sábado, 6 de fevereiro de 2021

Leon Eliachar (O Biquini)


Elza pediu dinheiro ao marido pra comprar um maiô, pois o verão estava chegando. Ele lhe deu cem cruzeiros:

— Com o troco você pode tomar um sorvete.

Ela desafiou-o:

— Cem cruzeiros não dá nem pro sorvete, quanto mais pro maiô.

Ele meteu a mão no bolso, puxou um maço de notas, fechou a cara:

— Então diz, de quanto é que você precisa.

Ela não se afobou:

— No mínimo, uns oitocentos. Depende do modelo.

Ele contou quatro notas de cem, jogou em cima da mesa com má vontade:

— Vê se te ajeitas com isso, agora não tenho mais.

Mostrou a carteira vazia:

— Olha aí, fiquei limpo.

À noite, antes do jantar, ele perguntou:

— Como é, comprou o maiô?

E ela:

— Só uma parte.

Ele não entendeu, pediu pra ver, ela foi buscar.

— Mas é iiiiiiiiiiiiiisso?

Ela exibia nas mãos um biquíni. Procurou esticá–lo ao máximo, não dava jeito. Ele insistiu:

— Cadê o resto?

— “Isto” foi o que seu dinheiro deu pra comprar, o “resto” custa mais quatrocentos.

Ele se enfureceu:

— Depois sou eu o louco. Com oitocentos cruzeiros, compro um biquíni, mas com uma mulher dentro.

Bateu a porta com força, gritou de dentro do quarto:

— Se quiser que vá assim mesmo que o papai aqui não trabalha na Casa da Moeda.

Elza deu uma gargalhada. No dia seguinte, na hora do café, colocou a “peça única” do biquíni, pôs os óculos escuros, pegou a bolsa e a barraca, passou na frente do marido, em direção à porta da rua. Ele engasgou:

— Aonde é que você vai assim?

— À praia, é claro.

Ele meteu a mão no bolso, deu-lhe mais quatrocentos cruzeiros.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

Francisco Elíude Pinheiro Galvão (Poemas Avulsos)

(o poeta faleceu dias atrás (fevereiro) de 2021, em São Vicente/SP)

MENSAGEM OCULTA

Já havia tinta na pena,
mas nada ela escrevia...
E a cada vez que eu tentava,
dela um pingo de tinta caía,
borrando o que
sobre o papel
escrito já estava;
algo que eu, de fato,
mesmo que quisesse ver,
quase não podia!...

Alguém escrevera com lágrimas
sua despedida em dor,
que dizia:

"– Onde quer que você vá
ou seja lá como for,
Se sentir saudades um dia
ou se acaso
se perder do amor,
Não jogue fora as pétalas
da rosa que um dia ornou
as páginas
onde um poema escrito,
Tais pétalas o inspirou!…”
* * * * * * * * * * * * * * * *  

CASINHA PEQUENINA

Era bem pequenina , ainda me lembro:
Uma porta, duas janelas;
pintada toda de azul
e rodeada de flores belas!...
De manhã, logo cedinho,
o sol que batia nela,
ia clareando casa a dentro
e a alegria em toda ela,
era de contagiar quem a via
ou talvez mais ainda diria
-quem sabe.

Uma certa Flor de tranças sorrindo
com o acanhado olhar ainda só dela,
e que também hoje em mim ainda persiste
a saudade da casinha pequenina,
E daquela Flor sorrindo na janela.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

DOCE FEL

Em delírios balbuciam os teus lábios,
no mais profundo flamar da tua alma
E em deleite a se cobrir são os mais sábios
os contorcidos afagos que me acalmam...

E se em segredo tal paixão se devaneia,
como posso suportar real tortura
que me inflama como a chama da candeia,
enquanto a tua face em minh'alma se emoldura?!

Oh! Céus!...Perdoa-me tal desventura!...
Mas é-me tão doce esse amargo fel,
que em delícia é posto em gostosura
O sabor irresistível desse mel!
* * * * * * * * * * * * * * * *  
 
ESQUINA POSTAL

Numa manhã ensolarada
rabisquei calçadas
com meus próprios passos
E pensei:
– Por que me canso de tanto andar,
escrevendo meus pensamentos
remetendo-os pra onde nem sei
ou se nem tenho certeza de sabe-los chegar!

E assim, ousei simplificar:
No fim da rua, uma esquina;
nela envelopei o meu pensar
e calmamente ela se encarregou de postar.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ABRAÇO

E se eu te disser
que todo amor do mundo
cabe dentro de um abraço!

O que me farias
com um abraço teu?!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

MEUS VERSOS TEUS

Quantas vezes te procurei
nas ruas frias do meu nada,
nas vazias madrugadas...
E em cada uma, em ninguém,
em nenhuma daquelas calçadas
te encontrei?!...

Quantas calçadas!...tantas e quantas
a medirem os passos meus,
que entre sombras, perdidos,
jamais encontraram os teu!...

E no decorrer nefasto do tempo,
apenas ânsia, saudades...tormento;
Lembranças guardadas a sós,
escritas a cada pensamento.

Hoje, apenas em poemas me achastes:
Poemas escritos em livros
que não são só meus
Mas, que são ainda só teus
Os versos que me inspirastes.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ÉS...

És o aceno distante
que me impõe limite no olhar...
És como o vento brando
acariciando meu rosto
mesmo sem me tocar...
És o alvorecer iluminando em mim
a mais completa inspiração!...
És como a voz que canta,
Encantando e acalentando
meus sonhos,
E sutilmente ensina-me a lição
de como se deve amar!
És poesia, soneto, sintonia...
És como uma voz sublime
que se faz ouvir num canto,
trazendo-me bonança, alegria,
Num perene bem-estar doce e sereno,
Como se fosse
O misterioso azul do mar
Num aceno,
Convidando-me a navegar!…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

A PENA

Inclinou-se a pena
sobre o branco papel inerte
E em compassados movimentos
vai se despindo devagar a cada linha,
Acariciando, em traços, a pálida nudez,
Que irresistivelmente aceita, inconteste,
o seu doce acarinhar,
em solto movimento circular!...
E assim se pondo,em sutil declínio
se deixa envolver por um beijo dado e repetido
sobre aquele macio corpo agora revestido
de tinta a se derramar
em perfeito orgasmo de inspiração,
Que, se também imóvel, agora se faz dormir
num profundo e inaudível ressonar...
E depois...cansada, se reveste,
e outra vez,
Volta a se guardar.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ACALANTO

Bem queria ser o ápice da ternura,
para afagar teus cabelos,
te embalar em poesia;
te abraçar com ventura...

Quisera ser
a água cristalina da fonte;
o raio de sol no horizonte
ou a brisa morna da aurora:
Para acariciar o teu corpo;
te fazer sonhar comigo
e ver-te pensar em mim ao despertar!...

Quisera ser um rouxinol
cantando na tua janela;
ver tuas mãos se entrelaçando
ao bocejar diante de um arrebol...
E no final do dia,
quando todo o céu se cobrisse de luz
sob o luar de morno encanto
a iluminar esse amor
Eu pudesse, sobre ti,
derramar-me em doce e terno acalanto.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *   

Francisco Elíude Pinheiro Galvão, filho de Francisco Lopes Galvão e Antonia Tonita Pinheiro Galvão, nasceu em Currais Novos/RN. Mudou-se para S. Vicente em 1978.

Poeta, autodidata, membro Efetivo da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios e Acadêmico Honorário da Academia Boituvense Letras e Artes na cidade de Boituva (SP), Membro do Grupo Literário "Poetas Vivos" de Santos (SP), Embaixador Universal da Paz pelo Cercle Universel Des Ambassadeures de La Paix -Suisse/France. Participações em diversas Antologias Poéticas no Brasil e Exterior, em diversos Concursos Literários (com premiações), em Revistas Literárias pelo Clube dos Escritores de Piracicaba(SP), Caderno Literário pela Editora Pragmatta(RS).

Faleceu de câncer em fevereiro de 2021.

Lima Barreto (Os Bruzundangas) III – A outra nobreza da Bruzundanga


No artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da nobiliarquia da República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e interessante.

A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito.

Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo governo, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.

A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em coisa alguma; não é firmada em lei ou costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.

Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre.

Muda o nome e passa a chamar-se: Ricardo Silva de la Concepción. Publica o anúncio no Jornal do Comércio local e está o homem mais satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por lá, encontra por toda a parte príncipes, duques, condes, marqueses da Birmânia, do Afeganistão e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres e titulares e eu não sou nada disso.

Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim de A. Carrillo, - nos Cavalheiros do amor, por exemplo – um título espanhol qualquer. Suponhamos que seja: Príncipe de Luna y Ortega.

O homem diz lá consigo: "Eu me chamo Concepción, esse nome é espanhol, não há dúvida que eu sou nobre"; e conclui logo que é descendente do tal Príncipe de Luna y Ortega. Manda fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba convencido de que é mesmo príncipe, e convencendo os seus amigos da sua prosápia elevada.

Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra, aconteceu uma anedota engraçada.

Ele se chamava assim como Ferreira, ou coisa que o valha. Fez uma viagem à Europa e voltou príncipe não sei de quê.

Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas e entregues a antigos servidores.

Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo arrimado a um bastão que escorava a sua grande velhice. Falou ao homem, ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem ensinara a armar laços e arapucas.

O novel príncipe formalizou-se e disse:

-- Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?

-- Quá o quê, nhonhô. Vancê não pode sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô, cumo é?

O recente nobre, ci-devant* Ferreira, estomagou-se e não quis mais conversas com aquele velho decrépito que tinha da nobreza ideias tão caducas. Não lhe deu mais trela.

Essa improvisação de títulos se dá pelas formas as mais estranhas.

Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejera* muito para arranjar alguns cobres, foi um dia para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no bolso. Fora das vistas paternas e sentindo longe a hipocrisia da Bruzundanga, meteu-se em todas as pândegas que lhe passou pela cabeça.

Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café cantante, uma delas deu na telha de tratá-lo de marquês. Era senhor marquês, para aqui; senhor marquês para ali.

O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência da dama, ele perguntou ingenuamente:

- Mas eu sou marquês?

- É! - disse a dama galante.

- Como?

- Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte francos e os nomes de seus pais, que já lhe dou a prova.

Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore genealógica, donde se concluía que descendia dos marqueses de Libreville.

A vista de tão poderoso documento, o cidadão que partira da Bruzundanga simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (E uma hipótese), voltou da estranja com o altissonante título de Marquês de Libreville. O pai continuou a chamar-se Chavantes; ele, porém, era marquês. O' manes de d'Hozier!*

Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra nobreza. São condes ou duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a ser conhecidos por dois nomes - coisa que é quase verificada entre os malfeitores e outros conhecidos da polícia.

Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se fez república, e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo regime monárquico, com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo "nobreza", mas taffetás.

No país, esses titulares de palpite não têm importância alguma na massa popular. Os do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina Sidonia de última hora; a elite, porém, a nata, -- essa sim! -- tem por eles o respeito que se devia aos antigos nobres.

O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá II, d'Africa.

A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos são berrados nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d'Alba, que, por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga, que desejava a incorporação do proletário à sociedade moderna.

Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem invectivas de profeta judaico; mas, quase sempre, o riso bonachão de Rabelais.

O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France: com ironia e piedade.
= = = = = = = = = = =
Notas:
Ci-devant =O termo ci-devant, por si mesmo pejorativo, vem do francês, significando "de antes" e aplicado aos membros da nobreza da França do Antigo Regime (i.é, da sociedade francesa pré-revolucionária) após terem perdido seus títulos e privilégios durante a Revolução Francesa.
Mourejera = trabalhara como um mouro.
O' manes de d'Hozier = não consegui localizar significado destas palavras.


Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.
O livro na íntegra pode ser baixado em pdf no site de Domínio Público

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 475

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando 10: Diferenças)


O RAPAZ POBRE FOI BUSCAR os documentos pessoais  que havia esquecido em casa.  De ônibus. Só no ponto, meia hora de espera, pela condução. Voltou ao local onde deveria estar duas horas e vinte minutos depois. Perdeu a entrevista que marcara às dez horas da manhã com a senhorita Érica, secretária do diretor geral da gigantesca empresa que produzia, vendia e exportava chocolates Brasil e mundo afora. Por conta disto, seu emprego foi para o espaço...

O RAPAZ METIDO A RICO foi buscar também os documentos pessoais que havia esquecido em casa. De táxi. Precisou empenhar o relógio com um amigo seu, filho do dono da padaria do bairro onde morava, para pagar a corrida. Voltou ao local onde deveria estar às dez horas da manhã, ou mais precisamente quarenta e cinco minutos depois. Perdeu a entrevista que marcara com a senhorita Érica, secretária do diretor geral da gigantesca empresa que produzia e vendia chocolates e, claro, seu emprego,  também foi para o espaço.

O RAPAZ RICO DE VERDADE foi buscar sua pasta de documentos que havia esquecido em casa. De helicóptero particular. Voltou ao local onde deveria estar dez minutos depois. A sua secretária, a senhorita Érica informou, logo que o viu entrar, que os dois candidatos que haviam marcado as entrevistas para aquele dia, simplesmente chegaram atrasados e ela, em face da urgência do preenchimento da vaga, colocara seu irmão Bebeto no lugar.

MORAL DA HISTÓRIA: Muitas vezes a diferença  não faz a diferença, mas ter a tal diferença ao alcance das mãos, dependendo da urgência, certamente esta simples diferença, fará, claro,  toda a diferença.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lima Barreto (Os Bruzundangas) II – A nobreza de Bruzundanga


Um leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.

O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro.

É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos do Tesouro da República da Bruzundanga.

Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados.

As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os "sebos" as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas de um otimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabe-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos revendedores de livros, por falta de compradores.

Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.

Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo mau juízo a meu respeito, vou dar-lhe algumas informações sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.

Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente, em artigos sucessivos, tratarei de outras instituições e costumes.

A nobreza da Bruzundanga se divide em dois grandes ramos. Tal qual como na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite.

A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtém títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.

Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda.

As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:

- Minha prima está casada com o doutor Bacabau.

Ele se julga também um pouco doutor. Joana d'Arc não enobreceu os parentes?

A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes podem alcançá-la.

Coisa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os exames da escola superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário...

Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.

O título - doutor - anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do dom, em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só o chama tout court - doutor Kamisão -, ele ficará zangado porque é coronel; se o designa unicamente por coronel, ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande consideração o seu título universitário-militar.

Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se devem designar tais senhores por - doutor coronel - ou - coronel doutor.

Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em coisas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.

Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis.

O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo.

Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.

Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.

Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente.

A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem.

A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.

Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores de grego no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.

Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade.

Como veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus diplomas.

Um empregado público qualquer que não seja graduado, não pode ser eleito deputado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionários que exercem cargos de natureza técnica, isto é, doutores. Já vimos que espécie de técnica é a tal tão estimada na Bruzundanga. Convém, entretanto, contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até lente da Escola dos Engenheiros, apesar de ter outros empregos rendosos, quis ser inspetor da carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu e, ao dia seguinte de sua nomeação, quando se tratou de afixar a taxa do câmbio, vendo que, na véspera havia sido de 15 3/16, o sábio doutor mandou que o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado objetou:

- Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?

- Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.

E a coisa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.

Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior cunho de verdade, apesar de que muita coisa possa parecer absurda aos leitores.

Certo dia li nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele país, o seguinte:

"F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer constar de seus assentamentos o seu título de doutor em medicina. -

Deferido
".

O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que se quer recomendar por ser médico, é fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.

Outros casos eloquentemente comprobativos do que venho expondo, posso ainda citar.

Vejamos.

Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados. Ainda mais.

Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatório, o governo da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer empregado de casa particular.

Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras dos anéis:

Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Engenheiros militares (Turqueza)
Doutores
Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada)

Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.

Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas Normais, com os seus bonés de  universidade americana, e os bacharéis em letras da Bruzundanga, porque lá não são considerados nobres, Entretanto, as primeiras têm um anel distintivo que parece uma vitrine de joalheria, pela quantidade de pedras que possui; e os últimos anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos esses formados são lá considerados como falsa nobreza.

* * * * * * * * * * * * * * * *

Continua…

Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.
O livro na íntegra pode ser baixado em pdf no site de Domínio Público

Sobre a Política de Textos do Blog


Tenho recebido textos/poesias e comentários que não condizem com a proposta da existência do blog.

Este é um blog de literatura propriamente dita. Textos ou comentários que abarquem ataques a pessoas específicas, organizações, governos e governantes, textos com conotação chula, apelo sexual, pornografia explícita ou implícita, etc. ou mesmo doutrinários, não serão postados.

Por favor, não insista em enviar estes textos. Existem sites e blogs destinados a desabafos, textos jornalísticos, protestos, fofocas, etc. Procurem-nos.

O blog possui mais de dois milhões de leitores e cerca de 17.500 postagens dos mais variados temas e gêneros que não ofendem a nossa política, e acredito que não seja nem 0,1% de textos/versos que existe no mundo todo em todas as épocas, e pretendo cumprir a proposta de divulgar o que for possível. Literatura, na acepção da palavra, é o que não falta.

Como especificado na coluna da direita do blog, abaixo das boas vindas a ele:

O editor do blog se reserva ao direito de não postar textos ou comentários que possuam conteúdo racista, machista, homofóbico, pornográfico, político, religioso, que ataquem pessoas ou organizações ou de qualquer forma preconceituosa.

Agradeço a compreensão.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Moacyr Scliar (O ladrão)


Quem descobriu o ladrão na garagem foi o meu irmão mais moço. Veio correndo nos contar, e a princípio não queríamos acreditar, porque embora nossa casa ficasse num bairro distante e fosse meio isolada, era uma quinta-feira à  tarde e nós não podíamos admitir que um ladrão viesse nos  roubar à luz do dia. Em todo caso fomos lá.

Espiamos por uma frincha da porta, e de fato lá estava o  ladrão, um velhinho magro - mas não estava roubando  nada, estava olhando os trastes da garagem (que era mais um  depósito, porque há tempo não tínhamos mais carro). Rindo  baixinho e nos entendendo por sinais nós o trancamos ali.

À noite voltou a mãe. Chegou cansada, como sempre  - desde a morte do pai trabalhava como costureira - e resmungando. Que é que vocês andaram fazendo? - perguntou, desconfiada - vocês estão rindo muito.

Não é nada, mãe,  respondemos, nós os quatro (o mais velho com doze anos).  Não estamos rindo de nada.

Naquela noite não deu para fazer nada com o ladrão,  porque a mãe tinha o sono leve. Mas espiávamos pela janela  do quarto, víamos que a porta da garagem continuava trancada - e aquilo nos animava barbaridade. Mal podíamos esperar que amanhecesse - mas enfim amanheceu, a mãe foi  trabalhar e a casa ficou só para nós.

Corremos para a garagem. Olhamos pela frincha e ali estava o velho ladrão, sentado numa poltrona quebrada, muito desanimado.

Aí, seu ladrão! - gritamos.

Levantou-se, assustado.

Abram, gente - pediu, quase chorando - abram, me deixem sair, eu prometo que não volto mais aqui.

Claro que nós não íamos abrir e dissemos a ele, nós não  vamos abrir.

Me deem um pouco de comida, então - ele  disse - estou com muita fome, faz três dias que não como. 

O que é que tu nos dás em troca, perguntou o meu irmão  mais velho.

Ficou em silêncio um tempo, depois disse: eu faço uma  mágica para vocês. Mágica!

Nos olhamos.

Que mágica, perguntamos.

Ele: eu transformo coisas no que vocês quiserem.

Meu irmão mais velho, que era muito desconfiado, resolveu tirar a limpo aquela história. Enfiou uma varinha pela  frincha e disse: transforma esta varinha num bicho.

Esperem um pouco - disse o velho, numa voz sumida.

Esperamos. Daí a pouco, espremendo-se pela frincha,  apareceu um camundongo.

É meu - gritou o caçula, e se  apossou do ratinho. Rindo do guri, trouxemos uma fatia de  pão para o velho.

Nos dias que se seguiram ele transformou muitas coisas  - tampinhas de garrafa em moedas, um prego em relógio  (velho, não funcionava) - e assim por diante. Mas veio o  dia em que batemos à porta da garagem e ele não respondeu.  Espiávamos pela frincha, não víamos ninguém.

Meu irmão  mais velho - esperem aqui, vocês - abriu a porta com toda  a cautela. Entrou, pôs-se a procurar o ladrão entre os trastes:

- Pneu velho, não é ele... Colchão rasgado, não é ele... 

Enfim, não o achou, e esquecemos a história. Eu, particularmente, fiquei com certas dúvidas: pneu velho, não era ele?

Fonte:
Moacyr Scliar. Histórias da terra trêmula. SP: Vertente, 1977.

Estante de Livros (Os Bruzundangas, de Lima Barreto)


Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.

Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.

Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no “Manda-chuva”; à justiça, “Chicana”. A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da "situação" ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo, todos flertam com a “situação” porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo!  quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a “Guarda do Entusiasmo”, constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados “de povo”, com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.

Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral "conforme se lê no prefácio" de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da “Arte de Furtar”: os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.

No início de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em que há a repetição da consoante “L” (aliteração), recurso chamado no livro de “harmonia imitativa”.

No capítulo “Um Grande Financeiro”, Lima Barreto critica os economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.

“Bruzundangas” é um substantivo feminino que pode significar “palavreado confuso, mistura de coisas imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada”. Neste livro, Lima Barreto fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a imprensa são causticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a construção de sua obra literária.

O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauria a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.

Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor, mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política internacional.

Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a nobreza doutoral e a que ele chama “de palpite”. A primeira é formada pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito, respectivamente.

Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.

Fonte:
Análise por Lucas Gomes, disponível em Passeiweb

Lima Barreto (Os Bruzundangas) I – Um grande financeiro


A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.

O país vivia de expedientes, isto é, de cinquenta em cinquenta anos, descobria-se nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, de modo que os países rivais, mais parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos semelhantes, acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que a grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora, financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo, do seu parlamento.

Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara um deputado que falava, muito em assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e outras coisas cabalísticas da ciência de obter dinheiro para o Estado.

A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da Bruzundanga, andando quase sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para não se esvaziar de todo.

Chamava-se o deputado - Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado, médico, engenheiro ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas todos tratavam-no de doutor.

O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria em matéria de finanças. Não citava Leroy-Beaulieu absolutamente. Os seus autores prediletos eram o russo-polaco Ladislau Poniatwsky, o australiano Gordon O'Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing e, sobretudo, o doutor Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital da Venezuela, que, por ser país sempre em bancarrota, dava grande autoridade ao financista de sua principal universidade.

O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de Gil-Blas de Santillana, em certas ilustrações do romance de Le Sage, com as suas barbas negras, cerradas, longas e sedosas, muito cuidadas e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol; os cabelos, abundantes e de azeviche; os olhos, negros e brilhantes; e não largava a piteira de âmbar, com guarnições de ouro, onde fumegava sempre um charuto caro.

O seu saber em matéria de finanças e economia política determinava a sua constante escolha para relator do orçamento da receita. Era de ver como ele escrevia um substancial prefácio ao seu relatório. Não me recordo de todas as passagens importantes de alguns deles; mas, de certas, e é pena que sejam tão poucas, eu me lembro perfeitamente. Eis aqui algumas.

Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso escreveu o seguinte trecho profundo: "Os governos não devem pedir às populações que dirigem, em matéria de impostos, mais do que elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população é em geral paupérrima e nós não devemos sobrecarregá-la fiscalmente". Não impediu isto que ele propusesse o aumento da taxa sobre o bacalhau da noruega, pretextando haver produtos similares nas costas do país.
 
No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele dizia: "É missão dos governos modernos, em países de fraca iniciativa individual (o nosso o é), fomentar o aparecimento de riquezas novas, no dizer de Gordon O'Neill. A província das Jazidas, segundo um sábio professor francês, é um coração de ouro sob um peito de ferro. O pico de Ytabhira, etc.".

E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para o aproveitamento do ouro e do ferro da província das Jazidas. A Câmara e o Senado ouviram-no e votaram algumas centenas de contos para uma comissão que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da rica província central. A comissão foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas na capital, em lugar semelhante ao Largo da Carioca, e o pico de Ytabhira ficou intacto.

A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez uma viagem à Europa, para estudar o mecanismo financeiro dos países do Velho Mundo. Voltou de lá naturalmente mais sábio; o que, porém, ele trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos elegantes do país, foram fatos, botas, chapéus, bengalas, dernier bateau, como dizem os smarts das colônias francesas da Ásia, da África, da América e da Oceania.

Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou a figurar nas seções mundanas dos jornais, e, vencendo o Senhor Mikel de Longueville, outro deputado da Bruzundanga, foi tido como o parlamentar mais chic do Congresso Nacional.

"A elegância do doutor Mikel de la Tour d'Auvergne é um tanto pesada; tem algo da solidez lusitana quando enrijou os músculos ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor Ben Karpatoso é mais leve, mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício do florete."

Tudo isto foi dito na seção elegante - "De Cócoras" - do Diário Mercantil, jornal da capital, seção redigida por escritor que tinha, em matéria de compor romances, um grande parentesco com aquela raposa das uvas, cuja história La Fontaine contou. "Ils sont trop verts, et bons pour des goujats", disse a raposa quando não pôde atingir as uvas. Lembram-se?

O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal redator da seção - "De Cócoras" - tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores serviços de sua profissão e recompensas conseqüentes.

Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a coisa; mas como tinha certeza de sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada solenidade -- lento, ereto como um soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne

Calmon era daqueles que se satisfazem em ser o segundo em Roma, e que segundo!

Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Karpatoso era casado com uma senhora da roça, muito segura das suas origens nobres; ela pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e pergaminhos não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo se enobrecido.

Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpagonescas de economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e biscoitos, que era obrigado a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia sobre seu subsídio teve a ideia genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim da capital da República da Bruzundanga.

Arranjou uma pessoa de confiança, que pôs à testa do negócio; e ei-lo a vender chá mineiro, alfavaca, "língua-de-vaca", cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba, catinga-de-bode, mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara, cascos de jacarés, corujas empalhadas, caramujos, sapos secos, jabutis, etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos feiticeiros da cidade, e os lucros foram grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas suas finanças, sustentar o seu salão.

Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava de gabar os árduos trabalhos do marido.

Certa vez, em que houvera recepção na casa do famoso deputado, quando ele já se tinha retirado para os aposentos do andar superior, a fim de estudar não sei o que sua mulher ficou na sala de visitas a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo da conversa, observou:

- Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.

Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião, apontou o dedo para o teto e disse sacerdotalmente.

- Ele!

Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:

- Sim: Deus!

- Não! - observou Dona Hengrácia. - Ele, o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda. Ele há de sê-lo em breve.

Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa conjugal, pois o novo presidente da Bruzundanga -- Idle Bhras - não fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.

O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira, a relatar orçamentos com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício, se fechavam com deficits.

Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:

-- Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita. Você tem estudos sobre finanças e não será difícil para você...

A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:

-- Não há dúvidas! Vou arranjar a coisa.

Três dias após, ele tinha as ideias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do dobro, os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa das latrinas, a água, a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as passagens de trens, bondes e barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de qualquer imposto. Calculando tudo, ele obtinha trinta mil contos. Levou a coisa a Idle Bhrás de Grafofone e Cinema, que gabou muito o trabalho de Ben Karpatoso:

- Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele - não sabes? - que foi presidente da Câmara de Guaporé, minha terra. Ele sempre teve ideias semelhantes às tuas, mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre meirinho... Que financeiro!

Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram contra elas.

Um objetou:

- Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.

- Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.

Um outro observou:

- Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.

- Não apoiado. O vestuário deve ser uma coisa majestosa e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão. Toda a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.

Um outro refletiu:

- Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e dentro do país.

- Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da família. Com as passagens caras, diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os adultérios e as seduções sensivelmente hão de ser mais raros.

Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o financeiro, foi arredando uma por uma as objeções que eram feitas ao seu projeto de orçamento da receita.

Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da Fazenda, com o orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de contrabando que teve de estudar, tanto meditou sobre eles, que um dia, telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso contrabando e prendera os infractores, desta forma: "Fuzile todos".

O homem estava louco e morreu pouco depois. A seção elegante de um jornal de lá, o Diário Mercantil - "De Cócoras" - fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não pagou, ao redator dela, nada pelo serviço assombroso que prestara às letras do país.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Continua…

Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 474

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 15 e 16


A 26a OBRA-PRIMA


Depois de anos de discussão, a Academia de Estocolmo, a Fundação Gulbenkian e o pen Club Internacional, reunidos sob os auspícios da Unesco, obtiveram que esta proclamasse solenemente as 25 obras primas de literatura de todos os séculos e povos, considerando-as patrimônio cultural da humanidade.

O escritor Elpídio Nosferatu não se conformou com esta resolução e empreendeu a batalha para ser excluído da relação o Édipo rei, de Sófocles, alegando ser suscetível de discussão a superioridade do seu autor sobre Ésquilo. No lugar, pleiteava a inclusão do seu romanpoensaio em três dimensões O dodói de Abílio Terciomundista, bem superior a toda a dramaturgia grega. Elpídio era visto simultaneamente na Europa e na América, debatendo com professores e críticos, concedendo entrevistas, expedindo telegramas, promovendo simpósios em favor de sua causa.

As instituições responsáveis pela relação de obras-primas recusaram-se a atendê-lo, mas ele foi incansável, para não dizer implacável, na postulação. Propôs-se a Abílio uma declaração subsidiária, que ele repeliu, declarando sua obra digna de menção honrosa. Pediu audiência ao papa, à Assembleia Geral da onu, aos soberanos reinantes e presidentes de República em exercício.

A ideia de interná-lo deixou de consumar-se, por falta de apoio legal. Abílio formou uma legião de adeptos que clamavam por justiça, e houve encontros armados em torno de sua pessoa. Temendo a erupção de uma guerra literária, a somar-se às outras que flagelam a humanidade, a Unesco declarou sem efeito a relação de obras-mestras, mas ficou na mente do povo a ideia de que o Dodói era, não igual, mas superior a todas as vinte e cinco.
* * * * * * * * * * * * * * * *  * * * * * * * * * * *

A VOLTA DO GUERREIRO

Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos
amores.

Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu dizendo:

— Não quero mais ver guerra diante de mim.

— Eu não sou a guerra, sou o amor, querido — respondeu a mulher,
assustada.

— Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na
luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.

— Então farei carícias lentas e suaves.

— O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme.

— Ficarei quieta, não farei nada.

— Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição.

Separaram-se para sempre.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. SP: Cia. Das Letras. Publicado em 1981.

Guimarães Rosa (Poemas Avulsos)


ALARANJADO


No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ANIL

O voo, quase vertical, da jaçanã fugida
levantou meu olhar,
no dorso esbelto, de zinco polido,
à calota do céu,
liso, congelado em calmaria,
e quase sólido, em cobalto líquido.
Pensei que a ave fosse frechar, de cheio,
para pescar peixinhos escamados de ouro:
as estrelas que mergulharam de madrugada…
E que a água longe se abrisse
nos nove círculos concêntricos
das nove beatitudes…

Mas o pássaro foi breve um grânulo dissolvido,
entre nuvens fugindo como flocos de espuma,
com a paisagem a luzir, no seio de uma bolha,
o sol a se desmanchar, como um sabão redondo,
e o céu todo água, num côncavo de bacia
onde lavam o dia…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

CARANGUEJO

Caranguejo feiíssimo,
monstruoso,
que te arrastas na areia
como a miniatura
de um tanque de guerra…
Gosto de ti, caranguejo,
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal…

Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamaçento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebê de celulóide.

Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo
ou um ídolo asteca…

És forte e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos,
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol…

Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor…
Para as luas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

DESTERRO

Eu ia triste, triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta,
bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta…
Coagulada em preto,
a noite isolou as coisas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ELEGIA

Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez…

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim…
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

LUNÁTICO

Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos…
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando…
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto…
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua…
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

PAISAGEM

No quadrilátero do arrozal,
verde-aquarela,

cortam-se em ângulos retos
canais azuis de água polida.

No ar de alumínio,
as libélulas verdes vão espetando
jóias faiscantes, broches de jade,
duplas cruzetas, lindos brinquedos,
nos alfinetes de sol.

Pairam suspensas, em vôo de caça,
horizontal,
e jogam, a golpes de tela metálica
das asas nervadas, reflexos de raios,
que hipnotizam as muriçocas tontas…

A libelinha pousa na ponta
do estilete de uma haste verde,
que faz arco (pronto!…)
e a leva direta à boca,
aberta e visguenta, de um sapo cinzento…

– Glu!… Muitas bolhas na escuma…
E as outras aeroplanam, assestando
para o submersível,
os grandes olhos redondos,
com quarenta mil lentes facetadas…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

VERDE

Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo…

Fonte:
João Guimarães Rosa. Magma. RJ: Nova Fronteira, 1997.

Marcelo Spalding (Ideia acordou sem acento)


Hoje acordei sem idéia. Tudo bem, ideia acordou sem acento. E esqueceram de avisar o Word, que acentuou ideia sem eu pedir! Bem, não vai ser fácil, mas esta será minha primeira crônica sob a égide da nova reforma ortográfica. Não vai ser nem um pouco fácil, afinal nunca passei por uma reforma antes, desde que aprendi a ler e escrever ideia tem acento... Mas seria bem mais difícil se eu fosse português. Ah, de facto seria.

Primeiro, é preciso lembrar que a intenção da reforma é mais política e econômica do que linguística. Embora não elimine de todo as diferenças ortográficas nem pretenda interferir nas culturais, a reforma ortográfica unifica a ortografia oficial do português, única língua importante com duas ortografias oficiais distintas, e por este motivo tem sido chamado de Acordo e não de Reforma. Não deixa de ser reforma, é claro. Mas com olhos mais voltados aos contratos internacionais que, quando redigidos em português, precisavam de duas versões, ao mercado de livros, que se via obrigado a fazer edição especial para além-mar, ou ao continente africano e suas potencialidades político-econômicas do que às reformas que cotidianamente se faz na língua.

Por exemplo: para para pensar. Agora não tem mais acento no "pára", então fica assim mesmo: para para pensar. Talvez essa falta de acento nos faça tropeçar na frase, e aí eu escreveria, como falo, "para pra pensar" e não "para para pensar", o que pode acarretar que daqui a uns cinquenta anos a preposição para vire definitivamente pra, a fim de diferenciar-se do outro para. Mas agora, pelo menos, qualquer texto em norma culta escrito em Porto, Lisboa, Luanda, Maputo ou Rio de Janeiro terá essa forma: para para pensar.

Claro que a reforma, ou acordo, traz consigo enorme polêmica. Para alguns a mudança é desnecessária, dispendiosa, coisa de partido de esquerda quando chega ao poder. Para outros, é tímida demais, deveria começar eliminando os hífens e, quem sabe, depois os acentos todos. Particularmente acho que o grande problema é que a mudança nos faz perceber como o tempo está passando e como precisamos mudar, nos atualizar. Mudar não só o acento da ideia como também as próprias ideias...

Porque mudar o dicionário é como mudar a posição solar, a divisão dos países, a cor da bandeira: desde que nascemos ideia é idéia e, de uma hora para outra, não é mais. E por que não é mais? Pelo mesmo motivo que um dia fora. Esse tipo de mudança numa instituição forte como a ortografia nos faz perceber, portanto, como também nossa língua é fruto de construções, construções que com o tempo se perdem e por isso passamos a tomar as palavras por códigos arbitrários. Mas observe, por exemplo, a palavra discar: daqui a cinco gerações continuarão usando discar com o sentido de telefonar, mas poucos lembrarão que, um dia, os telefones tinham um disco e para se falar com alguém era preciso discar... Outra palavra, para ficar nas afetadas pela reforma: mandachuva. Não tem mais hífen, porque ninguém mais lembra porque se uniu, um dia, "manda" e "chuva" para designar alguém mandão. Ninguém lembra, nem eu, mas alguma razão há de existir.

No frigir dos ovos, tenha a palavra "linguística" trema ou não as pessoas continuarão tendo dificuldades para lidar com as regras de acentuação ou com a confusa conjugação dos nossos verbos, palavras em inglês e, agora, em chinês continuarão tomando conta dos dicionários e homogeneizando as línguas e culturas como um todo e, pior ainda, as pessoas continuarão escrevendo pouco, muito pouco. Com ou sem acento, com ou sem hífen.

Para nós, que saímos da escola quando Plutão ainda era um planeta, evidentemente que adaptar-se à mudança será uma epopeia: teremos de desautomatizar a colocação dos acentos e do trema, comprar dicionários novos, mudar o corretor ortográfico do computador. Ou não, porque assim como nos anos setenta uma parcela da população manteve-se conservadora e insistindo no porto ou no cafézinho, é possível que muitos se neguem a adquirir novos hábitos e insistam a escrever como aprenderam na escola.

Mas no final das contas, fique tranquilo, tudo continuará como antes. As assembleias europeias continuarão protecionistas, confusas e poderosas. As mulheres seguirão nuas em pelo nas esquinas das cidades. Grupos antissemitas continuarão existindo, e também grupos antirreligiosos. A Coreia do Norte continuará antipática à Coreia do Sul. Delinquentes continuarão fazendo sequestros relâmpagos. Voos heroicos continuarão matando inocentes sob o aplauso de uma plateia patética diante da televisão. Pseudointelectuais continuarão dizendo que leem poetas neossimbolista, romances neorrealistas. E eu continuarei não gostando de pera, nem de geleia, nem de tramoia, nem de feiura.

Fonte:
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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 31) Acuado


TODA NOITE, A MESMA HORA, o telefone fixo toca na calmaria  serena da sala vazia. Miresola corre a atender sabendo, de antemão, o que acontecerá assim que tirar o auscultador do fone:

— Alô...?... Alô...?... Alô...?

Do outro lado da linha, nada:

—...

— Alô...?

—...

Miresola insiste, mas ninguém dá sinais de vida. Segue a mudez enervante e pasmacenta de sempre:

— Alô...?

O rapaz ouve nitidamente a respiração descompassada de quem está do outro lado. Escuta os dedos da criatura tamborilando no aparelho, mas voz, que é bom...

— Ora, vamos. Quem é você?  Diga seu nome!  Sua idade? O que quer? Porque me liga todas as noites no mesmo horário?

—...

- Fale! Se abra! Acaso se esconde de alguém?

—...

— Tem medo de quê?

—...

Miresola persevera, prolonga e se empenha ao máximo. Batalha na sua obstinação. Tenta de todas as formas puxar assunto:

— Olha! Não vou te machucar, nem morder. Ainda que pudesse chegar até você viajando pelos fios...

Nenhuma resposta. O emperramento em dizer algo esclarecedor se agiganta:

—...

— Converse comigo... Revele alguma coisa sobre você. Sonhos? O que gostaria de fazer? Ler, ouvir música, sair, ir ao cinema? Frequenta barzinhos? Amigos? Pratica algum tipo de esporte? Acaso você mora aqui no meu prédio? Já nos vimos no elevador?

—...

Sem mais nem menos, um clique interrompe a ligação. Fica no ar, além das reticências de respostas às perguntas formuladas, a taciturnidade do telefone. A afrasia da noite alta como que magicamente se quadruplifica lá fora.
                                        ***

Tem sido assim, meses a fio. Miresola não sabe mais o que fazer. Ou como agir. Sente que, de certa forma, se tornou refém daquela situação caótica e esquisita que não sabe explicar. Se sente como um idiota. Toda noite à mesma hora o telefone tilinta e ele, segue a conversar com alguém que não sabe quem é. Se pelo menos a pessoa ligasse para seu celular, ele identificaria o número de onde viera provinda a ligação e retornaria. Qual o quê!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 8


O BICHO


Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

* * * * * * * * * * * * * * * *  

O IMPOSSÍVEL CARINHO

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O INÚTIL LUAR

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
- É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
- "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O MENINO DOENTE

O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- “Dodói, vai-te embora!
“Deixa o meu filhinho,
“Dorme... dorme... meu..

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- “Dorme, meu amor.
“Dorme, meu benzinho...”

E o menino dorme.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O RIO

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

Lima Barreto (Clara dos Anjos)


Nota do blog:

“Clara dos Anjos” tem como tema central o racismo e o lugar ocupado pelas mulheres naquela época, principalmente as pobres e negras. Lima Barreto denuncia o racismo, a pobreza, a fome, miséria, a desigualdade social, as injustiças, o analfabetismo e o preconceito com características presentes em seus personagens.

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A Andrade Murici

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmente como outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangos e acompanhamentos para modinhas.

Aprendera a "artinha" musical na terra de seu nascimento, nos arredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não saíra daí.

Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito à aposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguira aquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo. Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha no local de seu nascimento e adquirir aquela casinha de subúrbio, por preço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o resto pagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava de plena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a um terço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadinho que era a cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque, etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado.

A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os lados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia até uma grande chácara de outros tempos com aquela casa característica de velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada de azulejos até â metade do pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvores que, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.

Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as "bíblias". Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora, enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles, porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo, querem dinheiro. Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloquência bíblica que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, os quais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.

Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado da chácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. As cerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticos divinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias, adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura com um certo ar de acampamento militar.

Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto, muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp. Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de sua existência. Se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!

Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia, ainda menos. Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso. Na tez, a filha puxava o pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura, ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava a média, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que não acontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha, a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia de vapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.

Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por ela grandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de "seu" Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela. Não que a venda de "seu" Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoas que lá faziam "ponto" eram de todo o respeito. O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem comportado. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, não possuindo — é preciso saber — nenhuma.

Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons, desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quando saía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecer bebericando ou lendo os jornais do senhora Nascimento. Silencioso quase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem o tratava por mister.

Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, que se tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as coisas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvas e abundantes.

Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramente poeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, se ainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dez volumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia uma conversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabia bem quem ele era; chamava-o muito simplesmente — o poeta.

Um outro frequentador da venda era o velho Valentim, um português dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvado para diante, devido ao hábito contraído no seu ofício de chacareiro que já devia exercer há mais de quarenta. Contava 'casos" e anedotas de sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do mais saboroso pitoresco.

Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, em alguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavam em casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.

Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo do tamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e ai, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e empedraçadas, deixavam-se ficar até à hora do "ajantarado" que a mulher e a filha preparavam. Só depois deste é que as cantorias começavam. Certo dia, um dos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença para trazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz de sua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas. Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenas denunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão.

A sua entrada foi um sucesso. Todas as moças das mais diferentes cores que, ai, a pobreza harmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, no Vaticano, causaria tanta emoção. Afirmavam umas para as outras:

— É ele! É ele, sim!

Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e, entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galante do cantor de modinhas. Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olhar guloso que deitou para os seios empinados de Clara.

O baile começou com a música de um “terno" de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.

Num intervalo Joaquim convidou:

— Por que não canta, "seu" Júlio?

— Estou sem voz, respondeu ele.

Até ali, ele tinha tomado parte no "remo"; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris de Clarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz, animou-se a fazê-lo também:

— Por que não canta, "seu" Júlio? Dizem que o senhor canta tão bem...

Esse — "tão bem" — foi alongado maciamente. O cantador acudiu logo:

— Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...

Concertou a "pastinha" com as duas mãos, enquanto Clara dizia:

— Cante! Vá!

— Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.

Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:

— Amor e sonho.

E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha, para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor, sibilando os "ss", carregando os "rr" das metáforas horrendas de que estava cheia a cantoria. A coisa  era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e
só Clarinha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou...

Dias depois, vindo à janela por acaso — era de tarde – sem grande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na coisa, tanto assim que disse candidamente à mãe:

— Mamãe, sabe quem passou aí?

— Quem?

— "Seu" Júlio.

— Que Júlio?

— Aquele que cantou nos "anos" de papai.

A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca com o Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal, acompanhadas de copinhos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardou que se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famoso modinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor de trovas.

Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos os quatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidas de bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-se pela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seios, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram só olhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes, quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo; depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas, para, afinal, vir a fatídica carta.

Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz da vela, medrosa e palpitante. A carta era a coisa mais fantástica, no que diz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha, porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, era original. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem de Clara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma coisa de novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabia bem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai; as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia de ser toda a vida assim como um cão sem dono... Os pais viriam a morrer e ela não podia ficar pelo mundo desamparada... Uma dúvida lhe veio: ele era branco; ela, mulata... Mas que tinha isso?

Tinham-se visto tantos casos... Lembrou-se de alguns... Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios estouravam de virgindade e de ansiedade de amar... Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costa tomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãe desconfiou e perguntou à filha:

— Você está namorando "seu" Júlio, Clarinha?

— Eu, mamãe! Nem penso nisso...

— Está, sim! Então não vejo?

A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara, logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança, uma carta ao modinheiro, relatando o fato.

Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família era bem superior à sua namorada. O seu pai tinha um emprego regular na prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério, ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capaz de admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulher não tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos e hábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e "novidades" da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão intima de ser grande coisa, de uma grande família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.

Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo da família; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes, Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam de nenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelos seus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa. Pequeno-burgueses, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situação do pai e a terem frequentado escolas de certa importância, elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir. Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-se dizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficando talvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, como não podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga paupérrima.

Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficiente para ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, a sua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas, recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica, sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seus olhos o ato sexual.

Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa de defloramento e seduções de menores. O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de rogos, de choro, de apelo - para a pureza de sangue da família, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasse influenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha de dezesseis anos, a quem o Júlio "tinha feito mal".

Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto à estreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração que agasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso, deixou-o por aí, à toa, pelo mundo... O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não se viam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara onde tinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústria e o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.

Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas; e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava, vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo do vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros bairros do Rio de Janeiro.

A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes de contas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dos seus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-o nos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, sem dizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo, por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:

"Queridinha confesso-te que ontem quando recebi a tua carta minha mãe viu e fiquei tão louco que confessei tudo a mamãe que lhe amava muito e fazia por você as maiores violências, ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te que preze bem o meu sofrimento. Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha.

Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido.
O teu Júlio".


Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seu namorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução era insuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda por cima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade critica que pudesse ter. A carta produziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos, esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados - tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amor por ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhas do violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela do quarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanha quase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.

Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambos não havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma coisa de estranho no ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele.

Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...

O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer a miúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez.

A mãe, porém, com auxilio de certas intimidades próprias de mãe para filha, desconfiou e pô-la em confissão. Clara não pôde esconder, disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadas diante do irremediável... A filha teve uma ideia:

— Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe?

A velha meditou e aceitou o alvitre:

— Vai!

Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.

— Mas o que é que você quer que eu faça?

— Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.

— Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele não amarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga! Ora já se viu! Vá!

Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior? Por quê? Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todas as moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.

Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:

— Mamãe, eu não sou nada nesta vida.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.