sexta-feira, 28 de maio de 2021

Carolina Ramos (Zéco)

Num sô Zeca porcaria nenhuma! Meu nome é Zéco! Zé... co! Tábom?!


Estrilava feio, cada vez que o chamavam de Zeca, E explicava:

- Zeca é nome prá muié! - conheço inté uma dona Zequinha, lá da loja da esquina, santa mãe do Serafim... garoto que de anjo... só tem o nome!

- Meu nome intêrinho é José Corifeu. - Zéco descia às minúcias:

- Zé de José, Pai do Minino e Esposo da Virge. E Co... de Corifeu... chefe de coisa nenhuma! - Zécooo!

Zéco sabia que corifeu queria dizer chefe disto ou daquilo, como lhe dissera o seu Pepe da farmácia, homem de "munto " estudo e "i munta curtura tamém!" E Zéco terminava o discurso com advertência inflamada:

- Quem me chamá de Zeca, vai tê di se havê cumigo! Vai tê mêmo!...

Contudo, quem menos ligava para tais ameaças era a molecada do bairro, irreverente... doidinha por fazer ferver a chaleira da paciência do Zéco:

- Zeca!... Zeca!... Lá vem o Zeca... boboca e careca... jogando peteca!

A melodia improvisada, a abusar da rima proibida, deixava em ebulição os brios do pivô da questão, que, indignado, apanhava um punhado de terra... Não raro, voavam mesmo algumas pedras em direção à corja atrevida. E era aquele atropelo! Pernas pra todo o lado!

- Eu sô Zéco, seus marditos! Zé - de José. Co - de Corifeu! — e as pedras choviam!

Raro o dia em que a porta do casebre, na qual vivia o pobre, não aparecia garatujada a giz! O nome escrito soava como palavrão, dispensando qualquer esforço para ser reconhecido. E enquanto as letras brancas gritavam ZECA, a chaleira da "reiva " apitava e Zéco esbravejava furioso, a esfregar a porta com pano encardido, molhado nas águas do ribeirão que corria próximo. E, então, ele apertava os olhos, fechava o punho e sibilava entre os dentes:

Ah! Se eu pego um desses marvados de jeito...eu mato! Ah, se mato!! Mato, sim, pra todo do mundo sabê di veiz quem é Zeca e quem é o Zéco! - Os olhos fuzilavam e o punho fechava-se ainda mais à altura do nariz. - Molecadinha sem-vergonha! Dêxa... quarqué dia pego um! Ah... si pego!...

Zeco sabia haver muito homem de verdade, macho mesmo, chamado Zeca, mas não queria nem saber! Sabia, isto sim, que ele era o Zéco... e de Zéco queria ser chamado! Era o dono do nome e pronto!... Ninguém tinha o direito de chamá-lo como bem entendesse... sem se havê com ele!

Naquele dia, Zéco não saíra para trabalhar na roça. Amanhecera de cabeça tinindo, a latejar como se o coração houvesse mudado para lá. A dor crescera, acabando em "pingação " de nariz. Gripe! Gripe daquelas de criar ninhada de gatos no peito! Nem precisava ser médico para fazer o diagnóstico! O corpo doía... Moído como se um trator tivesse passado por cima dele!

Sem ninguém para mimá-lo, sem mulher nem filhos - que sua Candinha se fora, sem deixar prole - Zéco arrastou-se até a garrafa de aguardente, como se a carcaça lhe pesasse uma tonelada. Gole generoso afogueou-lhe o rosto, ao descer como lixa pela garganta irritada.

A esperar pelo efeito, sentou-se no catre, cotovelos fincados nas coxas... testa aninhada nas mãos...

Não demorou para que o suor brotasse, farto, a lhe escorrer pelas costas.

De repente... aguçou o ouvido: - Ruído na porta. Alguém a arranhava, por fora. Ao espiar pela fresta da fechadura... Olho no olho! Surpresa dos dois lados!... E consequente fuga do garoto, apavorado... enquanto Zéco rugia, escancarando a porta com fúria:...

- Então é tu, coisa ruim! Anjinho de meia tigela! Péra aí que eu te pego!

Irmão do Serafim, Rafael, o caçula temporão de dona Zequinha, lívido de medo... não tinha asas para alçar voo, apesar do nome... mas provou ter boas pernas para enfrentar uma corrida!

Sorteado, daquela vez, para garatujar a porta do Zéco, passou de volta como um pé de vento, gritando à turma que o aguardava:

- Foge, gente! O home tá em casa!...

Debandada geral!

Zéco... mais febril que nunca, olhava a porta com desgosto, alheio à aragem fria que começara a soprar... e esquecido das próprias dores e mazelas.

Mais uma vez, lá estava o estigma! Incompleto, sim... apenas três letras. Faltava a principal - aquele A, no final - pivô de toda discórdia! O maroto não tivera tempo de completar o acinte, apenas – ZEC... é o que se lia. Mas... o acinte estava lá! Ah, se estava!... E as provas, também! - O giz jogado no chão, pisado pelos pés do susto... naquela fuga estabanada, bastava como prova indiscutível! - "Quem não deve... não teme!"

O intuito de provocação era explícito e sem deixar qualquer dúvida! Absorto pelas evidências e cego pela raiva, nem mesmo assim, Zéco deixou de ouvir a gritaria da meninada em alvoroço, à beira do rio de águas revoltas! Entendeu de pronto que alguém se afogava!

Sem perda de um minuto, Zéco sacudiu o peso da gripe, esquecido dela e da birra, correndo para a margem do ribeirão.

Era Rafael! O rosto do garoto estampava terror ao tentar agarrar-se à fragilidade da vegetação beira-rio. Perigo de todos os lados! Avolumada pelas chuvas, a correnteza que o arrastara após o resvalo do pé, na fuga às mãos justiceira, por cruel ironia o colocava, agora, ao alcance daquelas mesmas mãos ávidas de justiça!

O garoto, contudo, não hesitou. Entre ver-se tragado pelas águas turbulentas e o risco de ter o pescoço espremido pela ira do Zéco, não teve dúvidas: - atirou-se por inteiro à mão salvadora, que da margem lhe era estendida.

Os dedos do homem e os da criança tocaram-se de leve, antes que Zéco se lançasse às águas geladas que, implacáveis, arrastavam o menino para o meio do rio.

Rafael debatia-se em desespero, até ser alcançado, agarrado pela roupa e entregue à margem, entanguido... mas salvo!

A surpresa tomara conta da molecada, pasma, que a tudo presenciava com olhos de espanto. O homem durão, antes desacatado e temido, num segundo transformara-se em herói!

Naquela mesma noite, Zéco foi internado. Pneumonia dupla. Delirava! O dilema que o atormentava subia à tona, fortalecido pela febre:

- Eu sô Zéco!... ZÉ-CO! Zé – de José. Co – de Corifeu! Mato quem me chamá de ôtro jeito! Pode inté tê nome de anjo, que eu mato! E mato mêmo!

Ao pé da modesta sepultura, uma cruz agasalha nos braços um nome inexpressivo: - JOSÉ CORIFEU.

A complementação vem logo abaixo, desenhada a giz, por mão infantil, em letra irregular, mas bastante clara: - ZÉCO – definitiva autenticação do nome de um homem que o defendera, com unhas e dentes, até o final de sua vida!

E isto porque... na verdade, tal nome era tudo o que de realmente seu, aquele homem possuíra, ao longo de toda sua insignificante existência.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica 
Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VII

ALMA SEDENTA


Nas profundezas duma alma sedenta
dormem inquietos os sonhos feridos,
porém das alturas, quem a sustenta,
são forças ocultas ou dons nutridos.

Frente às intempéries da convulsão
surgem desejos tão controvertidos,
que exigem proezas e precaução
numa seleção dos mais preferidos.

Pensas que fazes da vida uma flor?
Não peça um favor sem se consultar,
porque pode estar, em si, seu valor.

Jardins floridos, não deixem faltar,
o aroma que faz nascer terno amor
e nos campos da dor, vidas brotar.
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CAPELA

O velho sino na torre anuncia
e conclama o povo a se congregar,
em torno da prece que em harmonia
a todos permite assim celebrar.

A capela há tanto tempo não via
tanta gente ao mesmo tempo a rezar,
ser fonte de paz, embora vazia,
ficando aberta a quem quiser entrar.

Nunca haja na fé, seres rejeitados,
num mundo que poucos querem mandar
e muitos talvez, são desrespeitados.

Juntos no rumo que sonham trilhar,
todos os dons sejam manifestados
e os ocultos também possam brilhar.
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CELEIROS

Dos bons momentos outrora vividos
sempre nos restam as recordações,
restos de passos, quiçá interrompidos,
por tantos motivos ou frustrações.

Fartos celeiros tão bem protegidos
guardaram os frutos das plantações,
pra ser amanhã, talvez consumidos,
em outras mesas, distantes prisões,

Muitos passam pela vida encolhidos
no próprio casulo das ilusões,
sem nunca provar os dons recolhidos.

Ninguém sinta acabar as pretensões,
nem fique chorando os sonhos perdidos
nas longas noites das lamentações.
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GALOPEIOS

Às rédeas da xucra imaginação
no lombo do tempo vai cavalgar,
pelo horizonte sempre a repontar
nobres valores num outro galpão.

A galope descreve o entardecer
à sombra viril da noite serena,
reflete os matizes da bruma amena
que voltam a brilhar no amanhecer.

Cortando os campos do conhecimento
rasga as cortinas da sua existência,
para recobrá-la a todo momento.

Com brio frente à vida em reverência
traduz em canto o seu contentamento
nas longas jornadas com persistência.
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HOMENAGEM I
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

Diversas vezes falaste da lua
e em muitas outras, paraste pra vê-la.
Mas hoje, Deus quis a presença tua,
para que sejas uma nova estrela.

Longos momentos passados na rua
à luz que tanto lutaste pra tê-la,
tendo às mãos o fruto que o perpetua
nesta vida, no dom de descrevê-la.

Que na cadeira pra ti reservada
possas de novo, poemas compor,
ou se o quiser outra trova rimada.

Pelo Supremo Patrono do amor
junto dos Anjos venha ser julgada,
tenha o seleto voto de louvor.
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HOMENAGEM II
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

A natureza, seus campos e flores,
aves e tudo o que nela contém,
serviram de foco a tantos clamores
grafados em prosa e em versos também.

Os vastos campos repletos de cores
foram pedestais que a vida mantém,
muito mais que meros mantenedores
foram precursores da paz de alguém.

Cantos, cantigas, formaram um hino,
no alto dos ramos, deveras gentis,
transformando em grande o ser pequenino.

Canários, tico-ticos, bem-te-vis,
despertavam os olhos do menino
que o deixavam plenamente feliz.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Walter, o gramático

Se me pedirem o nome de um grande gramático, é bem provável que o primeiro a brotar das minhas boas lembranças seja o do professor Walter Pelegrini, um dos mais respeitados pioneiros do ensino em Maringá. Tive a graça de conviver com vários outros notáveis conhecedores do nosso idioma, tais como Expedito Neme, Agostinho Baldin, Juliano Tamanini, Maria Céli Pazini, Leônidas Avelino. Porém Walter era realmente especial.

Nascido paulista em Gália (26-5-1940), formado em Letras e em Direito, veio bem jovem para Maringá. Poderia ter feito carreira brilhante como advogado, mas gostava mesmo era de ser professor, e como tal foi um dos mais competentes e admirados que a cidade já conheceu. Primeiro no Gastão e no Santa Cruz, depois como um dos primeiros docentes da UEM.

No dia em que ele precocemente faleceu (15-11-2003), senti um abalo muito forte. Fiquei pensando: puxa, que desperdício de talento e cultura. Um homem tão inteligente e que passou a vida inteira estudando e ensinando os mistérios e encantos da língua portuguesa... De repente... pufff... lá se foi o nosso Walter para a eternidade, levando uma riquíssima bagagem que poderia ter continuado a partilhar por muitos anos com milhares de alunos.

Certa vez ele enviou para a revista “”Aqui” um texto no qual usou a palavra “seriíssimo”. O revisor estranhou e amputou um “i”, reduzindo o elegante superlativo à sua variante informal: “seríssimo”. Walter telefonou explicando que a forma “seríssimo” também era aceita, porém ele preferia “seriíssimo”. Propuseram publicar novamente o texto na edição seguinte, dessa vez com os dois “ii” no devido lugar e com os respectivos pingos. Ele agradeceu, mas dispensou.

Dias após o querido mestre apareceu ao vivo na redação da “Aqui”. Pensaram que estava bravo. Não estava. Ria até. Mas a conversa com a rapaziada acabou virando uma “seriíssima” e proveitosa aula.

– Os adjetivos terminados em “io” – disse ele – formam o superlativo perdendo a vogal final e dobrando o ‘i’: precário–precariíssimo, sumário-sumariíssimo, sóbrio-sobriíssimo, macio-maciíssimo. Mas existem alguns casos interessantes: sábio, por exemplo, poderia ser “sabiíssimo”, no entanto superlativou-se como “sapientíssimo” (do latim sapiens, sapientis)... Quem sabe porque os sábios, em geral, sejam chegadões em línguas clássicas. E há o caso de “feiíssimo”, que, por ser difícil de pronunciar, no fim ficou sendo “feíssimo” mesmo...

Porém a paixão maior do professor Walter foi sempre o estudo da sintaxe. Relia com frequência longos trechos do bom Camões, só pelo prazer de caçar sujeitos, objetos e adjuntos em labirintos sintáticos geniais como este: “As armas e os barões assinalados que da ocidental praia lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana...

Grande Walter Pelegrini, um personagem inesquecível, sapientíssimo e seriíssimo professor de todos nós que tivemos a bênção de receber suas preciosas aulas. Até um dia.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Adega de Versos 24: Miguel Russowsky

 


Júlia Lopes de Almeida (E os cisnes?)

A Batista Coelho

Procurando emoções, ou por uma curiosidade extravagante, a viscondessa de S. Roque lembrou-se um dia de ir ver o hospital de alienados do Dr. Aguilar.

Descendo do seu coupé* dentro do pátio do edifício, perguntou ao porteiro pelo diretor.

Não estava; mas como não devesse tardar, conduziram-na a um escritório ao rés do chão, cheio de armários e de aparelhos elétricos.

A viscondessa sentou-se e olhava para o chão reluzente, quando percebeu uma sombra a deslizar a seu lado. Voltou-se e viu junto a si uma mulher de uns trinta anos, baixa, clara e delgada, de rosto longo como o dos carneiros e olhos pardos, de expressão dulcíssima. Tinha o andar macio como o das freiras, as mãos delicadas, pequeninas e pálidas, e um sorriso que lhe iluminava a fisionomia triste e vaga...

– Deseja alguma coisa?

– Sim... vim pedir permissão ao Dr. Aguilar para ver o seu estabelecimento. Disseram-me que ele não tarda e mandaram-me esperar aqui...

– Se é só isso, não vale a pena cansar-se; ele virá... ou não virá. Em todo caso, prontifico-me a acompanhá-la.

– É enfermeira?

– Sim, minha senhora. O que lhe peço é que escreva aqui o seu nome.

A enfermeira apresentou, sobre a grande secretária de nogueira, o livro em que se inscreviam os visitantes.

A viscondessa tirou rapidamente a luva e, mesmo sem se sentar, apoiou o cotovelo na mesa e escreveu. Por trás dela a outra esticou muito o pescoço e leu-lhe o nome. Depois, com um sorriso:

– Podemos ir.

Saíram ambas, atravessaram corredores e subiram escadas. A enfermeira ia adiante, roçando sem bulha nos degraus o vestido mole, de riscadinho azul e branco, coberto na frente por um largo avental de linho pardo. As sedas da viscondessa farfalhavam.

– Por aqui... veja, esta é a sala dos doidos pacíficos, dizia a enfermeira. Passemos agora à escola das crianças. A senhora não receia impressionar-se?

– Não... respondeu a visitante, depois de uma pequena hesitação.

– É muito triste. Enfim, é bom ver tudo! concluiu a enfermeira.

– A senhora... – E a viscondessa interrompeu-se para perguntar: – Como hei de chamá-la?

A outra não respondeu logo e ficou pensativa, como se fizesse um esforço para se lembrar do seu nome; depois disse com um sorriso:

– Chame-me... irmã Serafina; não sou freira, mas fui educada num convento, e os meus irmãos, em casa, por brincadeira, davam--me esse nome. Acostumei-me.

– A irmã Serafina, voltou a viscondessa, prendendo o fio do seu pensamento partido, não tem medo de viver aqui?

– Às vezes... certamente que os doidos fazem-nos passar bocados perigosos!... mas tenho compaixão, dediquei-me a isto e já agora hei de envelhecer ao lado deles. Pobre gente!

Havia no olhar de irmã Serafina uma tamanha expressão de piedade e doçura, que a viscondessa sentiu-se comovida e murmurou:

– Que anjo!

Entraram na escola. Umas dez crianças, espalhadas por meia dúzia de bancos, levantaram os narizinhos curiosamente para a visitante. O mestre tinha sentado nos joelhos um pequenito, que se encaracolou todo, fazendo-se num novelo. Ao mesmo tempo surgiam da aula gritos e guinchos estranhos; um rapaz de dez anos quis fazer discurso, outro arremedou o miar dos gatos, de uma maneira tão justa e com uma careta tão dolorosa, que a viscondessa, arrepiada, voltou depressa para o corredor.

A irmã Serafina deixou-se ficar para trás e, curvando-se, beijou uma menina que, encostada à parede, contava os dedinhos incessantemente: um, dois, três...

Quando voltou para junto da visitante, ela disse com uma voz magoada:

– Não a avisei de que se havia de impressionar na escola das crianças? Pobres anjos! Eu ainda não me habituei a olhar sem lágrimas para aqueles entezinhos condenados, por uns pais sem consciência, a uma vida de agonias!

– Condenados pelos pais? murmurou com estranheza a visitante.

– Certamente. Quem pode dar uma herança tão desgraçada aos filhos, não se casa. Sabe que são vítimas da hereditariedade.

– Todos?!

– A maior parte. Que pecado! Deveria haver leis que proibissem certas uniões... O que estas crianças me têm feito chorar, só de pena! Algumas são más, mordem, batem, causam estragos de toda a ordem.
 
Umas ferazinhas inconscientes. Quanto piores elas são, mais as lamento. É preciso que haja alguém que as ame. Eu sou mais carinhosa para aquelas a quem ninguém quer bem... Afinal, boas e más correm para mim. Sabe que todas as crianças gostam das aves.

– Das aves?!

– Sim, que tenham asas que as agasalhem.

– Ah...

A voz da irmã Serafina era melíflua, escorregadia e branda; uma dessas vozes cantantes e claras, que uma vez ouvidas nunca mais se esquecem. Não há por certo mulher cuja harmonia seja tão completa no seu todo. Deveriam antes chamá-la irmã Suavíssima!

Atravessaram todo o edifício sem que uma palavra, um gesto da guia alterasse a sua expressão de candura. Todos os doentes lhe sorriam, e ela sorria a todos os doentes. Ia passando como uma bênção, branda como o perfume de um lírio. No chão encerado dos largos corredores só se ouviam os passos da viscondessa batendo o metal dos tacões num tic-tac sonoro. Aquele som regular caía-lhe no ouvido como um barulho profano. Envergonhava-se e temia atrair a atenção dos doidos. Repelia o desejo de descalçar-se para deslizar como a irmã Serafina pelo parquet**.

– Quer ver uma louca feliz?

– Sim... respondeu a viscondessa.

Impelindo a porta de um quarto, entraram. Ao pé de uma janela, aberta para o azul do espaço, e ao lado de um leito todo feito de branco, uma velhinha risonha cantarolava num delgado fio de voz, fazendo tricô. Os novelos bailavam-lhe no colo, sobre o zuarte limpo do vestido, e as mãos enrugadas e secas moviam as longas agulhas, ligeiras, ligeiras.

Sempre a cantar uma cantiga risonha, a doida cumprimentou a visita, com um movimento airoso de cabeça.

A enfermeira murmurou indicando-a: – É sempre assim.

Tornaram a sair e desceram uma escada larga de corrimão envernizado. Embaixo atravessaram um pátio cimentado, onde numa ordem simétrica se alinhavam grandes tinas verdes plantadas de azaleias. Os arbustos carregados pareciam buquês, mais flores do que folhas. Uns vermelhos, escuros como sangue pisado, outros róseos como o céu na aurora, e outros brancos como a neve casta. A viscondessa roçava por eles o vestido de seda que ia gemendo, no seu farfalhar, pela pressão nervosa com que ela o arregaçava.

A irmã Serafina colheu um galho das azaleias brancas, soprou delicadamente uma formiguinha que passeava numa das flores e entregou-o à viscondessa, murmurando:

– As brancas são as mais bonitas, as mais ingênuas; não acha?

A outra sorriu. Entraram num corredor que conduzia, direito e amplo, a uma alta porta de vidro azul.

Chegadas aí pararam; era a porta da saída. Através do vidro grosso da porta via-se o vestíbulo de ladrilho, aberto sobre o jardim.

O sol estava forte, de um ouro intenso; o azul acinzentado do vidro quebrava-o numa luz de crepúsculo outonal. Mármore da escada, areia do jardim, maciços de verdura, grupos de palmas de roseiras ou de crótons variados, tinha tudo o mesmo tom enfumado, uniforme e brando.

Ao centro do jardim, entre um relvado côncavo, um pequeno lago tinha a cor e a placidez de um espelho; e à beira dele, sobre a grama bem aparada, uma cegonha parecia de aço, não só pela cor, como pela imobilidade da atitude.

A viscondessa estendeu a mão à irmã Serafina, mas esta não lhe prestou atenção: tinha o rosto colado ao vidro da porta.

– Adeus... repetiu a viscondessa.

A outra então voltou-se e, suspendendo o busto para chegar a boca ao ouvido da viscondessa, disse com voz mal firme:

– E os cisnes?...

– Que cisnes? ia perguntar a viscondessa. Mas conteve-se. A irmã Serafina tinha o olhar branco de cólera, uma transformação súbita quebrara-lhe o encanto. Ela movia-se abrindo os cotovelos e esticando
o pescoço.

A viscondessa compreendeu a verdade e tateou a porta, sem poder abri-la; quis gritar – teve medo; e a outra, entretanto, volteava, volteava, repetindo cada vez com mais força:

– E os cisnes? E os cisnes?!
* *

Minutos depois a viscondessa ouvia do diretor do hospital que a loucura daquela mulher provinha de ter perdido uma filha afogada por causa de uns cisnes. A criança, debruçada no lago, quis agarrar as aves; as aves partiram e a pequenina mergulhou. Desde então a mãe finge-se de cisne, asseverou ele.

– Compreendo agora... Ela disse-me que tinha asas! Com quem eu andei!

– Andou com uma inofensiva que, mesmo quando grita, não faz mal a ninguém. Para mim, ela só tem uma curiosidade: a mania de se ter encarnado no inimigo. Foi um cisne que lhe motivou a loucura, ela quer ser cisne... Enfim, também acontece lá fora adorarmos às vezes a própria causa do nosso mal... As suas azaleias, minha senhora!

E o médico apanhou as flores que a viscondessa deixara cair ao entrar para o coupé, enquanto os gritos continuavam lá dentro, repetidos e chorosos:

– E os cisnes? e os cisnes?!
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* Coupé – Carruagem fechada.
** Parquet – Assoalho de placas de madeira assentadas em forma de mosaico.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Laurindo Rabello (Poemas Escolhidos) VI

LEANDRO E HERO
SONETO I


Hei de, mártir de amor, morrer te amando.

O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.

Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).

Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!... és morto?!... Que destino infando
“Te conduz aos meus braços desta sorte?!!

“Morreste!... mas... (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
“Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”
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A UMA INCONSTANTE
SONETO II


É carpir, delirar, morrer por ela!
BOCAGE


De uma ingrata em troféu despedaçado
Meu coração devora amor cruento,
Trocando em fero e bárbaro tormento
Quantos prazeres concedeu-me o fado.

No seio d’alma, já dilacerado,
Negras fúrias do báratro apascento!
Filtra-me o delirante pensamento
De zelos negro fel envenenado.

Desprezo, ingratidão, fria esquivança
Da cruel por quem morro, em tal procela
Apagaram-me a estrela da esperança.

E eu (ao confessá-lo a dor me gela)
Humilhado a seus pés, minha vingança
É carpir, delirar, morrer por ela.
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A UM INFELIZ
SONETO III


Geme, geme, mortal infortunado,
É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinquente,
Sempre tirano algoz terás no Fado.

Mas para não ser mais envenenado
O fel que essa alma bebe, e o mal que sente,
Não te iluda o falaz riso aparente
De um futuro de rosas coroado.

Só males o presente te afiança:
Incrustado de vermes charco imundo
Se te volve o passado na lembrança.

Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.
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A UMA SENHORA
SONETO IV


Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade ímpia,
Tu, amada do Anjo d’Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.

Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-se de magia,
E lá dos mortos na soidão* sombria
Operou-se um milagre de repente.

A morte sobre a foice, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!

Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C’um sorriso de glória um — bravo — deu.
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*Soidão – forma arcaica de solidão.
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À SRA. MARIETA LANDA
SONETO V
  
Por ocasião de cantar no teatro de S. João
da cidade da Bahia


Disseste a nota amena d’alegria,
E, arrebatado então nesse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh’alma aos céus subia.

Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em sucessivo e rápido transporte?!

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida, ou dar a morte,
Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.
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À MESMA SENHORA
SONETO VI


Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena,
Já cheia de solene majestade,
Já lânguida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Mulher, do canto teu no dom supremo
A dádiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.

E minh’alma, num êxtase embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gozá-lo, eterna a vida.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Luís da Câmara Cascudo (As mangas de jasmim de Itamaracá)

No ano de 1631, vivia na Capitania da Paraíba, Antônio Homem de Saldanha e Albuquerque, natural dessa mesma Capitania, que, encantado com a beleza e dotes de D. Sancha Coutinho, donzela de quinze anos, filha do abastado agricultor João Paulo Vaz Coutinho, senhor do "Engenho Andirobeira", situado a uma légua de distância da costa, aspirava a honra de a receber por esposa.

Dirigindo-se a seus pais, e solicitando a sua mão em casamento, eles a isso tenazmente se opuseram. Saldanha e Albuquerque, assim desenganado e desesperado pela recusa, que apagava todos os seus sonhos de felicidade e de amor, sem mais esperanças e ambições, alista-se no exército, e marcha para o campo da guerra, quando as forças holandesas invadiram as plagas de sua província natal.

Saldanha e Albuquerque foi um dos heróis do célebre ataque do forte do Cabedelo. Passou-se para Pernambuco, e em 1633, na gloriosa defesa do Arraial do Bom Jesus, caiu, como morto, ferido por uma bala.

Em 1646, anos depois de suas desventuras, reaparece Saldanha e Albuquerque nessa província, mas trajando o hábito de sacerdote, sob o nome de Aires Ivo Corrêa.

A chegada dele foi assim celebrada:

São treze anos passados,
E de Jesus ao mosteiro
Chega a Olinda em pobres trajes
Um sacerdote estrangeiro.

Traz o rosto macerado,
Que a dor o espr'ito lhe rende;
Nos olhos se lhe pagaram
As paixões que o mundo acende.

Em anéis d'ouro os cabelos
Pelos ombros se declinam;
Palavras que 'esse anjo solta
Só perdão e amor ensinam.

Dias depois, partiu o Padre Aires para a ilha de Itamaracá. Por esse tempo, já não existiam os pais de D. Sancha Coutinho; e ela, triste, abatida, e ralada de saudades, aí vivia então, em casa de seu irmão Nuno Coutinho, quando apareceu o padre em sua casa; reconhecendo naquele humilde sacerdote o seu desventurado amante, morreu subitamente.

Quis ser ela a derradeira
Em ver o santo varão,
Mal põe-lhe os olhos no rosto
"Ai, meu Deus!" e cai no chão.

Sobre o sepulcro de D. Sancha Coutinho, plantou o Padre Aires Ivo Corrêa uma mangueira, de cujos frutos provêm as mangas de jasmim, tão celebradas pelo seu aroma e delicado sabor.

E no lugar do sepulcro
Uma mangueira plantou,
Onde o hálito de Sancha
Até morrer aspirou.
Visões que ela Ih 'ofr'ecia
Não são d'humano juízo;
A sombra que ela lhe dava
Era a sombra do pr'aíso.

Inda em torno da mangueira
Se vê um lindo jardim;
E as mangas do Padre Aires
São as mangas de jasmim.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Estante de Livros (O Coração das Trevas, de Joseph Conrad)

Sinopse:


O livro escrito em 1899 apresenta a narrativa de Charlie Marlow, um alter ego de Joseph Conrad, sobre suas experiências nos confins da África. Marlow descreve os sombrios horrores enfrentados no coração da selva africana, como a morte iminente e a bárbara selvageria dos nativos. O objetivo de Marlow nesse ambiente hostil é encontrar o Sr. Kurtz, personagem envolto em certo misticismo. No decorrer de sua jornada, os caracteres da personalidade de Kurtz são apresentados, alçando paulatinamente esse personagem à uma condição divina. Entretanto, quando o encontro entre os dois finalmente acontece sobra certa decepção com o desfecho, dadas às expectativas criadas no decorrer da viagem.

Comentários:
Trata-se de um clássico da literatura universal que vale a pena ser lido. O enredo do filme "Apocalypse Now" de Coppola é baseado nesse livro, trazendo Marlon Brando no papel correspondente ao do Sr. Kurtz, entretanto, o filme não substitui a leitura do livro.

Conrad sabia como ninguém que o “o sentido de um episódio não estava dentro, como uma amêndoa, mas fora, envolvendo a narrativa”. E é nesse periférico que se nos apresenta um clássico. Não tenho a pretensão de iniciá-lo em Conrad, seria uma empresa fadada, de antemão, ao fracasso, sabedor que sou que “não há iniciação para tais mistérios”, esta tem que se dar na descoberta de suas lendárias páginas de aventura humana “no meio do incompreensível, que é também detestável”, mas, ao final, nos coroa com o halo literário que só os grandes autores nos sabem ofertar. Em Conrad, somos salvos pela sua “devoção à eficiência”, nada falta ou transborda; tudo na medida certa, no tempo certo. Em algumas páginas, o romântico se nos impõe, e temos a beleza em estado primevo; em outros momentos, o drama surge, a emoção dita e domina.

Contexto

O livro possuiu similaridades com a vida de Conrad. Oito anos e meio antes de escrevê-lo, o autor fora designado por uma companhia de comércio belga para trabalhar como capitão de um navio no Rio Congo. Na chegada à estação no Congo, ele descobre que o navio que iria comandar sofrera danos e necessitava de reparos. No dia seguinte, ele sobe o rio em outro navio, comandado por outra pessoa. Durante a jornada, o capitão adoece e Conrad assume o comando. Eles buscavam Georges-Antoine Klein, o agente da estação mais longínqua da companhia, que acaba morrendo na viagem de volta. O próprio Conrad fica muito doente e retorna à Europa antes de completar os três anos de contrato que havia assinado com a companhia.

Interpretação da obra:

O prof. José Monir Nasser dizia que para compreender a obra de Joseph Conrad, é preciso saber interpretar os aspectos simbólicos fartamente utilizados por ele. Se você ler a obra dogmaticamente, não vai compreender nada.

Joseph Conrad usa a África como uma metáfora da condição humana, da qual não estão excluídos os abismos e os horrores. Ele penetra num mundo estranho, quase surrealista.

O que Joseph Conrad quer nos contar é o dilema moral do ser humano e o caos do mundo em que vivemos. Mostra-nos a sociedade enlouquecida criada por Kurtz, que assume, nesta sociedade que criou, o papel de Deus, decidindo quem deve e quem não deve morrer. Nos mostra, ainda, que o ser humano vive num mundo concreto, natural e contraditório, onde existem aspectos benignos e malignos, tal qual a natureza que é também potencialmente contraditória e onde se encontram forças de sustentação e forças de repúdio.

O homem não é 100% natureza. Há uma parte nele que não pertence à natureza e que não é humana, mas Divina (o espírito que corresponde ao intelecto, à sabedoria e ao conhecimento instantâneo da realidade). O intelecto (não é a razão) faz a ligação do homem com o mundo transcendente, onde está a verdade. E nós humanos somos prisioneiros dessa tensão que é a essência da vida humana. Platão dizia que o homem é o intermediário entre o animal e o anjo.

Quando Kurtz retorna para a “civilização”, à beira da morte, desvela um pouco mais do mistério de tudo e emite sua expressão final antes de se quedar sem vida: “O Horror! O Horror!”, ele prenuncia o julgamento de sua alma na Terra. Marlow já não é o mesmo, frente à iluminação final de Kurtz.

Personagens

Charles Marlow: O protagonista no romance. Marinheiro do Império Britânico durante o final do século XIX e início do século XX, durante o auge do imperialismo britânico.

Sr. Kurtz: O personagem onde a história é centrada. Um comerciante de marfim na África e comandante de um posto de troca, ele monopoliza sua posição como um semideus entre os africanos nativos. Kurtz reúne-se com o protagonista do romance, Charles Marlow, que o devolve à costa via barco a vapor. Kurtz, cuja reputação o precede, impressiona Marlow fortemente e, durante a viagem de regresso é testemunha dos seus momentos finais.

Adaptações e influência

Orson Welles adaptou e estrelou Heart of Darkness, em uma transmissão da CBS Radio em 6 de novembro de 1938, como parte de sua série, The Mercury Theatre on the Air. Em 1939, adaptou a história ao seu primeiro filme para a RKO Pictures, escrevendo um roteiro com John Houseman. O projeto nunca foi realizado. Welles esperava ainda produzir o filme quando ele apresentou outra adaptação de rádio da história como seu primeiro programa como produtor-estrela da série de rádio da CBS This Is My Best. Seu estudioso Bret Wood chamou a transmissão de 13 de março de 1945, de "a representação mais próxima do filme que Welles poderia ter feito, aleijada, é claro, pela ausência de elementos visuais da história (que foram tão meticulosamente projetados) e a duração de meia hora da transmissão."

Uma antologia de televisão da Playhouse 90 pela CBS foi ao ar com uma adaptação livre de 90 minutos em 1958. Esta versão, escrita por Stewart Stern, usa o encontro entre Marlow (Roddy McDowall) e Kurtz (Boris Karloff) como seu ato final, e adiciona uma história de fundo em que Marlow é o filho adotivo de Kurtz. O elenco inclui Inga Swenson e Eartha Kitt. 
 
A adaptação mais famosa do livro é a cinematografia de Francis Ford Coppola Apocalypse Now de 1979, que move a história do Congo para o Vietnã e no Camboja durante a Guerra do Vietnã. No filme, Martin Sheen interpreta o Capitão Benjamin L. Willard, um capitão do Exército dos Estados Unidos com a missão de "encerrar" o comando do coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando). No filme, Brando atua em um de seus papéis mais famosos. 
 
Um documentário de produção do filme, intitulado Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse, expôs algumas das principais dificuldades que o diretor enfrentou ao produzir o filme até a sua conclusão. As dificuldades que Coppola e sua equipe enfrentaram espelhou alguns dos temas do livro. 
 
Em 1991, o autor e dramaturgo australiano Larry Buttrose escreveu e encenou uma produção teatral de Kurtz (baseado em Heart of Darkness), com a Crossroads Theatre Company, de Sydney. A história foi anunciada a ser transmitida como uma peça de rádio ao público australiano, em agosto de 2011 pela Vision Australia Radio, e também pela RPH – Radio Print Handicapped Network em toda a Austrália. 
 
Em 13 de março de 1993, foi ao ar pela TNT uma nova versão da história dirigida por Nicolas Roeg, estrelada por Tim Roth como Marlow e John Malkovich como Kurtz.

Em 2011, uma adaptação em ópera do compositor Tarik O'Regan e o libretista Tom Phillips foi estreada no Linbury Theatre da Royal Opera House, em Londres. Uma suite para orquestra e narrador foi posteriormente extrapolada a partir deste concerto.

Em 2012, o jogo de tiro em terceira pessoa, Spec Ops: The Line, mostra que se inspirou no livro para seu enredo, sendo considerado uma verão moderna de Coração das Trevas.

O livro também inspirou a banda britânica Iron Maiden em sua canção “The Edge Of Darkness” do álbum de 1995, “The X Factor”. 
 
Essa não é a única música do álbum inspirada em um grande clássico da literatura; “Sign Of The Cross” é inspirada na obra “O Nome da Rosa” de Umberto Eco e “Lord Of The Flies” inspirada na obra homônima do ganhador do Premio Nobel de literatura de 1983, o também britânico William Golding.

Conclusão:

Os mistérios em torno das personagens de Conrad simbolizam a impenetrabilidade misteriosa da alma humana, e as suas complicações.

"Vivemos como sonhamos - sozinhos"

“O objetivo que tento atingir, pelo poder da palavra escrita, é fazer você escutar, fazer você sentir e acima de tudo, fazer você ver. Isto, e nada mais, é tudo
”. Palavras de Joseph Conrad, talvez um dos mais vicerais escritores que a literatura ocidental já produziu.
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Jósef Teodor Konrad Korzeniowski nasceu em 1857, na cidade de Berdichev, na Ucrânia, uma região que foi parte da Polônia, mas na época estava sobre controle russo.

Nota: Alguns atribuem que Joseph Conrad nasceu em Berdyczow uma província ucraniana na Polônia daquela época. Hoje a cidade ucraniana Berdichev.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Varal de Trovas 503

 

Edwaldo Camargo Rodrigues (Trapaça do além)

Desde que, naquela tarde na praia, em plenas férias do último verão, Elvira morrera abatida por um mal súbito fulminante e inesperado, amigos e mesmo a gente nem muito próxima ao casal começaram a reparar nos modos do marido, de ordinário introvertido e taciturno, uma esquisita transformação, ainda que discreta e gradual.

Pois nem se passara tanto tempo depois do trágico acontecimento, e o homem agia agora de maneira solta e desempenada, sorria-se em volta com frequência e parecia estar de bem com a vida. Segundo murmuravam línguas mais ferinas, como se tivesse acertado na sorte grande.

– Ó Gouveia, acaso viste passarinho verde, criatura? – brincou algo intrigado o Adelino, naquela tardinha tépida de fim de outono, enquanto espaireciam ambos a flanar muito preguiçosos pela praça da matriz.

E a estranheza não fora provocada por acaso: haviam parado junto à carrocinha de sorvetes e, enquanto tardavam a decidir qual sabor da guloseima escolheriam, de repente, sem que se notasse qualquer causa identificável para tanto, estampou-se no carão barbado do viúvo um sorriso alvar, aparvalhado mesmo, e que se lhe estendeu de um lóbulo ao outro das orelhas, estas um tanto despegadas para a frente, à feição de abanos.

Note-se que, muito unidos desde pequenos, os dois camaradas tratavam-se mutuamente com toda a liberdade, sem qualquer cerimônia, feito irmãos. E por isso entre si certamente não deixariam existir segredos.

Demorou um pouco o interpelado até que atinasse com o apelo do outro, que para tanto sacudia-lhe com energia o cotovelo pontudo. O semblante persistia embevecido, entretanto. O homem parecia encontrar-se em puro estado de contemplação beatífica. Virou-se finalmente, inclinou a cabeça a fim de ser ouvido (pois o companheiro, sujeito gorducho e prognata, era-lhe bem mais baixo em estatura) e confidenciou:

– Ela permitiu agorinha mesmo que eu lhe contasse tudo. Mas olhe lá, apenas para você, a mais ninguém, estamos entendidos?

– Ela quem, meu caro?

– A minha Virinha, claro! Quem mais poderia ser, ora essa?

– Está falando de... da dona Elvira, sua finada esposa? – fez confuso o Adelino.

– Ela mesma. E está a dizer que sente saudades e manda muitas lembranças: a você, à dona Leocádia e à pequena Amelinha. Ah, e também ao Torquato! Veja só quanta gentileza! Afeiçoou-se de tal modo ao danadinho que nem lá no Céu o pôde esquecer! Pobrezinha, sempre quis criar lá no quintalejo um cãozito lebréu, engraçado igual ao seu. Mas, que fazer? Deus não quis... Eu e mais as minhas alergias, como você bem sabe...

Diabos! Com certeza o infeliz andava mal da moleira. Culpa talvez da solidão, à qual ainda não se afizera! Foi imediatamente aconselhado a consultar-se com o doutor Coutinho; roupas mais leves e comida fresca, muitas saladas, nada de embutidos e pão de véspera. Ora essa! que deixasse de lado a sovinice e que se contratasse uma criada habilidosa com o cozinhado mais a limpeza da casa. A Leó conhecia uma, e das boas, ótimas referências, inda que  feiosa e gorda como ela só; e assim, sim, que era melhor, pois que o povo não havia de maldar. Mulher moça e bonita com homem sozinho na casa, nunca se sabe, é prato cheio para mexericos...

– Mas pra que tudo isso? – rebateu contrafeito o enlutado. – Arranjo-me muito bem do jeito que as coisas estão. Não preciso de nenhum estafermo a abalroar-me os móveis com as ancas, derrubando ao chão louças e cristais. Para sua informação, ontem mesmo, hora do almoço, apareceu-me a Elvira a repreender: “Homem”, disse ela, “esta cozinha está imunda. É uma vergonha! Isto jamais aconteceu, enquanto eu vivia”. Larguei imediatamente o que estava fazendo, e lá fui eu, balde na mão e esfregão embaixo do braço. E, seguindo à risca as instruções que ela me dava a cada passo, num instantinho, pus tudo limpo a brilhar igual um brinco! E nem é tão difícil quando se tem esse tipo de ajuda, pode acreditar em mim.

– Está de brincadeira comigo, não é mesmo? Quer que eu acredite que sua mulher, a dona Elvira, alma santa que sempre foi, em vez do merecido descanso junto a Deus e aos anjos do Céu, por dá-cá-aquela-palha, corre de volta ao mundo, a fim de ocupar-se com os desleixos domésticos do marido? Tenha dó, ó Gouveia! Não me faça piadas com assunto tão sério, rapaz, que não tem graça!

– Se está duvidando do que lhe digo, olhe lá – apontou o parceiro. – Está vendo ali adiante o carrossel do parquinho girando cheio de crianças?

– Estou, e daí?

– Pois lá está ela, neste exato momento, e acena em nossa direção! Seja educado e acene de volta também! – ordenou a erguer a manzorra cabeluda.

– Compadre – ponderou o parceiro –, sei que sua esposa, a vida toda, foi uma pessoa de gênio alegre e jovial. Ao contrário de você, que é um ranzinza antiquado, gostava de festas, de receber e fazer visitas e tudo mais. Contudo, enfiar-se junto a pirralhos numa minúscula carreta em forma de joaninha a rodopiar tolamente em torno de um eixo, aí já é demais para uma pessoa adulta.

– Lino, você é um pedaço d’asno, mesmo! – sobreveio áspera a resposta. – O que você diz é ridículo! Ela está pairando um pouco acima, não enxerga, não, criatura? De modo que, dali, cuida dos pequenos a que não se machuquem e, ao mesmo tempo, também de nós. Para tanto, nem é necessário que desça ao solo; adeja feito um beija-flor, com a vantagem de nem precisar de asas!

Pobre amigo! Sem dúvida, os miolos se-lhe haviam derretido, não se encontrava outra explicação. Saudades, com certeza. O jeito, por enquanto, era entregar os pontos e entrar no jogo, pois se conhecem casos em que, contrariado, o sujeito pode torna-se enfurecido e perigoso. Mais tarde relataria o episódio ao doutor Coutinho, tintim por tintim. Este deveria conhecer algum colega, bom alienista, que pudesse recomendar.
– Ah, é verdade! Agora sim, estou vendo! – resolveu fingir o Adelino. E, não lhe ocorrendo ideia melhor, tateou: – Já que é assim, pergunte a ela o que trago na algibeira de trás da minha calça.

O outro encarou-o enfezado: – Olhe o respeito, homem! Não se trata aqui de truque de mágica barata. Se um espírito abençoado se apresenta a nós, deve ser por razões muito sérias, que não podemos compreender direito.

– Sem ofensa, por favor, desculpe, meu camarada. É que sempre me contaram que as almas têm o dom de adivinhar qualquer coisa e, além disso, sabem de tudo o que pode acontecer, quer no presente, no passado ou no futuro.

– Quem lhe disse isso?

– Sei lá, não lembro direito – desconversou. – Muita gente, acho. A primeira vez que ouvi essa história, eu era ainda um garoto. Foi a amiga de mamã que disse, ela era espírita ou algo assim. Por sinal, um tremendo mulherão! – devaneou o baixinho, rolando os olhos com luxúria. – Chamava-se Betânia, como aquela da bíblia. Ah, e fazia defumação, andando pela casa toda. Um cheiro horroroso, aliás!

E decidiu insistir: – Vamos lá, pergunte a ela, não vai desrespeito nenhum nisto. Fazemos o teste, e tenho certeza de que tudo vai dar certo.

O maluco pareceu convencer-se. Cerrou os olhos com força, levando os indicadores às têmporas.

– Você não vai gritar? – quis saber o amigo. – Ela está um pouco longe, pode não ouvir.

– Ora, não seja tão estúpido, ó Adelino! No plano espiritual, tudo é silencioso. Não precisamos de orelhas, as conversas e tudo mais ressoam direto dentro da cabeça.

– Nossa, que chato! Nem uma musiquinha ambiente pra aninar? E aquela conversa de coro dos serafins e coisa e tal, de que a gente escuta falar sempre?

– Calado, por favor! Não me atrapalhe a concentração – foi a ordem impaciente. – E pouco depois: – Já transmiti a ela sua pergunta boba. Achou esquisito, é claro, mas garante que poderá responder, desde que você se vire de costas. Sabe-se lá – considerou, medindo de esguelha o interlocutor –, imagino que o poder da vidência também tenha lá suas limitações, vai saber. Talvez sejam necessários alguns procedimentos, como aqueles que são feitos nas radiografias, por exemplo. Reconheça que as suas nádegas são... ããã, digamos assim: um tanto fornidas demais. Tentar enxergar através delas deve exigir esforço excepcional, não concorda?

Ambos nessa toada, e bastaram apenas alguns minutos mais para que a esperta “aparição” se pronunciasse mediunicamente através do consorte, de forma a descobrir-se não só o que havia no bolso em questão, como também os respectivos números e séries!

Seguiu-se o assombro total. Os cavalheiros ficaram boquiabertos.

– E mais – informou o viúvo –, Virinha prevê que as frações não serão premiadas, quando correr o sorteio da loteria, sábado próximo.

– Diabos! – imprecou o apostador, muito frustrado, já saindo do estado de pasmaceira em que havia pouco se encontrava. – Eu que punha tanta fé, caramba! Cheguei a sonhar com esses malditos palpites, acreditas? Foi tão real: minha saudosa mãezinha sacudia os bilhetes na minha cara e dizia: “Vai, meu filho, ser milionário nesta vida!” A velhinha era lida, sabias?, gostava de Drummond, veja só.

E, sem mais delongas, com um gesto de desdém, deitou os cupons azarados na lixeira pública mais próxima. – ...e ainda me custaram uns bons trocados, os miseráveis – comentou despeitado.

Passadas algumas semanas, outra vez na fila da agência de apostas com uma nova fezinha na cabeça, lembrou-se do amigo e estranhou: já não se encontravam fazia um bom tempo. Teria o coitado enlouquecido de vez? Preocupado, resolveu então visitá-lo.

– O senhor tá procurando o doutor Gouveia? – fez admirado o jardineiro sem largar a tesoura, pois que aparava as sebes junto ao muro. – O senhor não ficou sabendo, não? Parece que se mudou de mala e cuia lá pras Europas... Até deixou a casa à venda.

E como o visitante pareceu não compreender direito, confidenciou:

– Homem sortudo, o patrão! Corre à boca pequena que, passeando ali na praça, encontrou uns bilhetes de loteria que estavam premiados, e jogados na lixeira! Dá pra acreditar? Quem teria sido o imbecil que botou fora a própria sorte desse jeito? Só pode ser algum retardado, mesmo! Desse nem mesmo Deus deve ter pena...

Fonte:
Texto enviado por João Líbero.

Therezinha Dieguez Brisolla (Trovas com Humor) 2

"A gente estudamo ingreis
e num é que nóis se gabe...
nóis num gosta de franceis
e portugueis... nóis já sabe!"
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A nova rica encarrega
o estilista, em plena rua,
de tirar-lhe o que for brega...
e ela foi pra casa... nua!
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À pergunta: – Qual andar?
Responde o pinguço, a esmo:
– Onde quiser me levar...
já errei de prédio mesmo!
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Chegou a sogra "querida"
e a desgraça aconteceu...
Veio o cão... com a mordida,
deu a raiva... e o cão morreu!
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Chora de fome o povão!!!
Pro aperto, depois dos censos,
dá o governo a solução:
- Distribui milhões... de lenços.
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"Crescei e multiplicai"
disse o padre... E, em confissão,
se explica o farrista: - Uai...
sigo à risca a religião.
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– Depressa!... A bolsa ou a vida.
– Mas que sufoco, senhor!...
diz a livreira polida.
Não sabe o nome do autor?
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Deram sumiço ao rateio
do mensalão... e, por zelo,
o ladrão, lá do correio,
diz que não aceita... sê-lo!
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Diz ao dançar, enfadonha:
– Você sua!!! e isso mexeu
com o caipira... e o "pamonha"
diz, baixinho: – Vô sê seu!!!
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Diz, já caduco: – Que tédio!...
E a esposa, sempre calminha:
– Quer jogar dama?... e, do prédio,
ele jogou a velhinha.
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– É o piloto... tô em perigo!...
Tem fumaça... e um fogaréu!!!
– É a torre... reze comigo:
Pai Nosso que estais no céu...
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– É sedentário, se nota...
precisa andar, companheiro!...
– Isso parece anedota...
seu doutor... eu sou carteiro!
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Nas Bodas de Ouro, ela encuca:
– Quer, meu bem, uma canjinha?
Grita o velho: – Tá caduca?!
Que culpa tem a galinha?
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No quarto trancado, os dois,
"pra que a aluna se concentre".
E, nove meses depois,
enfim... a dança do ventre!
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Num dos quadros se consterna...
Vê o pintor... "mete o bedelho":
– Que homem feio!!! Arte moderna?
– Não, meu senhor... é um espelho.
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Num pagode eu fui dançar,
diz o velho... e "aconteceu"
quando a moça eu fui tirar:
– Quer dar-me a honra?... E ela deu!
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Olhando seu sangue nobre,
passou momentos felizes!...
Mas, morreu plebeia e pobre...
Sangue azul?!... Eram varizes!
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O trovador tá empolgado
e até troféu quer ganhar!...
O tema é "Mar"... e eis o achado:
- És meu mar... mas não faz mar!
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"Padre, eu sei quem é Jesus"...
diz o caipira e dispara:
"Conheço o sinar da cruz...
num sei é espaiá na cara!"
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Para o carro ao ver a farda...
– Cadê a carta?... Quero ver...
– Mas que vergonha, seu guarda!...
Eu fiquei de lhe escrever?
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Pedir votos, não foi "canja"!
Um político safado
criou confusão na granja
e saiu "ovocionado"!
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"Pescar, pra mim, é mania
e é estranho que a esposa deixe"!...
Ele vai pra pescaria
e ela vai "vender seu peixe"!
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Pôs anúncios nas estradas:
– "Por um módico aluguel,
moitas limpas, bem cuidadas"...
e inaugurou... seu "Moitel"!
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Pra casar, fingiu carinho
e ao tornar-se sua herdeira,
encomendou pro velhinho
um "pijama de madeira".
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Quando a esposa entra no mato,
sem vergonha... toda afoita...
o Matos se faz de "pato"
e espera o flagra... "na moita"!
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"Que belo corpo!" ele exclama,
sem ver que tem namorado...
"Que vontade de ir pra cama!"
E foi... sozinho e engessado!
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– Que consulta milionária!!!
diz o velhinho... e diz mais:
– Se a doença é hereditária,
a dívida é dos meus pais!
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Sem grana, o povo suspeita;
– Quem tinha fome, tá morto!...
– Quem diz que "tudo endireita"
mora na Granja do Torto!!!
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"Sultão velho vende, urgente,
tendas sem uso, importadas.
No aperto, dá de presente,
odalisca e esposa... usadas".
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Tomou um "chá de cadeira"
lá na dança do cortiço
e ao ver o esposo, ligeira
tomou um "chá de sumiço"!
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Vendo a grana do "pamonha"
ela diz, baixando o olhar:
– Num motel?... Tenho vergonha...
só se for familiar...
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"Zerou" no vestibular!!!
Com vergonha, ela tremeu!
Disse ao pai, pra disfarçar:
– Sabe a última?... Sou eu!

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela trovadora.

Sammis Reachers (Samuel "Bronson")

Samuel hoje é um motorista pacato, cansado de encrencas, aguardando a chegada da aposentadoria. Mas nem sempre foi assim. Quando jovem, Sassá era "da pá virada", como ele mesmo gosta de dizer.

Tendo iniciado ainda jovem sua carreira de rodoviário na cidade do Rio, após certo tempo Sassá veio trabalhar em Niterói, na empresa Ingá.

Acostumado ao ritmo alucinado do Rio de Janeiro, do lado de cá, todos os dias antes de iniciar os trabalhos, nosso amigo procedia a um sinistro ritual, que trouxera da cidade vizinha: colocava sua grande pistola Beretta 9mm cromada sobre o banco, e sentava-se com a perna por cima. O eventual desconforto já nem o incomodava mais.

Dia vai, dia vem, lá está Samuel, dirigindo pela linha 49, a linha-mãe de todas as tretas. Em certa altura, Samuel percebe que dois elementos suspeitos, que entraram no veículo, "deram um voo", ou seja, passaram por baixo da roleta, que ficava na parte de trás do veículo. Sassá, tranquilo e 'maquinado', seguiu a tocar. Alguns minutos transcorridos, os elementos se levantaram e anunciaram o assalto. Enquanto um fazia a coleta dos passageiros, o outro fora para a dianteira, e, com uma mochila vestida para a frente, sobre o peito, segurava alguma coisa com a mão enfiada por detrás da mesma.

Nisso Samuel, sangue-frio, não aguenta e pergunta:

- Que foi, rapaz? Está com dor de barriga? Tá aí assustado segurando a barriga...

- Dor de barriga nada, mano! Num tá vendo que é um assalto?!

Nesse momento, um idoso que estava sentado naquele banquinho pequeno, à direita do motorista, não suportou a forte emoção e começou a urinar nas calças. Samuel também não aguentou a cena, e desatou a rir. O bandido achou ruim;

- Tá rindo do quê, ô mané? Fica na moral aí! - E nesse momento sacou a 'arma'; um velho revólver calibre 22, enferrujado e capenga. Bem, velho ou não, é sempre uma arma. Samuel ficou em silêncio.

Após a coleta dos passageiros, os dois indivíduos disseram:

- Pare ali, em frente àquela rua.

Samuel parou. Mas, antes de abrir a porta, sacou tranquilamente a sua enorme 'ferramenta', que brilhava como uma estrela, apontou-a para a cara dos dois elementos que, meio que distraídos observando a movimentação na rua, se amontoavam na escada prontos para descer, Sassá então falou, com uma calma perturbadora:

- Antes de descerem, coloquem por favor tudo o que roubaram aqui no capô. Ah, e coloquem também o brinquedinho de vocês. Gostei dele, tão pequenininho... Vou levar para minha filha brincar.

Pegos de surpresa, e vendo o sinistro sorriso e o frio brilho no olhar de Samuel, os vagabundos não tiveram alternativa senão depositar tudo no 'altar' e descer em silêncio.

O cobrador Dada, e os passageiros não acreditavam no que viam.

- Você é maluco, é doido! ~ diziam, assustados.

- Agora senhores passageiros, cada um venha aqui e veja na mochila deles o que é seu.

Mas a notícia chegou a seu Francisco, o dono da empresa, que, claro, convocou Samuel para prestar esclarecimentos. Aquele tipo de atitude imprudente não poderia se repetir.

- Ora seu Francisco, do que o senhor reclama? Me dou ao trabalho de defender o seu patrimônio e o de seus clientes, além da honra de sua empresa, e o senhor ainda acha ruim?

Francisco, percebendo que o jovem Sassá era caso perdido, mandou que    ele voltasse ao trabalho, recomendando que ele tomasse cuidado, e evitasse andar armado.

Mas e os bandidos, estará você se perguntado? Não voltaram em busca de vingança, ou ao menos para tentar novos assaltos? Sim. Certa feita, tarde da noite, estavam os mesmos trapalhões em outro ponto, e ao verem o veículo aproximando-se, deram sinal. Reconhecendo-os à distância, Samuel parou bem defronte a eles, abrindo a porta dianteira para que pudessem vê-lo. Apenas olhou em silêncio. Os rapazes, ao reconhecê-lo, gritaram;

- Pode ir tio, pode ir! O senhor é maluco, contigo nós não vamo não!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia 
dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Carolina Ramos (Santinha)

Faminto de asfalto o carro engolia quilômetros com voracidade insaciável. A vontade de chegar levava a moça a pisar firme, incentivando a gula da máquina. Sentiu a boca seca.

O último povoado ficara para trás, não muito longe. Arrependia-se de ter seguido as determinações da pressa, não parando sequer para um refrigerante. Partira para um fim de semana campestre, ameno e repousante, flecha disparada em rumo certo, sem direito a desvios, nem interrupções.

Com alívio, vislumbrou, à beira da estrada, a tabuleta convidativa. Sugestão, alentadora: - "Água potável". Diminuiu a marcha ao cruzar a ponte.

Deixou o carro no acostamento e embrenhou-se pela trilha estreita, em declive, chegando até a grota gorgolejante descoberta ao fundo, sob o frescor da ramagem. Dois ipês floridos denunciavam a chegada da primavera, atapetando o pequeno oásis com flores macias vestidas de ouro.

Perdida a pressa após matar a sede, a jovem deixou, deliciada, que a água fresca escorresse, por algum tempo, por entre os dedos, "inodora e sem sabor", como aprendera na escola, e, também, insubstituível! Que bebida, por mais saborosa e perfumada, pode substituir um gole dessa linfa pura, quando o demônio da sede ateia fogo aos sentidos?!

Ajoelhou-se novamente junto à fonte, mergulhando o rosto na concha das mãos, deleitada com a ablução refrescante. Voltou-se sem urgência e sem enxugar a face.

Foi quando descobriu a pequena cruz, adornada de flores, escondida sob a ponte. A curiosidade levou-a até lá.

Em letras rústicas, o nome - Rosalinda - atravessava os braços de madeira pintados de branco.

Uma figura agachada sob a ponte, até o momento não pressentida, movimentou-se na penumbra. Sobressaltada, a jovem recuou.

- Num carece tê medo, dona. Ninguém vai lhe molesta. Reze uma prece préla ...e num dexe de rezá uma prece prêle, tamém.

Encorajada pelo tom pacífico daquela estranha e soturna voz, a moça arriscou:

- Mas... quem é ela?… E ele, quem é?!

Um instante de silêncio, um suspiro... e a voz roufenha fez-se ouvir de novo:

- Ela é Rosalinda. Ele... é o disgraçado qui matô ela...aqui mesmo, nesse lugá onde tá a cruz! A história é cumprida... mas si a dona tivé tempo, eu posso contá.

Arrepiada até a alma, a moça levou a mão à boca, arrependida de ter feito as perguntas. Teve ímpetos de fugir, mas a curiosidade, maior que os temores, fez com que ali ficasse. Assentiu:

- Conte... Conte logo... Tenho um tempinho de sobra...

A voz do homem fez-se mais grave.. Sob o peso da emoção... ele sussurrou, como se falasse consigo mesmo:

- Rosalinda era uma rosa! Uma rosa linda de morrê...! E pur causa disso memo, é qui ela morreu! Tinha só quinze ano! Era um botão cumeçando a se abri! Os cabelo era longo... dessa cô aí dos da moça. Bem talhadinha! Pura que nem a água dessa grota! Tudo o mundo amava Rosalinda! Mas, tinha um disgraçado que amava ela mais qui tudo esse mundo junto! Era o Tião! Cabôco sacudido, já cuns trinta e pocos ano de idade.

Home feito, Tião sabia o qui quiria! Num era mau sujeito, não... mai era grossêro... i num sabia perdê!

Pra mor dos seus pecado, Tião garrô de querê Rosalinda! Querê cum locura... e de quarqué jeito! Ele sabia e seguia tudos passo que a minina dava! Chego inté a propô casamento préla. I ela se riu dele... de gargaiada! Isso doeu dimais no coração do coitado!

Tudos dia, Rosalinda, cada vez mais linda, vinha, muntada num burrico, buscá um garrafão de água nesse memo corguinho. Tião sabia disso! Naquele dia, ele chegô bem in antes dela... i ficô amoitado bem aí, onde ocê tá agora.

Presa da emoção, a moça ouvia sem coragem de interromper o narrador, que prosseguia, em voz arrastada:

– Daquela veiz, a minina chegô alegrinha!... Vinha cantando baxinho... sem suspeitá o que ia acuntecê. I aí mêmo, onde tá fincada essa cruiz, Tião matô ela! Matô in disispêro pruquê ela nun quis sê dele! Matô... i fugiu, cubrindo a cara cô' as mão! Adispois, foi preso... mó di pagá... i amargá seu pecado entre as grade!

Trêmula, a moça conscientizou-se de que estava bem no meio do palco onde uma tragédia, há algum tempo, se consumara entre dois protagonistas - um homem e uma mulher... E que essa tragédia poderia bem ser repetida, a qualquer momento!

Tentou amenizar a gravidade da situação, simulando calma:

- O senhor conhecia Rosalinda?

- Mai é craro que sim! Tudo o mundo cunhecia ela! Rosalinda era uma santinha! Pur isso, dona, é qui eu sempre trago frô aqui onde ela drumiu pra sempre!

O adeus apressado não deixava dúvidas quanto à urgência da moça em se retirar de cena. Assim mesmo, apesar da penumbra, pôde notar que o maltrapilho tinha aspecto desagradável, possuindo apenas um olho, o que lhe tomava a aparência ainda menos atrativa.

De volta à rodovia, a amena temperatura do ocaso devolveu-lhe parte da tranquilidade. Baixou a janela do carro, deixando que as mãos finas da brisa penteassem para trás seus cabelos castanhos... da cor dos de Rosalinda - estremeceu com a lembrança!

Pouco depois, chegava à fazenda, onde era esperada. Só então, entre perplexa e estarrecida, tomou conhecimento da história completa.

A tragédia acontecera há quase vinte anos, Rosalinda fora morta exatamente como lhe contara o homem amoitado sob a ponte. Era mesmo, Tião, o nome do assassino - Tião Caolho! Preso porque, na mão fechada da vítima, fora encontrado o seu olho, arrancado na luta pelas unhas e pelo desespero da moça!

Dizia-se que, depois de muitos anos de confinamento, Tião, há pouco, fora posto em liberdade. Todos os dias levava flores para a menina morta! Um pobre coitado roído pelo remorso! Espécie de alma penada, que nem mais chegava a assustar!

Ninguém sabia dizer onde... e nem do quê o pobre vivia! O mais certo é que morasse lá mesmo, debaixo daquela ponte. Ninguém o via pedir esmolas... ou qualquer ajuda. Tião só pedia flores e rezas! Flores para enfeitar a cruz de Rosalinda. Rezas para aguentar a consciência pesada... na esperança de um dia (quem sabe?) conseguir o perdão de Deus... e o da sua Santinha!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
conto integrante do capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais. p. 253.
Livro enviado pela autora.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VII, motes e glosas


"É mais feliz a velhice
Que é por alguém amparada."


Distante da meninice,
Nos remansos da saudade,
Havendo fraternidade
É mais feliz a velhice;
Há mais encanto e meiguice
Sobre a fronte esbranquiçada...
Mais branda se torna a estrada
Que é pisada com amor,
Como dói menos a dor
Que é por alguém amparada.
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Esse pecado que eu fiz
Só Deus pode perdoar.


Até ficarei feliz
Se o padre, por caridade,
Perdoar pela metade
Esse pecado que eu fiz.
Pecar não foi o que eu quis,
Vou dizer aos pés do altar
Quando for me confessar
Ao capuchinho barbudo,
Porém pecado rabudo
Só Deus pode perdoar.
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Eu vim ao mundo chorando,
Mas meu destino é cantar.


Mamãe me disse que quando
A parteira entrou no quarto,
Sem prejudicar seu parto
Eu vim ao mundo chorando;
A vida foi-me ensinando
Sorrir mais do que chorar,
Pela sorte ou pelo azar,
Que não vale viver triste;
Por isso, a tristeza existe,
Mas meu destino é cantar.
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Não pode haver poesia
No cheiro da gasolina.


Se o poeta passa o dia
Nos manejos de uma bomba,
O sonho suspira e tomba,
Não pode haver poesia;
Tudo quanto a musa cria
Vai caindo na rotina...
A neurose da buzina
Do motorista insistente
Sufoca e mata o repente
No cheiro da gasolina!

(Ao poeta Manoel Juvêncio da Silva, 
que trabalhava num posto de gasolina, 
em Serra Negra do Norte)
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"Nosso velho burocrata
Diz não ter substituto."


O livro cheira a barata,
O balcão suja os clientes;
Cochila detrás das lentes
Nosso velho burocrata.
Falta o termo, esquece a data,
Mastiga mais um minuto...
Pra recolher o tributo,
O freguês fica maluco,
Mas, mesmo assim, o caduco
Diz não ter substituto.
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"O bolo tem quatro velas
Que o tempo não apagou."


Quatro luminosas telas,
Quatro cristais de magia,
Por quatro anos de poesia
O bolo tem quatro velas;
Quatro esperanças singelas,
Quatro dons que o céu guardou,
Quatro almas que Deus salvou
Com quatro messes divinas,
Quatro estrelas peregrinas
Que o tempo não apagou.
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“Quero que a morte retarde,
Mas, chegando, seja breve!"


Não sei bem se sou covarde,
Ou tenho alguma coragem,
Mas minha fatal viagem
Quero que a morte retarde;
Ela vindo sem alarde,
Juro não lhe fazer greve...
Que a terra me seja leve
E que a hora derradeira
Não me venha de carreira,
Mas, chegando, seja breve!
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"Se eu não matar a saudade
Ela finda me matando!"


A própria felicidade
Parece chegar ao fim;
Não sei que será de mim,
Se eu não matar a saudade!
Todo instante ela me invade,
Machucando, machucando!
Não sei, meu Deus, até quando
Terei essa dor no peito!
Eu já vi que não há jeito,
Ela finda me matando!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Eduardo Affonso (A alma das palavras)

Sou aquele sujeito que lê dicionário como quem lê romance. Cada verbete é um personagem, uma subtrama.

Sou aquele cara estranho que não acredita na alma da Bíblia, mas nas almas do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss.

Porque a estrutura de arame e madeira das esculturas de gesso, o elemento de sustentação em torno do qual se modelam as de barro é alma.

A parte correspondente à altura dos perfis metálicos é alma.

A peça de couro colocada entre a palmilha e a sola do calçado para reforçá-lo é alma.

A parte de um estopim que contém o núcleo de explosivo é alma.

Nos dicionários estão não somente os poemas que esperam para ser escritos, mas as palavras no palco onde podem ser outras, ser tantas.

Viúva é a última linha de um parágrafo impressa sozinha na parte superior de uma página. A primeira linha de um parágrafo impressa sozinha na parte inferior de uma página é uma linha órfã.

Adoçar é o ato de nivelar, aplainar, desbastar saliências ou alisar e aplainar madeiras.

Cada uma das folhas de uma dobradiça é uma asa.

O apêndice em forma de argola, ou semicircular, de certos utensílios, que serve para os segurá-los é asa.

São asas as duas pétalas laterais da flor das papilionáceas; o apêndice sedoso de certas sementes que permite ao vento disseminá-las.

É asa a ala lateral de um prédio, a nave lateral de uma igreja.

A viga onde engastam-se os degraus das escadas é banzo. A peça em pedra ou madeira, em balanço, que dá sustentação aos beirais e ao piso de sacadas ou balcões é um cachorro.

A pequena peça de madeira, em forma de cunha que evita o deslocamento das vigas ou dos sarrafos é uma espera. Num encaixe, a peça que traz uma saliência é macho. A que traz uma reentrância é fêmea.

No dicionário cada palavra –  macho, fêmea, cachorro, banzo, asa, viúva, órfã – tem uma multidão de almas à sua espera.

domingo, 23 de maio de 2021

Adega de Versos 23: Oscar Macedo

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 24

O estertor da madrugada borda de silêncios o amanhecer. Primeiros pios dos pássaros abrem a sinfonia matinal. A galharia em movimento - tico-ticos, canarinhos, os sabiás, as pombinhas caseiras . . .

No paroxismo da noite os encantos da madrugada são magias da natureza sem custo ou preço. Nas manhãzinhas chegam as ideias sonolentas, puras, fresquinhas.

Os acordes do novo dia nos põem a matutar na vida serena que a natura proporciona. Em tempos de fleuma, neuroses e individualidades exacerbadas, matutar é bom, é preciso, é saudável - respiramos a singeleza e a simplicidade de momentos pura inspiração.

Amanheceres, os gorjeios, a panda luz do sol, fazem parte do "salutaris" que nos sublima o ser e enleva a alma.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 26, 27 e 28


COLEGUISMO


Dois assaltantes assaltaram-se mutuamente e foram separados por um terceiro assaltante, que exigiu deles o produto dos dois assaltos. Como eram dois contra um, acabaram subjugando o terceiro e reclamaram não só a devolução do que lhe haviam cedido como ainda o que ele já trazia no bolso.

Foram atendidos, mas continuou a pendência, pois o assaltante n. 1 queria de volta o que perdera e o que ganhara, o n. 2 pretendia o mesmo, e o n. 3 tentou acalmá-los, ao mesmo tempo que pleiteava a devolução do seu e mais cinquenta por cento do que pertencia a cada. Esclareceu que, desistindo do total, contribuía para a união e harmonia da classe.

Os outros não se mostraram persuadidos e, à falta de tribunal especializado que dirimisse a questão, acordaram em submetê-la ao julgamento de um passante que, pelo aspecto, merecesse fé. O senhor bem vestido, de roupa escura, que se aproximou e ouviu a exposição do caso, abanou a cabeça lamentando:

— Não posso decidir contra colegas. Também sou assaltante.

E deu no pé, antes que os três lhe reclamassem o dele.
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DESTA ÁGUA NÃO BEBERÁS

— Por que Demétrio não se casa? Era indagação geral. Demétrio namorava, noivava, não casava. Sete dias antes do casamento, olha aí Demétrio fugindo. As versões eram múltiplas. A noiva é que o despedira. Tiveram uma briga feia. Gênios incompatíveis. Mal secreto. Intrigas.

Demétrio continuava a namorar, noivar e não casar. Não lhe faltavam noivas, pois era agradável, tinha status. Quanto mais se desmanchavam os projetos de casamento, mais apareciam mulheres dispostas ao desafio, exclamando:

— A mim ele não deixa na porta do mosteiro de São Bento.

Deixava. E quanto mais deixava, mais seu prestígio crescia. Concluiu-se que era sua maneira de afirmar-se.

Então Livaniuska decidiu enfrentá-lo. Noivou com ele e, uma semana antes do casamento, deu-lhe um fora solene. Demétrio quis reagir, explicou à repórter social que ele é que tomara a iniciativa, mas a mentira foi patente. Livaniuska foi contratada como atriz por uma emissora de tv e ficou célebre.

Daí por diante ela repetiu a carreira de Demétrio, noivando e desmanchando com inúmeros cavalheiros. No fim de cinco anos, Livaniuska e Demétrio casaram-se para sempre, como era fácil de prever mas ninguém previu.
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DIÁLOGO DAS NOTAS

A nota de cinco mil cruzeiros estava preocupada. Anunciaram para breve a sua entrada em circulação, e já passavam muitos sóis sem que a retirassem do almoxarifado. No almoxarifado, chega-lhe o zum-zum de que continuamente as coisas sobem de preço e as notas baixam de valor.

Embora os algarismos continuem os mesmos, cada dia significam uma realidade menor. Quando chegar minha vez de andar por aí — receia a nota de cinco mil — quanto valerão meus cinco mil?

Ao ser desenhada, sentira-se toda garbosa, cheia de minhocas na cabeça. Iria suplantar as coleguinhas, dando a vera ideia de grandeza. Mas até agora nada, e a nota inquieta-se:

— Quando vejo o cruzeiro metálico passar do tamanho de medalha de chocolate ao de botão de manga de camisa (e amanhã ele chegará talvez a semente de tangerina), sinto que meu futuro não será nada fagueiro. Vão-me reduzir às proporções de ficha de ônibus, feita de papel, e servirei para pagar a passagem de um coletivo circular. No máximo.

Estava nessa tristeza quando lhe apareceu, ainda em forma de neblina futura, o projeto da nota de cinco milhões, com efígie de cabeça para baixo, e sussurrou-lhe:

— Maninha, depois de mim virá a cédula de cinco trilhões, e assim sucessivamente, pois infinito é o número dos números. Até que um dia o homem se cansará de escrever no papel grandezas que são insignificâncias, e passará a escrever insignificâncias que valham grandezas. Já pressinto no horizonte maravilhosa nota zero, que nos resumirá a todas e alcançará o máximo valor metafísico.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 
Publicado em 1981.