.
Tenho vareios no olhar as coisas.
Chego de ver vaidade nas garças.
Eu ouço a fonte dos tontos.
Pedra tem inveja aos lírios.
Isso eu sei de espiar.
Eu combino melhor com árvores.
Totalmente ao senhor eu falo:
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais
dentro dele.
Outra pessoa desabre.

A voz do poema define o poeta ou Antônio Carancho. Neste poema constitutivo, a teoria do poema explicita o seu autor.

Proclama-se: Antônio Carancho. Carancho por causa da ave de rapina de ‘ pé virado' e jeito semelhante ao andar da ave.

Proclama-se cantor de um canto fechado, e “tenho vareios no olhar as coisas”. Por “Vareios” subentendem-se as diferenças, as modalidades e a capacidade de um olhar descomum que vê outras realidades não normalmente percebidas pelos mortais comuns!

O poeta exemplifica os “vareios” no olhar as coisas:

- Chego de ver vaidade nas garças.
- Eu ouço a fonte dos tontos.
- Pedra tem inveja aos lírios.

São realidades transferidas às coisas, percebidas somente por um olhar especial que vê além das aparências, que capta os revérberos das coisas em suas relações coisais.

Também o poeta Antônio Carancho se revela em suas preferências:

- Eu combino melhor com árvores.

E estabelece o limite ou parâmetro ideal para a percepção do Belo: “ouvir a fonte dos tontos!”; quem aí chegar não “cabe mais dentro dele!” Em outras palavras, “a fonte dos tontos”, segundo o poeta, tem propriedades engrandecedoras da realidade oculta não acessível à razão. Justamente afirma o poeta, na “fonte dos tontos” jorra outra água. Pois os tontos têm a propriedade de inaugurar as coisas conforme a própria fonte, a tontice. Esta é julgada como bobeira pelo justo julgar racional. O poeta que acessou ou abeirou-se da fonte da Tontice, percebe o mundo, as coisas, um universo diversificado e ilógico, mas capaz de transbordar e engrandecer, pois afirma seu ser. Sua capacidade de inaugurar extrapola, pois cria ou vê sempre as mesmas coisas em outra perspectiva e o mundo cresce até o poeta concluir: “Não (se) cabe mais dentro dele!”

Essa perspectiva de abeirar-se à “fonte dos tontos” é um achado do poeta, sua grande descoberta na variabilidade de ir além do real ou das aparências racionais das coisas.

O mundo jorrante da “fonte dos tontos” tem a propriedade inaugural vertiginosa, vai além de todos os seus limites e extravasa, expande o seu mundo e o seu ‘eu'. Abeirar-se da força da “fonte dos tontos” transforma o ‘eu' do poeta, aumenta sua capacidade de percepção a ponto de ele não mais se perceber como era, é outro. A “fonte dos tontos” o transforma em seu olhar e ele é construído para estar em estado de expansão para a beleza lúdica do universo e das coisas a partir de seu percurso poético.

E ele, não se identificando mais consigo mesmo, afirma que é outro e que o poema o construiu; tornou-se outro ao percorrer o universo inaugurado pela água da “fonte dos tontos”.

Assim concluiu sua inauguração fechando o poema: “OUTRA PESSOA DESABRE!”

O poema contém a teoria em seu caminho inaugural. A proposta do acesso “Fonte dos Tontos” criou o autor, o ‘eu' do poeta.

O que é a FONTE DOS TONTOS no poema?

Vários traços compõem a resposta:

- Fonte dos Tontos é o campo oposto ao racional e ao fotografável;
- Fonte dos Tontos é um campo não perceptível à narrativa linear, mas habitada pelo surpreendente, pelo inesperado e pelo lúdico;
- Fonte dos Tontos é o lado não manifesto da linearidade das palavras, das sintaxes.
- Fonte dos Tontos é o desprezível, o abjeto, tudo que a pessoa comum não aprecia.
- Fonte dos Tontos é o universo das coisas, dos bichos, das árvores, dos vermes insignificantes, dos insetos, dos moluscos nojentos...
- Fonte dos Tontos é a expressividade dos pequenos, dos sem voz, das coisas já usadas e que foram jogadas fora.
- Fonte dos Tontos é a falta de lógica para a racionalidade que não deixa sair dos trilhos, pois ela não tem trilhos.
- Fonte dos Tontos é a oferta das coisas, dos pássaros, dos insetos ao homem desprezível também, ao imbecil, ao fora do prumo, ao não apto ao fechamento das idéias racionais; em compensação aberto às surpresas, às solenidades dos pequenos e desprezíveis, aos escondidos das coisas, às sintaxes inaugurantes e às imagens de contra-mão.

Todo esse conjunto exige um “eu” capaz de ser acessado, de entrar na clareira do ser objeto na suspeita de sua reinvenção. Quando opera o estado de vigília, o poeta atravessa para o outro universo e é construído pela sucessão inaugural desses objetos, situações e percepções novas. Afinal é outro homem, outra pessoa, pois “Outra pessoa desabre”!

Para isso ele venceu o percurso que o poema lhe oferece:

- Antônio Carancho
- não é bobo
- tenho voz – sou garantido de cantor/ Mas meu canto é fechado!
- Tenho vareios no olhar as coisas e vejo: vaidade nas garças, ouço a Fonte dos Tontos, a inveja da pedra
- combino bem as árvores
- ouço a Fonte dos Tontos,

E ao final do percurso, está repleto pela Fonte dos Tontos e está construído – é outra pessoa. Seu “eu” brotou no percurso apresentado pelo poema em etapas distintas e constitutivas.

Nota-se que o poema se estende com percurso que por sua vez também se apresenta no próprio desdobramento como oferta de cada parte que se coordena na dialética e complementaridade da parte com o todo; sendo que o conjunto, o todo, atrai e congrega as partes, as etapas do percurso do poema de acordo com a ‘dynamis' que traz e sustenta a fonte do sentido. Dessa forma, as partes, os conjuntos de versos se coadunam entre si pela força que os conduz ao todo que sustenta e apresenta o sentido do poema.

O sentido do poema Antônio Carancho é disposto nas partes para surgir com evidente estruturação depois de receber a contribuição das partes de forma a realçar a conclusão e o seu sentido máximo: a construção das percepções e constatação, mediante a entrega do poeta ao processo antecipa o desenlace bem disposto; ao fim o poeta foi construído pelo percurso. Por outro lado, também a teoria poética se construiu na exclusividade do percurso suscitado pelo poema!

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres