sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Roberto Pinheiro Acruche (Liberdade)


Sinos da Liberdade 
Seu badalar invade-me a alma 
Faz-me respirar o ar da esperança 
Sonhar o sonho de criança 
Acreditar que a liberdade 
É mais que um direito. 

Liberdade... Liberdade... 
De caminhar, falar, viver... 
Direitos meus e seus 
Dádiva dos céus, dádiva de Deus. 

Ah! Liberdade... 
Que Sua Majestade 
Dure para sempre – Inteira 
Do jeito e maneira 
Como sopra a brisa 
E as águas que descem nas cachoeiras. 

Há! Liberdade... 
De sermos iguais ou desiguais 
Que diferença faz? 
Não importa a cor, o grau, 
A religião, a cultura, a ideologia... 
Somos todos mortais.

Fonte:
Poema enviado pelo poeta.

Charles Baudelaire (Os Dons das Fadas)


Realizava-se a grande reunião das fadas, a fim de procederem à partilha dos dons entre todos os recém-nascidos das últimas vinte e quatro horas.

Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e fantasistas Irmãs do Destino, todas essas Mães estranhas da alegria e da dor: umas tinham aparência sombria e rebarbativa, outras a tinham folgazã e maliciosa; umas eram jovens, e sempre o haviam sido, outras eram velhas, e também sempre o haviam sido.

Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido, cada qual trazendo nos braços o seu recém-nascido.

Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstâncias Invencíveis, estavam amontoados ao lado do Tribunal, como os prêmios sobre o tablado, em dia de distribuição de prêmios. O que havia de particular no caso é que os Dons não eram a recompensa de um esforço, mas pelo contrário, uma graça concedida àquele que ainda não vivera, uma graça capaz de determinar seu destino e de se tornar tanto a origem de seu desdita, quanto de sua felicidade.

As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque era grande o número dos solicitantes, e o mundo intermediário colocado entre o homem e Deus está submetido, tanto quanto nós, à lei terrível do Tempo e de sua infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.

Na realidade, elas estavam tão atordoadas quanto ministros em dia de audiência, ou empregados do Estabelecimento de Penhores, quando um dia de festa nacional autoriza as restituições sem pagamento. Acho mesmo que olhavam, de vez em quando, para o ponteiro do relógio, com impaciência igual à de juízes humanos que, por estarem em função desde cedo, não podem deixar de sonhar com o jantar, a família e os queridos chinelos. Se, na justiça sobrenatural, há um pouco de precipitação e de acaso, não nos admiremos que o mesmo aconteça às vezes na justiça humana. Nós mesmos seriamos, em tal caso, juízes injustos.

Contudo foram cometidas, nesse dia, algumas tolices – que poderíamos estranhar, se a prudência, e não a fantasia, fosse a característica peculiar, eterna, das Fadas.

Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi concedido ao único herdeiro de uma família riquíssima que, não possuindo noção alguma de caridade, como também nenhuma cobiça dos bens visíveis da terra, devia encontrar-se, mais tarde, grandemente atrapalhado com seus milhões.

Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Força Poética ao filho de um triste pobretão, um cavoqueiro absolutamente incapaz quer de favorecer os dotes, quer de prover às necessidades de sua lamentável progênese.

Esquecia-me de lhes dizer que a distribuição, em tais casos solenes, não comporta apelação, e que nenhum dom pode ser recusado…

Todas as Fadas já se estavam levantando, julgando concluída sua tarefa, porque não restava mais presente algum, munificência alguma para atirar a toda aquela nulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modesto negociante, creio eu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrômicos a Fada que lhe ficava mais próxima, exclamou:

- Oh! Senhora! está-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno! Não quero ficar sem receber coisa alguma!

A Fada deveria ficar perplexa, porque não restava mais nada.

Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante conhecida, embora raramente aplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas deidades etéreas, amigas do homem, e muitas vezes forçadas a se adaptarem às suas paixões, tais como as Fadas, os Gnomos, as Salamandras, as Sílfides, os Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, – quero referir-me à lei que concede às Fadas, em semelhante caso, isto é, no caso de os presentes se acabarem, a faculdade de concederem mais um, suplementar e excepcional, sob condição, todavia, de ela possuir imaginação bastante para criá-lo imediatamente.

Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurança digna de sua situação:

- Dou a teu filho… dou-lhe… o Dom de agradar!

- Mas agradar como? agradar? por que agradar? – perguntou teimosamente o pequeno comerciante, que sem dúvida era um desses raciocinadores tão comuns, incapazes de se elevarem até a lógica do absurdo.

- Porque sim! porque sim! – replicou a Fada, colérica, voltando-lhe as costas; e, reunindo-se ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes:

- Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer compreender e que, havendo obtido para o filho o melhor quinhão, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutível?

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 1


ASAS DO TEMPO

Ah, essa vontade louca de ficar...
A vida inteira, se pudesse eu ficaria,
e a teu lado feliz eu viveria,
horas e horas, sem ver o tempo passar.

Ah, se pudesse, mas tudo me impede
e me arrasta, e me sufoca numa histeria,
que o espírito grita e o corpo cede,
prostrando-me nesta sofrida agonia:

Nas asas do tempo me faço refém,
pedaços de sonho de coisas esquecidas,
confundem-me a mente e a alma também.

Aceno um adeus e vou seguindo além;
como farrapos da vida enlouquecida,
parto e reparto e já não sou ninguém.

DEUSA

Um dia surgiste em minha vida
Trazendo ternura e luz em teu olhar
Tudo sorriu quando sorriste
E com teu riso foi-se o meu pesar.

E então vivemos  num terno amor
E tudo era alegria, e um doce sonhar
Até que um dia, para a minha dor
Partiste para nunca mais voltar.

Contigo levaste todo meu prazer
Toda minha alegria de viver
Levaste tudo o que trouxeste

Se devia mesmo tão cedo te perder
Deixando em minha vida tanto sofrer
Pergunto, ó céus, por que vieste?

FADA

Saudade eu tenho daquelas manhãs
Em que tênue névoa se desvanecia
E entre raios de  sepulcral luz
Sua figura querida aparecia.

E ficávamos, os dois, embevecidos
Nos olhares contritos, emudecidos
A  jogar no ar as nossas sortes
Estranha forma de vencer a morte.

Éramos felizes nas palavras sem fim
Feito cartas de amor eterno
Pirilampos de claras luzes.

Hoje não há mais você em mim
Tudo passou e só restou
Solidão em meio às cruzes.

INDIFERENÇA

Ah, esse cansaço de mim, que me aflige
Fazendo do meu querer, um não sei mais
Espezinha minha alma e me agride
Ceifando meu viver e minha paz.

Se eu soubesse um dia, o que sei agora
Poderia ser rio cristalino entre as serras
A correr alegre nos leitos de outrora
A viver feliz, fecundando a terra.

Mas, este tormento que me estremece
Envolto no silêncio que perdura
Aumenta mais e mais a minha dor:

É luz sem brilho, é dia que escurece
É noite solitária, vazia de ternura
É janela que se fecha para o amor…

MANHÃS

Eu quisera ser como as manhãs
Que surgem radiosas por entre serras
A embalar o doce sono do menino
Que sonha com um mundo sem guerras.

Quisera ser como a andorinha
Que busca horizontes a voar sem medo
E que depois, mais tarde se aninha
Num mundo de paz, de amor sem segredo.

Manhãs, sonhar, voar, amar, caminhar
tudo isso quisera ser, fazer, viver
Enquanto não saio de minha janela.

A manhã já se foi e também meu sonhar;
Fico a esperar o tempo correr
No silêncio, uma saudade dela…

NAS SENDAS DO ARCO-ÍRIS
                     (Valhala)

     Nunca precisei de alguém como agora
     que esta dor me aguilhoa e me tortura.
     Não sei o que será de mim nesta piora.
     Punge-me a alma a sofrer esta amargura.

     De repente, tudo ficou triste e confuso,
     em meio a letras, títulos e pendências.
     Não sei até quando ficarei recluso,
     à espera que resolvam esta carência.

     Enquanto isto a dor agride, me apunhala
     o corpo, tudo, o coração, a mente,
     tal qual ignota e venenosa serpente.

     Serei certamente levado por Odin ao Valhala...
     Nas sendas do arco-íris descansarei, e entre
     valquírias e deuses viverei eternamente…

PRIMAVERA

Distante de ti, passou por mim a primavera
Cheia de flores, num setembro festivo,
Quando tua presença, mais e mais quisera
Neste meu mundo, que de saudades vivo.

Cantos e odores, neste roseiral sem fim,
Doces lembranças de  feliz folgar
Fizeram-me esquecer um pouco de mim,
E sentir teu jeito gostoso de amar.

E absorto neste mundo de encantos
Esqueço da vida, nem sinto o tempo passar
Neste paraíso de adocicadas  primícias;

Mas, de mansinho, por entre folhas e flores,
Raios de sol despertam o meu sonhar
Findando assim, minha hora de delícias.
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Benjunior, pseudônimo de Benevides Garcia Barbosa Júnior, nasceu em Ipuã, antiga Sant’Anna dos Olhos D’Água, no Estado de São Paulo, em 20 de novembro de 1945. Foi professor, Diretor de Escola e Assistente Técnico Pedagógico. No final dos anos 60 começou a escrever poemas. Atualmente, aposentado residiu em Vinhedo/SP. Radicou-se em Maringá/PR.

Publicou “Instante Perdido” (1975), “A Cidade dos 400 Janeiros” (2010), “Do Outro Lado do Espelho” (2012), “No tempo das horas mágicas” (2014) e “Instante Perdido entre Poemas Esparsos” (2018).

Fontes:

Malba Tahan (A Dançarina Hindu)

As palavras com números entre parênteses após elas, veja significado nas notas ao final do conto.
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Ao atravessar, naquela tarde, a secular praça de El-Madhi, avistei um jovem e elegante cheique, de turbante verde, que saía do "ha-mã" (1) acompanhado de dois escravos negros. Mal pousara em mim os olhos, o desconhecido veio ao meu encontro e saudou-me à maneira clássica dos árabes nobres:

- Allah badich, ia sidi! Deus vos conduza, senhor!

- Katter quhairag - respondi, agradecendo. - Que Allah torne felizes os dias de tua vida, ó jovem!

E certo de que não me seria difícil, num rápido "haddis" (2) descobrir a identidade daquele amável muçulmano, disse-lhe com a intenção de provocá-lo a uma ligeira  palestra:

- Já sabes, meu amigo, que amanhã, ao nascer do sol, se Allah quiser, partirei para Basra chefiando a grande caravana de mercadores?

- Já sei, sidi - respondeu-me. - Estou bem-informado de todos os recursos de que dispõe a nossa caravana!

E o cheique acentuou bem a expressão "nossa caravana", fitando em mim os seus olhos vivos, com o disfarçado desejo de ler nos meus a surpresa que suas palavras deveriam causar-me.

Ualá! Nossa caravana? Eu conhecia todos os mercadores, guias e cameleiros; não havia, entre os homens que me acompanhavam - desde o beduíno sem nome ao mais orgulhoso chamir (3) um só que me fosse estranho. Como admitir que aquele desconhecido pertencesse ao número dos "meus viajantes"?

- Sou o cheique Fauzi Jabor, auxiliar do sultão Al-Mamum! - disse-me. - Devo ir a Basra levar uma ordem secreta para o governador. O grão-vizir já não vos falou a meu respeito?

Sim, era verdade. Recebera, dias antes, do primeiro-ministro, uma ordem para conduzir até Basra um emissário do califa. Já não era, aliás, a primeira vez que me acontecia levar nos ricos cheqdefs (4) da caravana mensageiros, escribas e agentes da corte muçulmana.

- Sinto-me feliz, ó cheique - tornei eu - por saber que vou tê-lo como companheiro de jornada. Que as grandes alegrias e os violentos simuns nos encontrem sempre juntos. A amizade desinteressada dos nobres só pode honrar aos aventureiros do deserto!
    
E, enquanto conversávamos alegremente como velhos amigos, íamos caminhando, lado a lado, pelas ruas mais movimentadas. A pequena distância, os dois escravos negros, os braços cruzados sobre o peito, nos acompanhavam solenes.

- Em que pretendeis ocupar, afinal, as vossas horas, em Bagdá, até o momento da partida? - perguntou-me o cheique.

- Penso em despedir-me de alguns amigos.

- Despedidas? - É tarde demais para tão ingrato passatempo! Informado pelos meus auxiliares de que seria obrigado a partir amanhã, à hora do "sefer" (5) já apresentei aos bagdalis (6) o meu salã (7) da ausência. Vou ver agora a famosa bailarina hindu que chegou ontem de Mossul. Dizem que é linda como a gazela. Queres ir comigo, chefe?

E vendo-me indeciso, insistiu, risonho, puxando-me pelo braço:

- Emchi narruhh! Vamos! Emchi narruhh! 

Há duas coisas que o árabe não sabe recusar: a tâmara quando é doce, e o convite interessante quando é amável!

- Emchi naíhbad! - respondi. - Vamos!
* * *
                 
A escrava que nos recebeu à porta, ao ouvir o nome do cheique, deixou-nos entrar imediatamente e conduziu-nos por um longo corredor, até uma sala espaçosa, ricamente 
decorada, onde já se achavam três outros visitantes.

Fauzi Jabor conhecia os presentes e a cada um deles dirigiu um afetuoso sala:

- Masa al-qhair, cheique!

- Kif el-solha, cheique!

Sentei-me numa grande almofada. Uma circassiana trouxe-me belo narguilé de prata com a brasa já preparada. Sentia-se no ar um cheio embriagador de fumo e haxixe.

Um dos visitantes, depois de trocar algumas palavras com um velho que se achava a seu lado, descruzou, lentamente, as pernas, levantou-se vagaroso como um elefante e veio acomodar-se junto de mim. Era barrigudo e disforme; usava turbante alto, malfeito, sob o qual aparecia um rosto redondo, esverdinhado, cheio de máculas escuras. Tinha os olhos vidrados, acéticos, tristonhos. 

- Uma palavra, cheique - disse-me, quase em segredo. - És o chamir da grande caravana que parte hoje (8) para Basra?

- Julgo que sim - respondi, sem procurar disfarçar a má vontade com que mal o podia tolerar.

Insistiu, impertinente, com a voz cada vez mais elevada.

- Dize-me, então, que ordem misteriosa é essa que o jovem Fauzi Jabor vai levar ao governador de Basra?

- Lamento não poder informar-vos. Excelência (9) - retorquiu, abespinhado. - Não sou um "djin" (10), nem aprendi com os marabus da Pérsia a descobrir pela cor da lua o segredo das coisas ocultas. Posso assegurar-vos que nem mesmo o meu nobre amigo Fauzi Jabor conhece os termos da carta de que é portador. É uma ordem secretíssima do nosso amo e senhor, o glorioso califa Al-Mamum, Emir dos Crentes. Só Allah sabe a verdade!
       
O meu inquiridor fez-se cor de cal, levantou-se visivelmente contrariado e foi retomar o lugar em que se achava, rosnando contra mim ameaças descabidas:

- Algum dia, "chamir", a tua discrição será causa de uma desgraça!

E ia eu intimamente desejar que a alma daquele estúpido fosse presa de Cheitã (11), o Execrável, quando Fauzi Jabor, o cheique, surgiu conduzindo, orgulhoso, pela mão, a formosa dançarina hindu.

Ao vê-la, fiquei deslumbrado. Jamais o destino fizera com que se me deparasse na vida criatura mais sedutora. Não fosse a barreira do pecado, não teria dúvida em elegê-la, naquele mesmo instante, a sexta mulher perfeita do Islã (12).

Fauzi Jabor não fazia empenho em ocultar que estava apaixonado pela infiel. E quem seria capaz de censurá-lo? A dançarina tinha, a meu ver, as treze perfeições que Allah, o Clemente, concede às huris do Paraíso. Treze? Treze, não. Treze menos uma, com certeza!

Com espanto dos circunstantes, a bailarina apontou para mim com seu braço nu:

- É aquele, Fauzi, o teu amigo chefe da grande caravana?

Levantei-me, respeitoso, e disse-lhe:

- Lála (13), não passo de um humilde beduíno do deserto. Seria, entretanto, capaz de enfrentar uma legião de panteras, se depois de tal proeza houvesse de ter por prêmio, a honra de ser incluído no número de vossos escravos!

Nazira - assim se chamava a bailarina - sorriu, lisonjeada.

- Mach Allah! Se me permitissem os distintos amigos aqui presentes, eu gostaria de dizer algumas palavras, em segredo, ao chamir da caravana!

- Pois não! Pois não! - exclamaram os cheiques.

Fauzi Jabor disse-me:

- Acompanhai Nazira, ó beduíno feliz! Ela confidenciou-me que tem um pedido a fazer-vos!

Atravessei a sala contando meus passos pela indizível timidez que me dominava. Ao passar junto do indiscreto barrigudo esverdinhado, o repelente cheique segurou-me pelo braço e bafejou no meu ouvido:

- Cuidado, chamir! Essa mulher tem um mistério qualquer na vida! Cuidado!

Levou-me a bailarina para um aposento vizinho. Uma escrava persa, com gestos lânguidos, ofereceu-me, num prato dourado, frutas, doces secos e um delicioso vinho de Chipre.

A bailarina, cruzando as pernas, numa atitude graciosa, sentou-se a meu lado. Um perfume esquisito evolava-se de rico hattarak (14); pequenina lâmpada azul, sobre um camelo de bronze, derramava pelas coisas uma aparência de mistério.

Chegava vagamente aos meus ouvidos o som triste de um alaúde.

- Já te disseram, chamir - começou Nazira, num tom mavioso de paciência - que eu tenho na vida um mistério? É inútil negar. Ouvi perfeitamente a insinuação daquele detestável chacal, que desde Mossul me vem perseguindo com suas toleimas. Infelizmente não é mentira. Pesa sobre a minha existência o tormento de um segredo. Já colhi a teu respeito, chamir, várias informações; estou certa de que és honrado, valente e discreto.

- Senhora! Outra recompensa não quero senão os elogios que brotam dos vossos lábios bondosos!
       
Nazira prosseguiu:

- Preciso do teu auxílio, chamir. E para que possas, com segurança, dispensar-me o teu amparo, é mister que conheças previamente o tão falado "mistério" de minha vida.

- Aos treze anos - começou, com suave mágoa - casei-me, por imposição de meu pai, com um gramático de Medina, homem perverso, avarento e sem escrúpulos. Antes mesmo que nascesse o nosso primeiro filho, meu marido vendeu-me a um aventureiro sírio, chamado Kaslã, que exibia pelas cidades bailarinas escravas. Foi então que aprendi o triste ofício que hoje exerço. Quando nasceu o meu filho, resolvi consultar sobre o seu futuro um certo marabu de Medina, que sabia ler na areia o destino das criaturas. Disse o marabu: - "Tua beleza, mulher, será a causa da morte de teu filho!" Chorei, desesperada, ao saber que o Destino havia escrito na página de minha vida tão trágico sucesso. Dizem os cristãos que é possível, às vezes, alterar-se a marcha dos acontecimentos. Que fazer? Mutilar-me? Sim, pensei nessa solução desesperada. Com dois ou três golpes seguros de punhal eu conseguiria, como uma selvagem africana, deformar para sempre as linhas perfeitas do meu rosto. Kaslã, informado desse hediondo projeto, ameaçou-me de morte! Por Allah! O gramático avaliara a minha beleza em vinte camelos de sela! - "Se tens medo do Destino - dizia-me - separa-te de teu filho. Manda-o para outra cidade, para outro país. Longe de ti ele estará salvo da previsão do marabu; a tua beleza não lhe poderá fazer mal algum". Segui tal conselho, que me pareceu razoável e certo. Mandei meu filho para Basra com alguns bons peregrinos que regressavam de Meca. E desde esse dia nunca mais tornei a vê-lo. Sei que vive ainda; é forte, e belo! Tem agora dezoito anos; chama-se Tasib Zalã e é muito estimado pela honrada família que o adotou.

- E agora, chamir - concluiu Nazira, com voz trêmula - que estás de posse do grande segredo de minha vida, vou dizer-te qual o favor que espero merecer da tua boa-vontade. Quero que procures em Basra meu filho Tassib; perguntarás por ele ao muezim da mesquita de Shara-Sawa. A meu filho entregarás esta pequena caixa na qual reuni, durante dez anos, algumas economias. Com esse auxílio meu filho poderá casar-se sem recear as mil dificuldades da vida.

E a bailarina colocou-me nas mãos uma pequena caixa repleta de moedas de ouro.

- Lála - exclamei - o filho querido receberá o prêmio da dedicação materna! Juro por Allah, o Exaltado, que empregarei todos os esforços a fim de fazer com que esta valiosa dádiva chegue às mãos daquele a quem é destinada!

E voltamos em silêncio para o salão. Fauzi Jabor e os outros cheiques divertiam-se com uma jovem escrava que cantava ao som de um alaúde um belo poema de Antar.

Todos os olhares convergiram, curiosos, sobre mim.

Assaltaram-me com desencontradas perguntas:

- Que te disse a bailarina? Qual é o mistério de Nazira? Que desejava ela, antes de partir a caravana?

- Não sei - respondia sempre aos importunos. - Não sei.

E não houve quem percebesse que eu escondia, sob o meu largo "keffié" de seda, a pequenina caixa cheia de ouro.

Nazira - a pedido dos cheiques - resolveu executar a chamada Dança do Dragão.

Aproximei-me de Fauzi e disse-lhe:

- Vou deixar-vos, cheique! Já vai adiantada a noite. Pouco falta para que o muezim chame os fiéis à primeira prece. Quero verificar se os camelos estão carregados, as tendas arrumadas e se os guias estão nos seus lugares.

- Está bem - respondeu-me o cheique. - Vou ficar aqui, neste delicioso refúgio, mais algum tempo. Na hora da partida - é certo - lá estarei com meus ajudantes e servos.

- Por Allah! Qualquer atraso será grande transtorno para a caravana!

A formosa dançarina, com seus trajes coloridos e vistosos, executava, diante de um grande tapete, onde aparecia a figura fabulosa de um dragão, uma das danças características da Pérsia antiga.

Tive a impressão de que o dragão fantástico rondava a bailarina, prestes a devorá-la. A fatalidade - dizia El-Hadira (15) - é como o dragão da lenda; cai de repente sobre a vítima para esmagá-la com as garras do Infortúnio!
* * *
    
A caravana estava pronta. Até os ajudantes de Fauzi Jabor, com os seus trinta e cinco camelos perfilavam-se já nos seus lugares.

Terminada a prece, disse aos guias da frente:

- Não é possível partir neste momento. O emissário do califa - pessoa da mais alta distinção, - ainda não chegou, mas não deve tardar. Sem ele a caravana não partirá. Esperemos.

Fauzi Jabor, entretanto, apesar do prometido, não aparecia.

Sentia-se que a impaciência agitava os beduínos. Um dos mercadores perguntou-me:

- Por quem esperamos, chamir? Será possível que a caravana fique o dia inteiro parado ao sol, à espera de um príncipe folgazão que se diverte com bailarinas?

Respondi-lhe, num tom áspero, que não admitia réplica:

- Aqui quem manda sou eu! Se não te serve a caravana, o deserto é livre! Podes ir!

E submissos, sem revolta, os homens por mim chefiados esperaram.

Infelizmente, porém, só no dia seguinte, ao pôr-do-sol, foi que Fauzi Jabor deixou a casa da formosa bailarina.

E a grande caravana, com um dia e meio de atraso, ganhou lentamente a estrada do deserto.

Os cameleiros resmungavam, maliciosos:

- A bailarina é bela! A caravana que espere! Os grandes albornozes brancos, soltos no ar, pareciam pássaros gigantescos que surgiam da terra.
* * *
    
Depois de uma jornada feliz - assim quis Allah, - entramos em Basra.

Havia, quando chegamos, na praça de Moalhim, um grande ajuntamento de populares. Informaram-me de que ali também se achava o governador Ahme-Ibn Makula, com seus auxiliares e escribas. Sem perda de tempo fui ter à presença do cádi, saudei-o respeitosamente e apresentei-lhe, em seguida, o chefe Fauzi Jabor, que se achava, então, a meu lado.

- Allah conserve o cádi! - exclamou o jovem Fauzi, aproximando-se. - O califa Al-Manum, Emir dos Crentes, ordenou-me que fizesse chegar às vossas mãos esta mensagem. Que Allah conserve o cádi!

O poderoso governador de Basra tomou da carta que o cheique trouxera, tirando-a com vagar do sobrescrito.

- Lamentável! - exclamou o governador, mal havia terminado a leitura do breve documento.

- Não posso infelizmente atender ao que determina aqui o glorioso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor! Esta ordem chegou-me tarde às mãos!

- Como assim? - interroguei, assustado. - O atraso com que chegamos teria sido causa de alguma desgraça?

- É verdade, chamir - concordou o cádi.

- Lamentável! - exclamou o Governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. Esta ordem chegou-me tarde às mãos.
    
- A mensagem que o jovem Fauzi Jabor trouxe de Bagdá era da maior importância; tratava-se de uma ordem do sultão para que fosse comutada a pena de morte de um condenado. O perdão do nosso generoso califa nada mais adianta; o infeliz prisioneiro foi executado hoje, pela manhã!

Naquele momento - sem que eu pudesse explicar o motivo -, um terrível pensamento atravessou-me o espírito. Era bem verdade que a famosa bailarina tinha sido, indiretamente, culpada da morte do condenado, pois fora ela quem, com seus encantos, prendera o cheique em Bagdá, retardando por muitas horas a partida da caravana!

- E como se chamava - perguntei - o infeliz que foi executado por não ter chegado a tempo a ordem do califa?

Um dos oficiais do cádi respondeu:

- Chama-se Tassib Zalã, o poeta, e era natural de Medina!

Ouviu-se um forte ruído metálico. Era a caixa de Nazira, que eu trazia oculta, presa sob o braço, e que por descuido meu caíra inesperadamente ao chão. As moedas de ouro espalharam-se pela areia. Fiz com que o valioso presente fosse repartido entre os pobres. Na verdade, a pessoa, a quem era destinado aquele ouro rutilante, não precisava mais das recompensas do mundo, pois já havia comparecido ao julgamento de Deus!
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Notas
1- Ha-mã – Casa de banhos.
2- Haddis - Conversa ligeira. Troca de palavras.
3- Chamir - Chefe de caravana.
4- Cheqdef - Espécie de palanquim, colocado sobre o camelo.
5- Sefer - Prece feita ao nascer do sol.
6- Bagdali - Indivíduo natural de Bagdá.
7- Sala - Saudação dentro do Islã.
8- Para os árabes a noite precede o dia. A noite do dia 7, por exemplo, começa ao pôr-do-sol do dia 6. 
9- Excelência - Tratamento dado aos vizires do sultão. Aplicado a qualquer pessoa é ironia.
10- Djin - Gênio dotado de grande poder.
11- Cheitã - Demônio.
12- Segundo as crenças muçulmanas, as mulheres perfeitas foram em número de cinco, e figuram, imortais, no Alcorão.
13- Lála - Tratamento respeitoso; significa senhora.
14– Hattarak – Vaso especial em que se queimam perfumes.
15– El-Hadira – Antigo poeta árabe.

Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Ialmar Pio Tressino Schneider (Melhor Idade)


Para voltar a escrever
Meus versos de campo e mato
Em minha mente retrato
Histórias do meu rincão,
Onde ao redor do fogão
Ouvia-as em noites frias,
Qual se fossem elegias
De nobre Revolução!

Nascido lá em Sertão,
Distrito de Passo Fundo,
Saí para rolar mundo,
Mas nunca tive coerência,
Pois não deixei a querência
E fui levando meus dias,
Curtindo minhas poesias,
Motivo desta existência.

É preciso ter paciência
E sempre confiar em Deus,
Porque nos desígnios Seus,
Só nosso Bem Ele quer;
Vamos cumprir o mister
De atingir os ideais,
Sem esmorecer jamais,
Para o que der e vier.

Nem esqueçamos sequer
De Sua bênção pedir,
Sabendo-se que hão de vir
Coisas boas pra o destino,
Pois nosso ser é divino
Nas Sagradas Escrituras;
Sejamos as criaturas
Sem cometer desatino.

E para entoar este hino
Em louvor ao Pai Supremo,
Aqui me encontro e não temo
Alguma contrariedade,
Pois me acompanha a saudade
De tudo quanto já fiz,
E espero viver feliz,
Hoje, na Melhor Idade...

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Arthur de Azevedo (Paulino e Roberto)


O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.

Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.

O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou sem dote.

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

– Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto!

– Oh! Vespasiano! não digas isso!…

– Digo, sim!, senhor! digo e redigo… – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!.

– Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

– Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

– Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

– Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

– Exageras.

Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

* * *

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida.

Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.

Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.

Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

* * *

Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

– Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes… – Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.

Escusado é dizer que mudou de nome.

Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse", arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio.

* * *

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.

Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.

O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto.

Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: – Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! -; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

– Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.

* * *

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem pôr.

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. 

Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe:

– Eu logo vi que você me dizia que não!

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

– Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:

– Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!

– Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.

(Correio da Manha; 5 de abril de 1903)

Fonte:
Arthur Azevedo. Contos Vários.