sábado, 14 de julho de 2012

Zé Lucas, Ademar Macedo e Prof. Garcia (Um Debate em Setilha Agalopada) Parte 4

91 - Zé Lucas
Nesta praia, que é sonho e que é prazer,
sinto o cheiro do mar em minha rua,
ouço o choque das ondas que se quebram
e o cantar da sereia seminua
que seduz o inocente pescador,
prometendo um castelo encantador,
e ele afunda no mar, olhando a Lua.

92 – Ademar
Pra enfeitar o céu Deus fez a Lua,
Ele fez o mar para os pescadores,
criou pássaros pra brincar na relva,
pra fazer trovas fez os trovadores;
trouxe fé e esperança aos mais tristonhos
fez a virgem que é pra viver de sonhos
e o poeta que é pra morrer de amores.

93 - Prof. Garcia
Deus querendo mostrar seus esplendores,
fez a bela plumagem do pavão,
o negrume das penas do urubu
mãe-da-lua, viver na solidão;
o tetéu dormir pouco e cantar bem,
a beleza do canto do vem-vem
e a corneta do canto do carão.

94 - Zé Lucas
Sertanejo sem terra, meu irmão,
cedo, acorda pra ver o sol raiar,
toma um simples café com tapioca,
beija alegre a rainha do seu lar,
que na cama singela tem um trono,
e pergunta: - quando é que vou ser dono
de um pedaço de chão para plantar?

95 – Ademar
Para mim Deus do Céu irá mandar
as sementes divinas da poesia,
e um roçado de verso agalopado
pra o terreno da mente Ele me envia;
e um inverno de rimas faz chover,
pra que eu possa plantar, depois colher
nesse chão, o meu pão de cada dia.

96 - Prof. Garcia
Assim que me levanto, todo dia,
logo aperto o rosário em minha mão,
ergo os olhos aos céus, faço uma prece,
peço a Deus a divina proteção;
bebo um bom copo d'água, e mato a sede,
beijo o rosto de Cristo na parede,
na moldura de um velho coração!

97 - Zé Lucas
Se chover poesia no sertão,
vou fazer meu chapéu de uma peneira,
pois não quero perder um pingo só
da fartura que desce na biqueira
e, pra o grande calor de minha febre,
eu arranco o telheiro do casebre;
quero é banho de verso a noite inteira!

98 – Ademar
Quero apenas, pra mim, uma goteira,
não precisa ser chuva intermitente;
alguns pingos trazendo inspiração
já gotejam em mim constantemente,
e uma chuva de verso a noite inteira,
me transforma no próprio Zé limeira
que foi grande poeta no repente.

99 - Prof. Garcia
Se chover poesia em minha mente,
minha roça do verso se renova:
vou plantar novidade em todo canto
e um poema na forma de uma trova;
pois, se não faltar chuva, nenhum dia,
nascerá no roçado da poesia
um repente bonito em cada cova.

100 - Zé Lucas
Uma roça bonita, grande e nova,
lá no alto sertão eu inda planto;
cavo a terra com a enxada da fartura,
ponho fé na semente, rezo ao santo
para que chova muito em meu roçado,
haja vagens de amor por todo lado
e haja espigas de paz em todo canto.

101 – Ademar
Nascem versos em mim por todo canto.
Eu já disse num mote improvisado
que os cabelos que nascem no meu corpo
têm nas pontas um verso pendurado;
e por eu ser um poeta do sertão,
nem preciso fazer adubação
pra nascer verso bom no meu roçado.

102 - Prof. Garcia
Com um poeta tão bom de cada lado,
meu repente não fica tão distante,
sou mais um menestrel buscando a rota
deste nosso momento itinerante;
percorrendo as veredas desta luta,
corro atrás da mais rara pedra bruta
e de um verso bem feito a todo instante.

103 - Zé Lucas
Se eu pudesse, da estrela mais distante,
ver de perto metade do infinito,
não seria somente um trovador,
mas o vulto fantástico de um mito
e, por certo, cantando nessa altura,
comporia, em meu sonho, a partitura
do poema que nunca foi escrito.

104 – Ademar
Dos poemas que eu fiz, o mais bonito,
onde o dom da poesia se revela,
foi num mote que deste para mim
inspirado no amor de uma donzela,
onde eu disse com voz quase divina:
“Se tiver que chorar, feche a cortina,
quando for pra sorri, abra a janela”.

105 - Prof. Garcia
Este mote, é a mais linda passarela,
onde a musa desfila todo dia,
é uma foto de triste despedida
e o retrato fiel de uma alegria;
tem a cara feliz de dois amantes,
traz o choro tristonho dos distantes
e a ternura do encanto da poesia.

106 - Zé Lucas
Outro mote que fiz, não lembro o dia,
talvez possa, também, merecer bis,
porque mostra que a vida tem primores,
mas tem coisas que deixam cicatriz,
e entre a dor que machuca e o amor que é lindo,
"se eu disser que não sofro estou mentindo,
mas não posso negar que sou feliz".

107 – Ademar
Outra estrofe bonita que eu já fiz,
a mais bela, talvez, da minha vida,
foi num mote criado por você
que escrevi com minh’alma enternecida,
e este mote dizia algo medonho:
“Quer matar um poeta, mate o sonho,
que o poeta sem sonho se liquida.”

108 - Prof. Garcia
Quando a voz de um poeta, se liquida,
fica a musa sofrendo na orfandade,
a tristeza batendo em cada porta
pranteando na dor da soledade;
e o poeta sem voz, desconsolado,
vê o sonho da vida sepultado
num jazigo de dor e de saudade!

109 - Zé Lucas
Vai ficando distante a mocidade
e eu não posso evitar, por mais que tente;
o passado se alonga a todo instante
e o futuro reduz-se de repente.
Já não sei se dirão que fiquei louco,
mas cem anos de vida é muito pouco
para os sonhos que tenho pela frente.

110 – Ademar
Ninguém sonha no mundo como a gente;
o poeta tanto sonha como faz.
Você sonha fazendo a trova linda,
lindos sonhos Garcia sempre traz;
e eu que sou um soldado fuzileiro,
sonho vendo no nosso mundo inteiro
todo mundo “lutando” pela paz!

111 - Prof. Garcia
Quem no mundo, faz tudo pela paz,
já é mais que herói, que vencedor,
vive um sonho, que pouca gente vive,
e alivia do peito tanta dor;
porque neste universo tão mesquinho,
quem plantar um espinho, colhe espinho,
mas quem planta uma flor, colhe uma flor!

112 - Zé Lucas
Neste mundo de Deus, por onde eu for,
buscarei praticar a lealdade;
viverei do suor de minha face,
pra fugir dos engodos da maldade,
pois meu pai me ensinou esta lição:
- a riqueza maldita do ladrão
dá prazeres, mas não felicidade!

113 – Ademar
Não conheço ninguém nesta cidade
mesmo tendo uma vida de apogeu,
carro novo, mansão, muito dinheiro
e outros bens que a vida já lhe deu,
que consiga viver no dia a dia
simplesmente fazendo poesia
e que seja feliz mais do que Eu.

114 - Prof. Garcia
Tudo quanto Jesus me concedeu,
sei que foi muito mais do que mereço,
se hoje a vida não anda cem por cento,
mesmo assim a Jesus eu agradeço;
porque tendo a riqueza que Deus quis,
sou amante de um mundo mais feliz
onde a vida é um eterno recomeço!

115 - Zé Lucas
Sou tratado por todos com apreço,
muito embora me julgue pequenino;
as grandezas terrenas não me iludem;
para o lado do orgulho não me inclino,
pois não quero ser vítima do estresse
de quem tem muito mais do que merece,
mas reclama de Deus e do destino.

116 – Ademar
Eu não vou reclamar do meu destino,
sou alegre demais e não padeço
apesar de ser hoje um mutilado
vivo muito feliz e reconheço,
não almejo mais nada conseguir,
o que Deus nos permite possuir,
eu já tenho até mais do que mereço.

117 - Prof. Garcia
Nas veredas do mundo, eu subo e desço,
mas às vezes, perdido, eu fico à-toa,
paro e penso nas garras do destino,
e na sorte, que tem cada pessoa;
porque sigo correndo em disparada,
levantando a poeira pela estrada,
na certeza que a vida também voa!

118 - Zé Lucas
Fico muito contente quando soa
o baião da viola nordestina
num alpendre singelo e acolhedor,
quando a noite inspirada descortina
sobre o cume das serras do sertão,
e era mais carregado de emoção
na brandura da luz da lamparina.

119 – Ademar
O bailado que faz a concertina
musicando um forró de Gonzagão,
ta guardado no vídeo da memória
que eu revejo repleto de emoção;
pois relembro demais dos tempos “ido”,
dos forrós que dancei no chão batido
das latadas, e alpendres do sertão.

120 - Prof. Garcia
Inda guardo as batidas do pilão,
com mamãe, de manhã, pilando arroz,
eu mais novo, mais forte e mais disposto,
no rojão, eu na frente, ela depois;
nunca vou me esquecer desta contenda,
o pilão do passado virou lenda,
mas não sai da memória de nós dois!

Teresa Lopes (A Abóbora Menina)

Para a Inês,
que também um dia voará.


Brotara do solo fecundo de um quintal enorme, de uma semente que mestre Crisolindo comprara na venda. Despontava por entre uns pés de couve e mais algumas abóboras, umas suas irmãs, outras suas parentes mais afastadas.

Tratada com o devido esmero, adubada à maneira, depressa cresceu e se tornou em bela moçoila, roliça e corada.


Os dias corriam serenos. Enquanto o sol brilhava, tudo era calma naquele quintal. Sombra dos pés de couve, rega a horas devidas, nada parecia faltar para que todos fossem felizes.

As suas conversas eram banais: falavam do tempo, de mestre Crisolindo e nunca, mas nunca, do futuro que os aguardava.

Mas Abóbora Menina, em vez de se dar por satisfeita com a vida que lhe havia sido reservada, vivia entristecida e os seus dias e as suas noites eram passados a suspirar.

Desde muito cedo que a sua atenção se virara para as borboletas de cores mil que bailavam sobre o quintal. E sempre que alguma pousava perto de si, a conversa não era outra se não esta:

– Dizei-me, menina borboleta, como fazeis para voar?

– Ora, menina abóbora, que quereis que vos diga? Primeiro fui ovo quase invisível, depois fui crisálida e depois, olhe, depois alguém me pôs estas asas e assim voei.

– Como eu queria ser como vós e poder sair daqui, ver outros quintais.

– Que me conste, vós fostes semente e vosso berço jaz debaixo desta terra negra e quente. Nunca por aí andámos, minhas irmãs e eu.

A borboleta levantava voo e Abóbora Menina suspirava. E suspirava. E de nada serviam os consolos de suas irmãs, nem o consolo dos pés de couve, nem o consolo dos pés de alface que cresciam ali perto e que todas as conversas ouviam.

Certo dia passou por aqueles lados uma borboleta mais viajada e foi pousar mesmo em cima da abóbora. De novo a mesma conversa, os mesmos suspiros.

Tanta pena causou a abóbora à borboleta, que esta acabou por lhe confessar:

– Já que tamanho é vosso desejo de voar e dado que asas nunca podereis vir a ter, só vos resta uma solução: deixai-vos levar pelo vento sul, que não tarda nada aí estará.

– Mas como? Não vedes que sou roliça? Não vedes que tenho engordado desde que deixei de ser semente?

E a borboleta explicou à Abóbora Menina o que ela devia fazer.

A única solução seria cortar com o forte laço que a ligava àquela terra-mãe e deixar-se levar pelo vento.

Ele não tardaria, pois umas nuvens suas conhecidas assim lhe haviam garantido. Mais adiantou a borboleta que daria uma palavrinha ao tal vento, por sinal seu amigo e aconselhou todos os outros habitantes do quintal a segurarem-se bem quando ele chegasse.

Ninguém gostou da ideia à exceção da nossa menina.

– Vamos perder-te! - lamentavam-se as irmãs.

– Nunca mais te veremos. – sussurravam os pés de alface.

– Acabarás por mirrar se te desprendes do solo que te deu sustento.

Mas a abóbora nada mais queria ouvir. E logo nessa noite, quando todos dormiam, Abóbora Menina tanto se rebolou no chão, tantos esticões deu ao cordão que lhe dera vida, que acabou por se soltar e assim permaneceu, liberta, aguardando o vento sul com todos os sonhos que uma abóbora ainda menina pode ter na sua cabeça.

Não esperou muito, a Abóbora Menina. Dois dias passados, logo pela manhãzinha, o vento chegou. E com tal força, que a todos surpreendeu.

Mestre Crisolindo pegou na enxada e resguardou-se em casa. As flores e as hortaliças, já prevenidas, agarraram-se ainda mais à terra.

Só a abóbora se alegrou e, peito rosado aberto à tempestade, aguardou paciente a sorte que a esperava.

Quando um remoinho de vento pegou nela e a ergueu nos ares, qual balão liberto das mãos de um menino, não sentiu nem medo, nem pena de partir.

– Adeus, minhas irmãs!... Adeus, meus companheiros!...

– Até... um... dia!...

E voou direitinha ao céu sem fim!...

Para onde seguiu? Ninguém sabe.

Onde foi parar? Ninguém imagina.

Mas todos sabem, naquele quintal, que dali partiu, numa bela tarde de vento, a abóbora menina mais feliz que algum dia poderá haver.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

Francisco José Sinke Pimpão (Lançamento de “O Protetorado”, 31 de Julho, em Curitiba)

Prezado(a) amigo(a),

No próximo dia 31 de julho, estarei lançando meu 4º livro (o 2º romance) intitulado O PROTETORADO.

O lançamento acontecerá em um evento denominado III Literatyba, patrocinado pelo meu novo editor, a Juruá Editora, tendo Anthony Leahy à frente do Projeto Semeando Livros.

Sua presença é muito importante para mim. Afinal, o que seria dos homens sem seus amigos?

Conto com vocês em mais essa aventura literária. Seu apoio no dia do lançamento será um incentivo para que eu continue a trilhar o caminho das letras.

Abaixo, o dia, local, horário e endereço do evento
Um abraço

JURUÁ SEMEANDO LIVROS
Data: 31 de Julho de 2012
Horário: das 19h às 22h
Local: Palacete dos Leões -
Av. João Gualberto, 530, Alto da Glória.
# Estacionamento interno gratuito #

Francisco José Sinke Pimpão
http://pimpaofjs.blog.uol.com.br

Concurso Literário Padre João Maia 2012 (Resultado Final)

A obra em prosa “Olhares Difusos”, de José Gaspar, e o conjunto de poesias “Vila de Rei – Rostos, Olhares de Alma”, de Andreia Domingos, venceram o Concurso Literário Padre João Maia organizado pela Câmara de Vila de Rei, anunciou a autarquia.

Os vencedores receberam como prémio um cheque prenda no valor de 75 euros.

Foram ainda distinguidos com menção honrosa os trabalhos de Sara Gaspar Pedro, em prosa, e de Luís Lucas Francisco, em poesia.

Veja o texto dos vencedores e menção honrosa abaixo

Fonte:
Http://concursos-literarios.blogspot.com

José Gaspar (Olhares Difusos)

– Oh menina… deixe-me lá sair… a menina não sabe o que eu tenho para fazer…menina, menina!

Está um dia tão bonito. Elas pensam que eu não sei, mas consegue-se bem espreitar lá para fora pelo canto da janela pequena. Estamos no Inverno e num dia assim, soalheiro, tem que se ir para o campo. Calçam-se as botas de borracha e ala que se faz tarde, enxada e forquilha às costas, leva-se a trouxa para o chão fundeiro. O meu Manel cava a terra, tem que ir bem ao fundo, onde ela ainda está crua e, cômoro atrás de cômoro, eu disponho as couves. Estão desorelhadas, separadas do canteiro onde nasceram, mas a água que lhes faço chegar à raiz, o estrume e um pouco de adubo vão pô-las viçosas num instante.

Vai-se-me acabar a água antes de o chão estar completo, já se percebe o fundo do tanque. Contava que a água desse para a empreitada, mas o Inverno vai seco e não se pode arriscar a deixar as raízes à sorte. Tenho que aparelhar a Branquita e atrelá-la à nora. A Branquita é a burra, foi preciso um grande sacrifício para a comprarmos, mas é um belo animal e não estou nada arrependida. Vedo-lhe os olhos com uma saca de serapilheira e ponho-a a andar à volta do poço e ela, apesar de pequena, dá tal velocidade aos alcatruzes que depressa põe a correr uma levada de água. Tenho um grande amor a este animal, mesmo minorca a burra tem grande energia e, melhor ainda, é esperta, como uma burra que se preze. Faz-me pena vê-la ali à roda, como um cego, parece falta de respeito pelo bicho, mas de outra forma ela não era capaz de fazer o serviço.

Estas couves, se Deus nos der bom tempo, vão ganhar um tronco como deve ser, onde rebentarão folhas largas. Nesta terra que sempre criou couves já as vi de quatro e cinco metros de altura. Uns diziam que era milagre, outros que era um fenómeno, coisa de artes mágicas. Não sei o que foi, mas fiquei satisfeita por ter muita folha para a criação. Tanto as cabras como os coelhos, em anos desses, são lordes de manjedoura sempre fornecida. O mesmo se passa com a manjedoura lá de casa, que é uma maneira de dizer que a panela pode fazer a sopa farta, que com enchido da talha e toucinho da salgadeira vai mantendo a gente a mexer. Quando digo a gente estou a falar de mim e do meu Manel e também dos quatro pequenos, que estes cachopos precisam de comer como deve ser para se fazerem gente.

Mas têm-me aqui presa e não posso tratar da minha vida, o sol já se põe e lá se trespassou mais um dia em que podia ter feito as primeiras sementeiras. Lá vem ela com o prato com aquele caldo sem sabor… não me deixam tratar da fazenda nem do bácoro e assim não se arranja o que é preciso para a sopa, que a isto não se pode chamar sopa, porque falo de sustento a sério, não deste caldo deslavado.

– Oh menina, amanhã é que não posso falhar, está tudo tratado. De manhã passa o porqueiro, o homem que vende os leitõezitos, o meu Manel escolhe os bacoritos, dois machos, que as marrãs são mais sentidas na capadura. Já não é cedo, já não se vão fazer animais de ano, mas se as abóboras não faltarem no serrado e o milho encher a arca, hão-de arrobar como de costume. Não me dê esses comprimidos, menina, que me tolhem as pernas e fico sem forças para levar o balde com as lavaduras para o curral dos bacoritos!

Beterraba, batata, nabo, bagaço, farelo e fruta, quando abunda, tudo isto faz parte do mantimento dos porcos que criamos e que hão-de ser a base do sustento do lar. Parece que já os estou a ver a sangrar, os homens agarrados às pernas, ao rabo e ao focinho, a sangradeira a atingir o coração dos bichos, o esguicho de sangue, que eu mexo e remexo no alguidar de barro, para que não se faça grosso, não posso parar enquanto o líquido está quente. A carqueja a arder põe a coisa a jeito para se chamuscar o pêlo e entesar a carne dos animais. Não digo que não tenha pena, isso não sou capaz de dizer, porque um ano a alimentar os bácoros e a gente afeiçoa-se a eles. Já os vejo lavados, e agora já lhes abrem as carnes. Um homem atrás e outro ao peito: o das traseiras, com mil cuidados, corte minucioso e já ata a tripa, para não derramar porcaria, enquanto o da dianteira ensaia um corte profundo, junto às queixadas, que a facada no porco é sempre bem dada e já se adivinha que são animais de boas febras.

Depois é festa, é sempre assim, matança é festim. Os homens desmancham e salgam e embebedam-se enquanto apostam entre si no peso dos bichos. As mulheres lavam tripas,
fazem morcelas, migam e temperam carnes, cozinham à grande para a família, os amigos e os vizinhos, que um dia não são dias. Acabo por adormecer ao lume, sem forças para avançar para a cama de onde ecoa o ressonar do meu Manel. Mas, mais forte que o cansaço é a alegria de saber que a salgadeira está recheada com a carne que há-de temperar o caldo por mais um ano.

– Oh menina, apague-me esta luz, o sol já se põe e ao lusco-fusco a gente vai para a cama. Se a menina, sempre com essa sua batinha branca, fizesse o favor de correr a cortina eu dava-lhe uma farinheira e uma chouriça das minhas, quando estiverem mais secas, tenho um segredo no tempero que lhe vai deixar a boca a pedir mais, mas não posso contar a ninguém… Agora do que eu preciso é de dormir, não me faz falta essa botica, preciso de me levantar cedo, antes do sol nascer, para fazer o farnel do meu homem.

Nestes dias em que é preciso preparar a bucha é sempre da mesma maneira. Primeiro, às apalpadelas, risco um fósforo e com ele acendo uma pinha e o candeeiro a petróleo. A seguir amontoo lenha sobre as pinhas, a começar paus mais miúdos, para o lume ganhar força e o fumo espalha-se pela cozinha, mas num instante encontra o caminho pela chaminé larga. Já posso juntar lenha mais grossa, uma cepa ou uma cavaca, para ficar a arder ao longo do dia, que o enchido agradece. Com jeitinho, primeiro mais distante do calor e a seguir mais próxima, asso uma chouriça, que junto às couves que sobraram da ceia e que por ela aguardavam na marmita. Arrumo também um quarto de pão e uma maçã e o meu Manel fica com o avio pronto. Vai trabalhar para fora, à jorna, a enxertar árvores, que nisso dizem que é artista, foi um dom que Deus lhe deu.

O tempo está farrusco, o meu homem, que ouço a tossir enquanto se veste, arrisca-se a apanhar uma molha e a piorar a constipação que o tem apoquentado. Mas não há volta a darlhe, a cara que o dia vai ter espera-se no local de trabalho e abençoado quem inventou tal regra, porque de outra maneira muitos homens não chegavam a sair de casa ou da taberna com a desculpa de que se adivinhava temporal.

Aproveito para cortar mais tiras. Pego numa peça de roupa velha que já não usamos e, com uma tesoura, primeiro recupero os botões, depois tiro golas e bainhas, a seguir corto fitas com o maior comprimento que consigo, as quais enrolo em novelos gordos, uns coloridos e outros de cores mais murchas. De vez em quando, a Amarela, gata que tem o nome na cor, pega numa das bolas de tiras e desenrola-a. É uma brincalhona, mas não há tempo para tais desafogos, que o frio aperta e é preciso ter as mantas prontas quanto antes. Amanhã vou levar as tiras à Maria, minha vizinha tecedeira, que com elas vai tecer mantas de trapos. Quando ela as tiver acabado, o Inverno dos meus pequenos vai ser mais aconchegado, porque o peso dessas cobertas, durante a noite, enterra-nos na enxerga e, depois de aquecermos, esquecemonos das agruras da vida. Se o meu Manel aqui estivesse dava um pontapé à gata, que com o pêlo queimado pelo borralho aonde se aconchega parece saída de uma guerra. A mim, já se deve ter percebido, custa-me fazer sofrer os animais, que também são criaturas de Deus e vieram com a gente, que é como quem diz com os nossos antepassados, na grande arca de Noé.

– Deixe-me ir menina. Oh… a menina não é capaz de entender. Nasceu neste tempo em que não há responsabilidade, não há o sentido de que temos que fazer as sementeiras se
queremos colher o fruto. Mas, mesmo assim, uma coisa não basta para que aconteça a outra, é também necessário sachar, regar, espantar a passarada, porque a gente pode ter os cuidados todos e estar-se mesmo a ver que a safra vai ser das boas e… zás! Vem a passarada, ou outros bichos, que é coisa que por cá não falta, e de uma só vez desaparece o fruto maduro e o que estava para inchar. É preciso espantalhar, estar alerta. Mas a menina não percebe nada disso, dá-me uma ou duas pastilhas dessas que parecem grão-de-bico e desfalecem-se-me as pernas, a menina estudou para carcereira. Ah pois, agora está admirada, não sabia que eu conhecia uma palavra tão difícil… acha que aprendi a falar assim no meio destas pedras negras? Não, estive a servir em Lisboa, na casa de uns senhores, foi onde descobri muito do que sei… a senhora era professora, ensinou-me a ler e a ter boas maneiras e eu, à socapa, lia as revistas da época. Mas, nessa altura, a minha mãe adoeceu, tive que voltar para a aldeia… nunca mais de cá saí. Quando regressei ainda dei ajuda nas festas da igreja, depois veio o casamento e logo a seguir os filhos. Nesse tempo comecei a escrever um livro, ainda me lembro do título, chamei-lhe “Vila de Rei: rostos e olhares”. Depois… Tem que me deixar ir, menina, pela sua rica saúde. Tanta roupa que lá tenho para lavar e passar e dentro de poucos dias é a festa da Rainha Santa.

A festa da Rainha Santa é a única em que continuo a colaborar nas actividades da paróquia, porque se não houver gente a ajudar a celebração não se faz ou perde-se a grandeza que a tem marcado ao longo dos anos. Celebra-se o milagre das rosas e da rainha que era amiga dos pobres e lhes dava pão, mas, interpelada pelo rei, viu os hidratos de carbono que carregava transmutarem-se em rosas. “São rosas, senhor, são rosas”, o odor invadiu as narinas dos presente, ainda assim a barriga dos desgraçados continuou a dar horas, mas D. Isabel logo terá mandado fazer mais duas cozeduras de pão. Quanto a D. Dinis, era bom rei, porque mandou plantar pinhais e assinou tratados de paz. Homem de coração amolecido, fez-se poeta, mas não podia permitir que se andasse por aí a dar pão ao povo, que se habituava à barriga cheia sem nada fazer. Ora, um reino que, sabe-se agora, tinha tanto para andar perdia a energia e ficava como um carro sem gasolina na berma da estrada.

Na procissão da Rainha Santa, o meu mais novo vai de anjinho, com duas asinhas de renda e penas a toda a volta. Tem que haver sempre alguém para vestir os fatinhos, mas se alguns soubessem o diabinho que ele é, a quantidade de pássaros que ele engaiola e as patifarias que faz, parece-me que não o iam deixar seguir na procissão sem lhe darem um banho de água benta. A minha mais velha vai de Rainha Santa, escolheram-na por ser bemparecida, sai ao pai, mas vai de contra vontade, foram precisos vários serões para que eu a convencesse. Anda mouro na costa, há um rapazola filho de um comerciante da vila que lhe anda a fazer a corte. É verdade que se trata de um bom partido, mas não sei se os pais dele vão na conversa de ter uma nora sem fazenda. Já disse à cachopa para não se entusiasmar muito, não vá a coisa dar em desgosto, mas tive de lhe fazer ver que sendo ela, mesmo que só por uma tarde, a Rainha Santa isso vai torná-la a princesa da festa, o que lhe há-de ser favorável no interesse do rapazola. É certo que gostava de a ver casada com um bom partido, para amor e uma cabana já bastou este meu casamento, porque o vento entra pelas frechas da choupana e leva parte do amor, mesmo que ele seja muito. Mas cá por dentro mói-me sempre o receio de que o filho do burguês queira festa, se aproveite da moça e depois nos deixe a ambas alagadas em lágrimas. Mãe sofre.

– Já percebeu a minha urgência, não é verdade? Nem assim a consigo convencer? A menina não tem família? Não compreende a minha dor? Carcereira e só carcereira! Não pode ter, não pode, com esse coração de pedra. Ah, já aí vem com a sua arma, com essa seringa que não me deixa ser gente, com essa agulha que me adormece e aprisiona. Mas eu vou na mesma, mas antes de ir preciso de um banho, tenho o corpo amolecido por estes suores, colase-me ao lençol, é o meu sudário. A menina também não gosta de se sentir limpa? Depois do banho sentimo-nos puras e nestes dias soalheiros de Primavera apetece-nos homem. Consigo também funciona desta maneira, não é verdade? Quando o seu namorado está assim, de banho tomado, barba feita, perfumadinho, não lhe apetece atarraxar-se à frescura quente dele? E depois… bem, depois seja o que Deus quiser, que nestas coisas a gente não pode parar a vontade… arrepia-se-nos a espinha. Deixe-me ir menina, primeiro o banhinho e depois saio.

O meu Manel vai chegar do campo e, hoje que é sábado, em que o banho é mais geral, começo a andar num alvoroço, começa-se-me a formar um nó na garganta. É o nó do desejo, atado à espera de mãos habilidosas que o soltem. Ainda hoje, com este rebanho de filhos que Deus me quis dar, quando o pressinto de barba feita, a cheirar a sabão azul, começo a engolir em seco.

Depois da casa lavada, dos garotos aguados e da cozinha arrumada, passo pelas brasas num sono retemperador. A seguir, aqueço bem uma panela grande de água e despejo-a na banheira antiga que encontrámos abandonada no pinhal e que o meu homem ajeitou na pequena casa de banho improvisada. Desço lentamente na água mole e, desde logo, lavo os olhos vezes sem conta, para poder ver bem o prazer que o momento me dá. A seguir, pego no sabão azul, passo-o por todo o corpo, demoro-me nas partes mais íntimas, sem me perder em delírios, porque me estou apenas a preparar para o que a noite me vai trazer.

O meu Manel espera-me na cama, muito sério, preparado para o trabalho mais importante
do mundo. Enxugo o cabelo e deixo-o solto, só de manhã voltarei a fazer o carrapito, sinto-o dançar-me na lisura das costas. Não nos apressamos, se ele acelera sou eu que o travo, que lhe seguro as rédeas do ímpeto. Foi um caminho longo, porque tudo começou exactamente ao contrário, tinha eu dezoito anos, em que com três safanões ele me colocou a barriga da forma e do tamanho da lua cheia. Deixei-me embalar por aquele rapaz elegante, de palavras doces e, zás, eis-me casada à pressa. Mas não se pode amar de afogadilho, fica-nos o sabor a pouco, aprendi-o nas revistas que li à socapa em Lisboa. Quando ganhei coragem, depois de estrebuchar muitas vezes sob os safanões do meu Manel, passei eu para os comandos, deitei-o de costas, prendi-o sob o meu corpo e dei a cadência, num compasso novo para ambos. Depois da surpresa inicial do homem, foi nessa noite que nos casámos de verdade, foi ali que nos tornámos almas gémeas.

– Oh menina, menina, pelo que tem de mais sagrado, pela sua rica família, dê-me as minhas roupinhas, porque se eu não estiver em casa à noitinha pode sempre acontecer qualquer coisa de muito grave. Se eu não apareço, o meu Manel pode não se controlar. A
menina sabe o que isso é, não sabe? Eu conheci o seu paizinho, que Deus o tenha, morreu rebentado do fígado. Lembro-me bem de vocês terem que fugir de casa quando a aguardente lhe atiçava a ira. Era uma vergonha, ninguém falava disso, mas toda a gente sabia. Era normal se fosse numa casa de pobres, mas num lar abastado… E teve consequências, se não fosse aquilo a menina se calhar não era a carcereira de bata branca que é hoje. A meninice marca a gente, disso não há dúvida. Sofreu muito, eu sei, mas não é obrigatório que também faça padecer os que a rodeiam.

Com o meu Manel foi o negócio que esteve na origem do nosso tormento. Nascemos em famílias pobres, tanto ele como eu, acabámos casados à pressa, numa cerimónia triste, com meia dúzia de palavras de circunstância de um padre que me acusou de ir prenha perante Deus e uma dúzia de convidados esfomeados. O meu Manel não aceitava aquela condição e fez-se à vida. Nos primeiros anos, em conjunto, trabalhámos até à exaustão, para conseguirmos um pé-de-meia que nos permitisse olhar para o futuro com outros olhos. Estávamos a conseguir dar a volta por cima e um dia surgiu a oportunidade. Encontrava-se à venda uma serração no cimo da aldeia, não era coisa nova, estava ao abandono, muitas das máquinas achavam-se avariadas, mas o meu Manel começou a magicar, a fazer contas e mais contas, sem me dizer o que quer que fosse. Um dia, ou melhor uma noite, depois de nos termos amado, disse-me que gostava de comprar a serração, que tinha feito todas as contas, porque ele sabia da arte por nela ter trabalhado, e que em dois anos recuperávamos o dinheiro aplicado. Acrescentou que precisávamos de pedir algum capital, que já tinha falado com o senhor doutor, que estava tudo pensado. Ele cheirava a sabão azul, doseado com o que tínhamos transpirado durante a refrega dos corpos nus, e sorri-lhe a dizer que sim.

Arrancou tudo de vento em popa, recuperaram-se as máquinas, contrataram-se empregados capazes, começou-se a comprar a matéria-prima aos madeireiros e aquilo que se produzia tinha saída, porque o meu Manel sabia que a qualidade tinha que ser a imagem da casa. Um dia apareceu um tipo de uma empresa de Lisboa, queria fazer um contrato para a serração produzir só para ele. Trazia dinheiro adiantado e como andávamos apertados para cumprir as prestações do empréstimo não pudemos dizer que não. Depois de um ano em que os pagamentos chegaram dentro do prazo, a produção continuou a sair mas os cheques começaram a atrasar-se e deixaram mesmo de aparecer. O meu Manel confiou e, em pouco tempo, já devia aos fornecedores e aos empregados e o negócio estava em ruptura. A falência foi inevitável, mas como somos gente séria ainda hoje pagamos uma prestação a um banco pelo empréstimo que contraímos para podermos saldar todas as dívidas.

Comecei a ver que o meu homem voltava a casa cada vez mais bebido. No começo ficava calado num canto, depois começou a ralhar por tudo e por nada e um dia, porque as crianças faziam barulho com as suas brincadeiras, levantou a mão para lhes chegar. Travei-lhe o braço e quando o olhar turvo dele se cruzou com as minhas lágrimas disse-lhe pausadamente que ele tinha que escolher, ou a bebida ou eu. Nunca mais bebeu, mas agora que não apareço receio que ele não tenha escolha.

– Oh menina, menina… Pssst.

Não está cá a carcereira. Deve estar distraída ou a dormir. É a minha oportunidade, vou tomar um banho, encontro umas roupas e vou para casa. Não posso esperar pela manhã, é agora ou nunca. Com este andarilho dou os primeiros passos, depois as pernas vão desentorpecer e retomo a cadência da marcha. Já estou na casa de banho. Passo a água fria pela cara e, ai meu Deus… os comprimidos e as injecções estão a dar cabo de mim, os meus cabelos estão brancos e fracos, rugas de todos os feitios lavraram-me o rosto… ai… e agora as pernas fraquejam-me, se calhar é melhor descansar um pouco.
*
Relatório de óbito:
Nome - Maria de Jesus / Idade – 95 anos / Contactos da família – Desconhecidos […].

Fonte:
Município Vila de Rei

Andreia Domingos (Vila de Rei - Rostos… Olhares de alma)

Oh Vila de Rei bem coroada
Que d’outros olhares tiveste reitor
Por Isabel Santa foste amada
Elevada por D. Dinis o Lavrador

No alto Picoto vejo serras
Montes, vales e riqueza
Nem santo, nem rainha, nem rezas
Tiram do olhar tão rara beleza

Tens história, pessoas e artes,
Tens escritos p’ra não esquecer
Rostos, encantos e olhares
Desta gente que te viu nascer

Oh Vila de Rei inebriada
Com séculos de tradição,
Desde sempre abençoada
Por gente de grande coração

Um rosto, um olhar, um ensejo
Coragem escrita na ladainha
Vejo-te crescer com desejo,
De hoje e sempre seres Rainha.

Tens alma de lutador,
E em tudo buscaste sustento
Tens gente que na terra trabalha,
Hoje e sempre com grande alento

Olho, admiro e sonho,
Ó Vila de Rei bela princesa
Tens lagar, moinho e conho
Que sempre trouxeram riqueza.

Rostos e olhares do Mundo
Não conhecem tão nobre terra
Aqui hoje deixo o testemunho
Da rara beleza que ela encerra.

Neste meu cartão de visita,
Hoje de rosto renovado,
Olho para ti com amor
Nobre concelho encantado.

Fonte:
http://www.cm-viladerei.pt/

Luís Lucas Francisco (Rostos e olhares)

Naqueles olhares algo distantes
Há rostos ainda bem risonhos
Mas no futuro pouco confiantes
E no qual não alimentam sonhos.

Da sua terra grandes amantes
Porque a ela se submeteram,
Lutaram por ela como gigantes
E seus braços nunca se renderam.

Rostos flácidos e macilentos
Que duros anos foram moldando,
Ao progresso estiveram atentos
Que quase tudo lhes foi negando.

P’lo sol, seus rostos foram curtidos,
P’ra tirarem da terra magro sustento,
Mas eles não se deram por vencidos
Nem se lhes ouviu nenhum lamento.

Assim por detrás de cada rosto
Há uma bem apurada memória
Que conta com requintado gosto
Lindos trechos da sua história.

Estes beirões rijos e valentes
Habituados aos rigores da serra
Foram “peças” muito influentes
No desenvolvimento da sua terra.

É para estes rostos e olhares
Que aos quatro ventos cantarei;
Eles que habitam aldeias e lugares
Deste concelho de Vila de Rei!

Fonte:
http://www.cm-viladerei.pt/

Sara Gaspar Pedro (“Vila de Rei – Rostos e Olhares” / Elisa Moniz (1990))

Capítulo 1

Passo os dias, imóvel, junto à janela, a tentar observar, de olhos semi cerrados. Hoje, uma criança brinca lá fora e tenta, com grande esforço, colocar o seu papagaio a voar. Não sei quem ela será, provavelmente a neta de algum dos anciãos que me acompanham nesta casa. Gostava de me aproximar, correr com ela, como teria feito muito anos antes com os meus irmãos.

Já conheço o mundo há oitenta e nove longas Primaveras, mas o tempo não foi simpático comigo. Hoje, quando acordei, tentei ver-me, através da branquidão que se vai apoderando do meu olhar, e não me reconheci. O meu rosto, repleto de marcas profundas mostram uma vaga ideia do que fui. As minhas mãos, marcadas pelo tempo, têm constantemente aquele aspecto de quem passou demasiado tempo debaixo de água.

Durante muito tempo fui considerada a rapariga mais bonita da aldeia de Fernandaires. O meu cabelo avermelhado, igual ao do meu pai, dava nas vistas, em especial durante o pôr-do-sol, em que parecia brilhar. Eu e os meus irmãos costumávamos mergulhar todos os dias no rio Zêzere e saíamos a tempo para observar o entardecer. A Maria era a mais velha, como tal, era quem tomava conta de todos nós. Passado um mês da minha irmã ter nascido, a minha mãe tinha engravidado novamente. O meu pai desejava ardentemente um rapaz, para que o ajudasse nos campos e na casa, e ficou radiante quando 9 meses depois recebeu dois: o Luís e o Pedro.

A minha mãe descrevia aquela noite como uma das mais assustadoras da sua vida. Estava a chover torrencialmente, a trovoada rebentava no céu e até o rio parecia zangado! Assim que se ouviram os primeiros trovões, as dores começaram, e a parteira não havia forma de chegar. As Fernandaires não eram um local fácil de aceder, pior ainda naquelas condições. As dores iam aumentando e chegaram a um ponto tal que o meu pai foi obrigado a ajudar a minha mãe a trazer ao mundo o Luís. Ela falava com carinho da cara de felicidade do meu pai quando viu o rapaz. Era pequeno mas chorava com força: “Vai ter garra este rapaz!”. Assim que disse estas palavras, a minha mãe voltou a gritar de dores, sem conseguir compreender porquê. Por momentos achou que ia morrer. Foi nesta altura que chegou a parteira, completamente encharcada e enlameada. E minutos depois nasceu o Pedro.

Enquanto cresciam, os meus irmãos eram exactamente iguais, tanto no aspecto como em tudo o que faziam, quase como se tivessem feito um pacto no ventre da minha mãe de se revezarem em tudo. Havia alturas que trocavam de lugares, sem que ninguém se apercebesse. Por mais que a minha mãe tentasse vestir-lhes roupas diferentes, de modo a conseguir distingui-los, eles arranjavam sempre forma de a confundir. Quando nasci, eles tinham apenas um ano, e já eram as crianças mais irrequietas que se tinham visto naquela pequena aldeia.

Visitaram-me há pouco tempo. Incrivelmente, mesmo na velhice, continuam iguais um ao outro. Mais que isso, conseguiram manter aquele sorriso matreiro que sempre os caracterizou. Fui sempre a sua protegida, mesmo agora, cada vez que os vejo, o meu coração sossega e acabo sempre por sorrir na sua companhia.

Capítulo 2

As dores nas minhas costas, assim como a curvatura que já as caracteriza há uns anos são marcas de todos aqueles anos que passei a ajudar o meu pai, com uma enxada na mão, dobrada, a apanhar todos os alimentos que saiam da terra. Desde muito cedo fui habituada a trabalhar com os meus irmãos nas hortas que tínhamos em volta da casa e nas margens do rio, onde as terras eram mais férteis. O meu pai cultivava tudo o que conseguia e ia todos os Domingos, ainda o sol não tinha nascido, para Vila de Rei, para vender os seus produtos no mercado.

Adorava tudo acerca do mercado: os cheiros, as pessoas, as cores, tudo. No entanto, era cada vez mais difícil vender e as terras, apesar de férteis, quantos mais anos passavam, menos frutos pareciam dar. A minha mãe, ajudava todos os Sábados a limpar as frutas e legumes, e a escolher aqueles que se iriam levar para o mercado. Os que tinham pior aspecto, ficavam sempre connosco e a minha mãe esforçava-se para fazer o que conseguia com o que sobrava. Nos piores dias, comíamos apenas uma batata cada um. Com sorte, os meus irmãos tinham pescado qualquer coisa, ou o meu pai tinha ganho o suficiente para comprar um pedaço de carne para alimentar toda a família.

Hoje relembro esses dias com nostalgia. Eram dias duros, em que se trabalhava estivesse sol, chuva, frio ou calor. Mas toda a família estava reunida, todos tínhamos um propósito e trabalhávamos para um fim. Ao final do dia, toda a família se banhava no rio, e todos sorríamos, satisfeitos com aquilo que tínhamos alcançado naquele dia.

Os gémeos costumavam fazer um jogo, em que ambos mergulhavam mas apenas um vinha à superfície, e nós tínhamos que adivinhar qual dos dois é que aparecia. Quando eram mais velhos e fazia bom tempo, costumavam percorrer o rio e ficar a pescar durante horas. No início a minha mãe ficou muito nervosa, com receio que algo de mal lhes acontecesse, mas rapidamente se convenceu com as iguarias que traziam para a nossa mesa.

Eu e a minha irmã Maria, acompanhávamos a minha mãe em tudo o que ela fazia. Rapidamente aprendemos a cozinhar, limpar e cozer, tudo o que uma boa senhora deveria saber. A minha irmã era, no entanto, muito mais habilidosa do que eu, e muito mais dedicada também. Eu tinha o hábito de desaparecer para explorar os terrenos em volta da casa. Gostava de descobrir os sítios mais recônditos e marcá-los com o meu nome, numa árvore da minha preferência. O meu nome era a única coisa que conseguia escrever, até ter começado a acompanhar o meu pai ao mercado. Rapidamente aprendi a matemática necessária, e as contas pareciam-me bastante óbvias. A escrita, nem tanto, mas todos os Domingos, a professora Amélia, da escola de Vila de Rei, ensinava-me, com a sua paciência, aquilo que conseguia. Seguia, de manhã, com o meu pai e ajudavam nas contas e em tudo o que fosse necessário. Ia ter com a professora Amélia às 2 da tarde, onde limpava a sua casa o mais depressa e o melhor que podia, para que depois ela me desse a lição. Praticava sozinha durante a semana e apresentava os resultados no fim-de-semana seguinte.

Tinha 8 anos quando recebi o meu primeiro livro, mas lê-lo não foi tarefa fácil. Era um catecismo, já com alguma idade e páginas amarelecidas. As letras eram pequenas e as palavras inúmeras, mas passado algumas semanas já sabia cada palavra de cor. Ainda o tenho guardado numa caixa debaixo da minha cama aqui no Lar. É das poucas coisas que guardo do meu pai, que quase chorou por lamentar não conseguir dar-me mais do que aquilo. Fui eu que tratei de ensinar tudo o que aprendia aos meus irmãos, o que não era tarefa fácil, mesmo sendo eles mais velhos que eu. A única escola que havia era longe e nós não tínhamos forma de nos deslocar até lá e os meus pais precisavam de nós.

Apesar de todas as dificuldades, recordo com carinho o pôr-do-sol no rio, as águas frescas, todos aqueles recantos com “Anita” escrito nas árvores… Deveria ter regressado antes que as cataratas me tivessem impedido de ver com clareza.

Capítulo 3

Em cima da minha mesa-de-cabeceira tenho uma fotografia antiga da minha família. Foi tirada antes que o meu irmão Mário tivesse nascido e antes do dia em que a minha família se começou a dividir.

Deveria ter 8 anos quando o meu tio Alberto nos veio visitar. Chegou num carro amarelo berrante, que foi a novidade do dia na aldeia. Vinha vestido com um fato bege e com uma bela gravata. Estava na Alemanha há muitos anos, e ao que parecia tinha vingado no mundo dos negócios. Foi uma noite animada, com muito vinho à mistura. Acho que nunca tinha visto o meu pai ficar com o nariz tão vermelho, mas a verdade é que já fazia dez anos que não via o irmão. Já era bastante tarde quando fomos para os nossos quartos. Os gémeos tinham bebido vinho e estavam a ressonar muito alto no quarto ao lado, apesar disso eu parecia ser a única que não conseguia dormir.

Dirigi-me para a cozinha, queria beber um copo de leite com mel, que mesmo na velhice sempre me ajudou a adormecer. Quando descia as escadas ouvi vozes no andar de baixo. Lembro-me da conversa como se fosse hoje:

“- A vida está cada vez mais difícil por aqui… A minha mulher acha que está grávida outra vez e eu não sei como vou conseguir alimentar mais uma boca. – dizia o meu pai.

- Então, deixa-me levar um dos teus filhos comigo. A vida corre-me bem, mas a Madalena não consegue gerar um filho para nós. Moramos numa zona simpática e temos uma boa vida, mas ninguém para a partilhar. Talvez a tua mais nova… - nesta altura o meu coração deu um salto. Aquilo que menos queria era ir para longe da minha família.

- Não, a Anita é óptima com as contas e já não me imagino no mercado sem ela. E não posso separar os gémeos, acho que nenhum deles sobreviveria.

- A Maria então. Prometo que a deixo bem casada e bem na vida!

- Tenho de falar com a mulher primeiro… Confio que cuides bem dela, mas é difícil deixar ir assim um filho meu. Amanhã falamos melhor sobre o assunto, preciso de pensar.”

Voltei a correr para a cama, a tremer e com suores frios, só de pensar que poderia ter de ir, de partir para tão longe, separar-me da realidade que conheço e adoro. Não há nada como o cheiro da manhã, o som dos pinheiros quando passa aquela brisa suave, a frescura da água, tão próxima, tão fresca.

Dois dias depois o meu pai anunciava que a Maria ia partir com o tio Alberto para Munique, na Alemanha. A minha mãe chorava silenciosamente e todos nós olhávamos a Maria com pesar. Tinha escolhido não lhe dizer nada, não adiantava assustá-la se nada fosse realmente acontecer. Mas agora era tudo real, ela ia partir e eu não conseguia abandonar a sensação que nunca mais a iria ver, o que acabou por acontecer.

A última imagem que tenho dela, é aquele carro amarelo a partir, com o cabelo avermelhado que caracteriza a nossa família, a brilhar ao sol, enquanto nos acena através da janela do carro, tentando esconder as lágrimas e o medo de partir com para um país novo, com um tio que mal conhecia. Foi o início do fim.

Capítulo 4

Uma das meninas que trabalha aqui no Lar da Fundada, costuma ler para mim. Acho que ela nem percebe como isso me faz feliz e infeliz ao mesmo tempo. O meu sorriso, que aparece ligeiro nos momentos felizes da história, mal transparece na minha face enrugada e sem expressão.

Durante muito tempo, a leitura foi a minha paixão, e cada livro um pequeno tesouro. Passei a minha vida a tentar ler tudo o que conseguia arranjar e adorava. Cada vez que a minha irmã nos enviava uma carta, eu lia-a e relia-a vezes sem conta. Era a única forma de me sentir mais próxima dela. Entretanto, o meu irmão Mário nasceu. Era uma criança calma e recatada, que admirava os irmãos mais velhos como se fossem deuses. Costumava vê-los a desaparecer rio abaixo, com as suas canas de pesca e desejava secretamente segui-los. Uma vez ainda o apanhei a tentar e consegui impedilo. Infelizmente, não o vi naquela tarde.

Estava um dia fantástico, solarengo e com aquela brisa que caracteriza os dias de Verão na zona do Pinhal. Os meus irmãos tinham ido à Vila com os meus pais e eu tinha ficado sozinha com o Mário. Depois de fazer as tarefas que a minha mãe me tinha deixado, peguei num livro que uma senhora da escola do Abrunheiro me tinha dado quando a visitei, e estava distraída a lê-lo à beira do rio. Hoje já não me lembro do que tratava, mas lembro-me do pânico que se apoderou de mim quando olhei à minha volta e não vi o meu irmão em lado nenhum. De repente, ouço uma rapariga a gritar, junto ao leito do rio e a pedir ajuda! Foi aí que vi que qualquer coisa contrastava com a água à sua volta, muito perto de onde se encontrava a rapariga que ainda não tinha parado de gritar. Não sei quanto tempo demorei a perceber o que se passava, mas para mim aqueles segundos pareceram horas. Atirei-me à água e lutei com as pedras do fundo para chegar o mais depressa possível onde estava o corpo do meu irmão pequenino a boiar nas águas claras do Zêzere. Trouxe-o o mais depressa que pude para a margem, mas nesse momento, fiquei sem saber o que fazer. Não conseguia gritar, nem chorar, só olhava para aquele corpo branco, sem vida… Como era possível que aquilo tivesse acontecido? Foram segundos, simples segundos de uma vida que mudaram tudo. Ainda hoje me pergunto como é que tudo se passou. Lembro-me de ver os meus pais a surgir ao longe, na sua carroça e aí começo a chorar. Não me lembro do que aconteceu depois, quase como se tivessem apagado da minha memória qualquer memória do que se passou. Nunca consegui ultrapassar aquele dia, chorei durante semanas e nesse tempo decidi que não iria ter filhos, não poderia deixar que o mesmo acontecesse outra vez, não suportaria a dor.

Uns meses depois, a minha mãe ficou gravemente doente, com febres e dores que ninguém conseguia explicar. Mas eu sabia! Era dor, a dor tão profunda de saber que o filho tinha morrido antes da mãe, não era natural. Pouco depois de a minha mãe ter caído neste estado sem razão ou cura, recebemos uma carta da Maria, a sua última carta, trazida à mão por um rapaz que transportava madeira através da fronteira, e tinha percorrido muito até nos encontrar.

Segundo o que a Maria explicava, o meu tio tinha vingado na vida, quando se juntou aos judeus influentes, ricos e poderosos do país. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos eles estavam a ser perseguidos e tiveram de fugir. Não sabia quando poderia voltar a escrever ou se o voltaria a fazer. Mandou-nos o seu amor e a sua saudade, com a sua doce assinatura no final da carta, esborratada provavelmente pelas lágrimas. Quando li ao meu pai o conteúdo da carta, conseguia ver o carregar do seu olhar a cada palavra, e as lágrimas no seu olhar quando terminei. Aquele olhar acompanhou-me ao longo de toda a minha vida. Decidimos não contar à minha mãe, mas, a verdade é que não precisávamos porque as mães têm o poder de sentir a dor dos filhos. A cada dia, a sua condição piorava até ao dia em que o seu frágil corpo não aguentou mais e simplesmente adormeceu para um sono eterno.

Capítulo 5

Tento observar as pessoas à minha volta, as senhoras que me fazem a cama, que me trazem a comida, todas as pessoas que partilhavam a mesa comigo. Muitos comiam devagar, como se fosse um desafio enorme levar a colher com a sopa do prato até à boca. Outros, como eu, não conseguiam comer sozinhos. Eu observava mas não via, nada era nítido, apenas vultos e cores. Não conseguia distinguir caras, mesmo que estivessem muito perto dos meus olhos. Assim, a minha vida tornou-se um jogo de sombras. No entanto, era menos sombrio do que a altura da minha vida em que passei casada com o Marco.

Tinha 19 anos quando me apaixonei perdidamente e saí de casa. Entretanto os meus irmãos tinham partido juntos para Lisboa, e eu tinha ficado sozinha com o meu pai, que pareceu ter envelhecido 40 anos depois de a minha mãe ter partido.

Conheci o Marco quando passeava pelos meus recantos privados e ele estava num deles. Tinha montado uma espécie de acampamento com dois amigos, para se dedicarem à caça. Estava encostado a uma das árvores com a minha marca, e observavaa com curiosidade. Eu não estava à espera que alguém estivesse ali, pelo que não foi difícil que ele reparasse rapidamente em mim. Trocámos algumas palavras e rapidamente me senti levada por aquele rapaz grande e forte, mas com uma voz doce e olhos cor de mel. Ele seguiu o meu olhar que se dirigia para o nome que estava escrito na árvore e apenas disse: “Anita?” Eu acenei com a cabeça.“Não sabia que mais alguém conhecia estes lados. Sou o Marco. Prazer em conhecê-la, exploradora Anita.” E foi assim que ele me arrancou o meu primeiro sorriso.

Depois desse encontro, encontrávamo-nos quase todos os dias, sempre à beira do Zêzere. Levou-me a conhecer Vila de Rei, as cascatas de Penedo Furado, os Poios, as igrejas, as aldeias mais lindas. Eu mostrei-lhe todos os meus segredos, todos os espaços e todos os locais que considerava como meus santuários. Costumávamos ir a todas as festas que havia nas aldeias ao lado, e dançávamos, muitas vezes até de madrugada. Passado alguns meses, pediu-me em casamento e mudámo-nos para o Vale da Urra.

Inicialmente tudo correu bem e o amor continuou a dominar as nossas vidas. No entanto, a mesma discussão parecia surgir quando menos se esperava: ele queria filhos e eu não. Com o passar do tempo, a discussão passou a ser cada vez mais frequente e violenta. Num dia, como outro qualquer, a discussão surgiu naturalmente como nos outros dias, mas o final foi bastante diferente. Começou com uma estalada nesse dia, seguida de um grande pedido de desculpas e lágrimas. No entanto, cada semana piorava, e eu ficava cada vez mais magoada. Cheguei a um ponto que deixei de falar, não valia a pena dizer uma palavra. Eu sentia-me envergonhada, toda eu estava vermelha tal como os meus cabelos.

Apesar de tudo, continuámos a passear, e a manter a ilusão que estava tudo bem. Relembro quando apanhámos o meu pai e fomos ver a inauguração da barragem do Castelo do Bode. Não foi uma altura muito feliz para o meu pai. Com a construção da barragem ele tinha perdido todos os terrenos onde tinha as suas plantações nas Fernandaires. Quando perdeu o trabalho da sua vida, pareceu perder o seu sentido. Enquanto via o Salazar no topo da barragem, a celebrar o sucesso da sua construção, ouvia-o a rogar-lhe todas as pragas que se lembrou. Pouco tempo depois, faleceu, sentado à entrada de casa, a olhar para o rio e para aquilo que antes tinha sido o seu trabalho e a sua vida.

Após toda a minha família ter desaparecido da zona, as coisas com o Marco pioraram. Foi um amigo da minha família, o tio Elias, que me salvou daquele que poderia ter sido o meu último dia. Costumava passar no Vale da Urra para entregar o pão, tal como fazia nas Fernandaires, onde o meu pai acabava sempre por dar um cesto com fruta e vegetais para a sua família. Acabaram por ficar amigos, e várias vezes iam para as adegas um do outro. Segundo o que ele me disse depois, o meu pai tinha-o feito prometer que tomaria conta de mim quando ele já não estivesse por este mundo para me ajudar. Como tal, cada vez que passava com a sua carrinha abrandava e certificava-se que estava tudo bem. Naquele dia, percebeu que qualquer coisa não estava certa. Quando viu o Marco subir as escadas e entrar, percebeu que ele não estava no seu estado normal. Ouviu o som seco quando caí no chão após um murro no estômago. Depois, aconteceu tudo muito rapidamente: ele entrou, atacou-o, pegou no meu corpo inconsciente, meteu-me na carrinha e levou-me para casa dele, enquanto o Marco ainda estava demasiado confuso para perceber o que tinha acontecido.

Acabei por ficar em casa do Elias, na Fundada, onde encontrei naquele corpo franzino de olhos verdes, mais que um amigo mas um segundo pai. Nunca mais pensei em voltar para o Marco, apesar de ele ainda ter feito algumas tentativas. Demorei alguns meses a voltar a falar, e quando o fiz, a minha garganta estava seca e roufenha da falta de uso. A primeira coisa que disse foi: “Obrigada”.

Ele tratou-me como a filha que nunca teve e não poderia ter pois a esposa dele tinha falecido há alguns anos. Passámos muitos e bons anos juntos, em que ele me ensinou tudo o que havia para saber acerca da padaria e acabou por me deixar o negócio. No entanto, a idade acabou por levá-lo de mim com um sorriso nos lábios. Nas suas últimas palavras ele disse-me: “Graças a ti, vivi os melhores aos da minha vida. Obrigada.”

Pouco depois disso, recebi uma carta dos meus irmãos, a contar-me como estavam felizes. O Luís já tinha arranjado uma namorada e o Pedro estava noivo. Junto com a carta vinha um convite para o casamento deles, que seria dai a dois meses. Durante muito tempo não recebi notícias dos meus irmãos. Estavam ambos envolvidos em movimentos anti-fascitas, e o facto de serem gémeos permitiu que se livrassem de várias situações de perigo, pois conseguiam arranjar um alibi infalível. Apenas tiveram a sua liberdade após o 25 de Abril, no qual se destacaram sendo chamados para altos postos
na polícia.

Finalmente, tudo começava a encaixar e tinha voltado a sorrir.

Capitulo 6

Hoje o meu sobrinho João veio visitar-me. Disse-me que ainda se lembrava do cheiro do pão e dos bolos que costumava fazer na padaria com o tio Elias, e que tinha saudades das minhas aventuras culinárias que nem sempre corriam bem.

Ao contrário de mim, os meus irmãos vigoravam da terna saúde da idade, e viviam com os filhos e netos mimando-os e contando as suas histórias. Os filhos de ambos os meus irmãos, costumavam vir passar os Verões comigo. Costumava levar os meus sobrinhos a passear no rio, e a conhecer todos os recantos que eram importantes para mim. Fazia jogos e desenhava mapas para ver quem os achava mais depressa. Esses foram os melhores tempos da minha vida.

Quando da sua visita, o João contou-me que tinha remodelado a casa dos avós nas Fernandaires, e que tinha ficado absolutamente fantástica. Agora, os seus filhos poderiam ir para lá brincar no Verão e crescer com memórias do rio, que tanto marcou também a sua infância.

Naquele dia, o meu sobrinho trouxe o filho, um bebé com um ano. E apesar de não lhe conseguir distinguir bem as formas, disse-lhe que era lindo. Só poderia ser. Sempre considerei um acto de coragem ser mãe, e ver aquela criança fez o meu coração saltar. Mas ver a felicidade dos meus irmãos ao longo dos anos, dos seus filhos e agora dos seus netos fez-me sentir mais realizada que nunca.

Amava-os a todos com todas as minhas forças, mas isso já não era suficiente para me manter aqui, à espera que chegue a hora em que a misericórdia chegue e me leve em paz deste mundo, muitas vezes cruel. Em retrospectiva, apesar de todas as dificuldades que passei, nunca escolheria viver longe da minha terra, longe das águas do Zêzere.

Diz-se que na velhice se encontra a sabedoria, o que não deixa de ser verdade, mas na realidade é que a experiência e as memórias são tudo o que se tem quando a vitalidade nos começa a abandonar.

Às vezes a luta torna-se cruel, e nessa noite, não quis lutar mais. A minha vida foi completa, cheia de momentos de dor mas também vivi momentos intensos de pura felicidade. As marcas do meu rosto mostram cada desafio, cada prova que passei. O meu olhar, cada vez mais claro como o sol da manhã, impede-me de ver o que há no mundo lá fora. Talvez já tenha visto aquilo que tinha para ver nesta vida e o meu corpo não tenha mais espaço para memórias.

A menina que costuma ler para mim, passou pelo meu quarto depois de jantar.

- Quer que comece a ler outro livro para adormecer?

- Amanhã, quem sabe, amanhã…

Fonte:
Município Vila de Rei

Affonso Romano de Sant'Anna (Velho Olhando o Mar)

Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar à distância.

O carro continua parado, o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante.

A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.

No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.

Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança?

Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.

Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.

Mas esses senhores de short e boné branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar.

Ele está ali, eu no meu carro, e me dou conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra "aposentadoria" ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o mar.

Me lembra ter lido naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer, prematuramente, ou envelhecer: não há outra alternativa." E, entretanto, como escreveu Goethe: "A idade apodera-se de nós de surpresa." Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história, porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. "O que se passou, então? A vida, e eu estou velho", escreve Aragon.

Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante.

Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá.

Fonte:
Releituras

Bernardo Trancoso (Caderno de Sonetos I)


A ROSA BRANCA (I)

Tantas púrpuras rosas no rosal;
Grosas e grosas, tão bonitas rosas;
Entre as rosas vultosas, majestosas,
Brota uma branca rosa, desigual.

Meu olhar só percebe a rosa tal;
Prefere-lhe, entre rosas mais charmosas;
Rosas prá te dizer que, em meio às grosas,
És como a rosa branca, especial.

Tens no andar que alucina novas cores;
É por ter novas cores que alucina;
És preferida, dentre mil amores.

Como a flor no rosal, tão pequenina
Que, perante outras mais formosas flores,
Difere e, o coração, logo ilumina.

A ROSA BRANCA (II)

Tantas púrpuras rosas pelo chão;
Grosas e grosas, lá se vão as rosas;
Entre as rosas feiosas, mal-cheirosas,
Brilha uma branca rosa, em exceção.

Meu olhar escolheu tal rosa, então,
Protegeu-lhe, entre rosas perigosas.
Rosa a seiva que falta àquelas grosas,
Concede à rosa branca o coração.

Contrastes já não valem mais, nem cores
Que, dentre mil amores, são só teus,
Pois o tempo carrega esses primores.

Vale é ser essa flor que, aos olhos meus,
Nunca apodrecerá, como outras flores.
Vais brilhar nos rosais do eterno Deus.

A ROSA BRANCA (III)

Tantas púrpuras rosas na avenida;
Grosas e grosas, tão vendidas rosas;
Entre as rosas vistosas, preciosas,
Falta uma branca rosa, preferida.

Meu olhar arrancou da rosa a vida,
Elevou-lhe, entre rosas valiosas.
Rosa eterna nos versos e nas prosas,
És como a rosa branca, a mais querida.

Elegi essa cor, dentre outras cores,
Prá provar grande amor que, às vezes, vem.
Que não podem trazer vermelhas flores,

Que nem podem querer comprar, também,
Porque, nessa avenida, os vendedores
Não darão seus amores prá ninguém.

SONHO ACORDADO

Sonhei teu grande amor ter encontrado.
Quando acordado, não acreditei
No corpo que avistei, ali, deitado,
Bem ao meu lado, como desejei.

Paraíso sem lei, por mar cercado;
Diante de um reinado imenso, o rei;
De desejo, eu fiquei desencontrado;
Fui tentado a sonhar, quando acordei.

Por demais te querer, te ter também -
Sentimento que, vez em quando, imponho,
Quando alguém já me torna mais risonho -

Tive a alegria, enfim, que poucos têm,
Ao ver um dia, ao lado do meu bem,
Um sonho, transformar-se em outro sonho.

SONHOS E TROVAS

Um grande sonhador quer acordar
No meio de um amor que faz sonhar
Prá, quando se deitar, sua alma em flor,
Desperto, ele sonhar com esse amor.

Quer mais um trovador, já quer cantar
Toda forma de amor que imaginar
Prá, quando a flor murchar e ele se for,
Seu canto inda ecoar, num sonhador.

Sonhos e trovas juntos na alegria
Que, um dia, plante fé no coração,
Ao sentimento amor, que principia,

Levando o sonhador à conclusão:
Paixão não sobrevive, sem poesia;
Poesia também morre, sem paixão.

O PERFUME

O amor, como o perfume, deixa indícios
De euforia em quem sente o seu odor;
Ambos dão alegria, ambos dão vício,
E mesmo os seus resquícios têm sabor.

Em tão pequenos frascos, benefícios;
Num coração ou vidro, tanto ardor;
Mas deves desfrutar sem desperdícios,
Seja perfume d'alma, seja amor.

Têm de todos os tipos prá agradar:
Um deles, quase eterno; outro, ligeiro.
Melhor é o que mais caro te custar,

Mas importa que seja verdadeiro
Pois, tendo um falso, logo há de notar
Que paixão não vai dar, com ou sem cheiro.

NATUREZA

Tens das pedras dureza; tens, agora,
Da noite que apavora, vã frieza.
A incerteza que tens, é de quem chora
Quando o amor vai embora; tens tristeza.

Tens, porém, chama acesa; vida aflora
Do teu peito, ó senhora; és natureza -
Da fauna, tens riqueza e quem te adora,
E da flora, bem mais, pois, tem beleza.

Só pareces não ter o dom vibrante,
O desejo constante de viver,
A grandeza de ser a cada instante,

Quando o mais importante é renascer.
Esse dom de manter a dor distante,
Em plantas e animais, vais perceber.

CEM PALAVRAS

Não pode ser você quem vejo aqui!
Sim, sou... Que bom te ver! Tempo passou,
Você cresceu... Você também mudou...
Por onde andou? Aí... Muito aprendi!

Por que voltou? Saudade deu de ti!
Não fale assim... É, sim... Quem me ensinou
O amor, nunca esqueci... por isso, estou
Aqui! Prá ter de volta o que perdi!

Anos depois... Pois é... Um dia, eu cá
Pensei, não voltará! Errei... Você
Deixou-me a dor, mas cri... Quem ama, crê!

Foi tanto o que sofri! Não sofrerá!
Se depender de ti... Mudei! Virá?
Vou... Sem palavras, já... Falar, prá quê?

JARDINEIRO

- Recita uma poesia para mim!
- Jardim! - o trovador já respondia -
tens do brilho das flores a alegria.
Em teu corpo, o perfume é de jasmim.

Lugar que eu regaria tanto assim,
Com luz e com paixão, e todo dia.
Para mim, nada mais importaria
Que ter tua beleza minha, ao fim.

Faria um paraíso em teu canteiro,
Se tu me concedesses um segundo,
Prá provar meu amor, que é verdadeiro.

Nessa doce empreitada, lá no fundo,
Eu seria o teu servo, um jardineiro...
O jardineiro mais feliz do mundo.

Fonte:
Sonetos

Machado de Assis (Badaladas – 22 de outubro de 1871)

Escapamos de boa!

Ali ao pé de nós, a vinte minutos de viagem, ali na formosa Niterói, esteve há dias prestes a romper uma guerra terrível - uma guerra entre a província do Rio de Janeiro e a Itália.

Dois deputados provinciais propuseram que a assembléia, em nome da província, protestasse “contra o escândalo de que é vítima o Santo Padre” – que esta sendo “acometido insólita e traiçoeiramente em seus direitos incontestáveis”, e cuja posição “é nimiamente precária, injusta, inqualificável, vexatória e atentatória, etc.”.

Isto é declarar guerra à Itália, creio que era uma e a mesma coisa.

Para sustentar o seu ultimato fez o Sr. padre Alves dos Santos um discurso, não longo, mas entremeado de apartes, com que os seus colegas iam cortando-lhe impiedosamente as asas.

O melhor, porém, aquilo em que o Sr. padre Alves dos Santos me pareceu abjurar dos princípios da nossa Igreja, foi um aparte que deu ao Sr. Mattoso Ribeiro.

Dizia este seu colega:

“— A conquista do território romano nada tem com a religião católica, apostólica, romana, — porque, se o Papa sai de Roma, não se perderá o catolicismo.”

Acode o Sr. Alves dos Santos:

“– Está muito enganado!”

Ó divino Cristo, que pensarás tu ao ouvir esta resposta? Dizias uma necessidade quando afirmavas que contra a tua Igreja não prevaleceriam as portas do inferno. Estavas em erro, meu divino Cristo. A força da tua Igreja não vem da tua doutrina; vem de alguns quilômetros de território. O catolicismo em Roma vale tudo; se o pusessem em Jerusalém, não valia nada. Verité em deçà, erreur au delà.

Victor Manuel deixou ainda uma parte da cidade ao Santo Padre; é por isso que existe a Igreja. Se ele amanhã o expulsasse de lá, acabava-se o catolicismo. Victor Manuel dava cabo da obra de Jesus; podia mais que o inferno.

Em trocos miúdos, é a opinião do deputado fluminense.

É escusado dizer que todo o católico, e o próprio deputado se refletir no dito, deve repelir tão singular opinião.
Em todo o caso, ainda que o orador tivesse razão, não era motivo para que a assembléia provincial rompesse as relações (que não tem) com a Itália. O Sr. Vieira Souto acudiu a tempo, desbastando a moção inicial, com uma emenda que nada compromete, e assim ficou encerrado o incidente.

Perguntam-me várias pessoas se não estou disposto a dizer alguma coisa a respeito do caso triste e digno de memória que se deu entre uma freira da Ajuda e o nosso prelado.

Respondi que sim, e pretendia navegar nas águas do Sr. Ribeiro Franco, quando o Jornal do Comércio de quinta-feira, em que vem a resposta de um Sr. Apostolo ao irmão da finada freira. Mudei de opinião.

O tal Apostolo, depois de algumas expressões que apostam mansidão com as do Evangelho, explica francamente que o pedido da freira era fraqueza feminil; que a carne, a carne, e mais a carne (ils sont très espirituels) não devia ser atendida; que S. Excia. fez ouvidos de mercador (textual) às lamúrias encapotadas da carne (textual) já, solene e irrevogavelmente, renunciada pela dita freira, etc.

Depois de tão vigorosa resposta, pensava eu que o Sr. Ribeiro Franco poria termo aos seus artigos.

Mas qual!

O irmão da finada quer imitar os comunistas de Paris que também morderam o nosso prelado...

Aqui para o leitor, e pergunta se estou zombando dele.

Não, caro leitor; não zombo, repito o que nos disse a referida folha:

“O nosso sábio e virtuoso bispo foi de modo insólito agredido pelo Sr. José Ribeiro Franco, por um fato bem simples, que bem demonstra que a impiedade desenvolve todos os dias mais força a ponto de não trepidar, como os comunistas de Paris, em erguer o asqueroso colo para fincar dentes envenenados na sagrada pessoa do nosso preclaro e virtuosíssimo bispo, inegavelmente a honra e glória do episcopado brasileiro”.

O Sr. José Ribeiro Franco continua, pois, a imitar a comuna de Paris.

No seu artigo de quinta-feira censura o nosso prelado por haver dito que S. José era duas vezes onipotente.

Não se dá maior impiedade! Bem se vê que o Sr.Ribeiro Franco parou nos evangelistas e nos padres da Igreja. Está abaixo do seu século; anda na aldeia e não vê as casas.

O erro do Sr. Ribeiro Franco provém de uma ilusão deplorável. S. S. supõe que nós ainda estamos no Cristianismo, quando essa religião vai senão vantajosamente substituída pelo Marianismo.

A demissão do Padre, do Filho e do Espírito Santo pode-se dizer que é um fato; não está oficialmente publicado, mas é um fato. A teoria do Marianismo é que Deus nada pode contra a vontade de Nossa Senhora, e se nada pode, pode menos, e se pode menos é poder inferior.

A isto se prende naturalmente a idéia das duas onipotências de S. José.

A propósito. . .

Corre em Lisboa, já, em 2ª. edição, e sei se aqui também, um livrinho com o título :
Novíssimo mês de Maria, ou mês das flores, coordenado pelo padre J. L. L.

A devoção de Maria e a consagração que se lhe fez do mês de maio, são coisas dignas de respeito: cumpria, porém, que estas obras, já que estamos no século XIX, se despissem de superstições que não levantam o ânimo do povo.

Não li o livro aludido; mas uma folha de Lisboa transcreve um pedaço que aí se lê a págs. 308,309 e 310.

Destacarei o primeiro período da transcrição para que melhor se aprecie a doutrina:

“Nas crônicas dos padres capuchinhos (cap. 11, part. 1ª.) se conta que em Veneza havia um célebre advogado, o qual com enganos e injustiças tinha enriquecido, e vivia em mau estado. Não tinha talvez de bom mais que rezar todos os dias uma certa oração à Santíssima Virgem; e contudo esta pobre devoção lhe valeu para escapar da morte eterna pela misericórdia de Maria.”

Leitor sagaz, isto é um verdadeiro achado. Trapaceia como puderes, dá, a tua facadazinha, e fica certo de que escaparás da morte eterna mediante uma oração a Virgem — é a receita mais barata que se conhece. . . renouvellée de Louis XI.

Vejamos agora o resto da notícia; precisa ser lida com muita atenção e sem se perder uma linha.

Lá vai:

“. . . E eis aqui como. Por fortuna sua, tomou este advogado amizade com o padre fr. Matheus de Basso, e tanto lhe pediu que viesse um dia jantar a sua casa, que finalmente lhe fez a vontade. Chegando a casa, lhe disse o advogado: Ora, padre, eu quero-lhe fazer ver uma coisa que nunca terá visto. Eu tenho uma macaca admirável, a qual me serve como um criado, lava os copos, põe a mesa, abre-me a porta. – Veja (lhe respondeu o padre) não seja essa macaca mais alguma coisa: faça-me a vir aqui.
“Chamou ele a macaca, tornou-a a chamar, procurou-a por toda a parte, e a macaca não aparecia; finalmente foram achar debaixo do leito, escondida em um vaso da casa ; mas a macaca dali não queria sair. Então disse o religioso: Vamos nós buscá-la. E chegando juntamente com o advogado, onde estava a macaca, lhe disse o religioso: Besta infernal, sai para fora, e da parte de Deus te mando, que declares quem és. Respondeu a macaca que era o Demônio e que estava esperando que aquele pecador deixasse de rezar algum dia aquela acostumada oração à Mãe de Deus porque a primeira vez que deixasse, tinha ordem de Deus para afogar, e levá-lo para o inferno. Com esta resposta o pobre advogado se pôs logo de joelhos pedindo ao religioso que o socorresse, o qual o animou e mandou ao demônio que se ausenta-se daquela casa sem fazer dano a coisa alguma. - Só te dou licença (lhe disse o religioso) que, em sinal de te teres ausentando, rompas uma parede destas casas. – Apenas lhe disse isto, se viu, depois de se ouvir um grande estrondo, feita na parede uma abertura, a qual, ainda que muitas vezes intentaram tapar com pedra, quis Deus que por muito tempo perseverasse; até que por conselho do religioso se pôs naquela abertura, uma pedra, com a figura de um anjo. O advogado se converteu; e esperamos que dali por diante continuaria na mudança da vida até a hora da morte.”

Não explica o autor do livrinho, nem a crônica dos capuchos, nem o jornal a que aludi, por que motivo foi Deus buscar para seu instrumento um demônio, podendo servir-se de um anjo, que era muito mais natural. Também não compreendo muito a razão por que Deus não consentiu que se tapasse o buraco da parede, e só depois de muito tempo deixou de fazer oposição a essa obra necessária.

São verdadeiros mistérios em que nunca poderá meter o dente o
Dr. Semana.

Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

Marina Colassanti (Palavras Aladas)

Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.

Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro.

Agora sim, nenhum som entrava no castelo. O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.

- Ouçam que preciosidade - dizia o rei. E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.

Mas, se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta, Pois, se ainda era possível escapar às paredes. nada os libertava da redoma.

Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores, E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.

Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei.

Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.

Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo. Algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos delicado “não” de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.

De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sonhos, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o mordomo real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.

Foi portanto por acaso que o rei passou diante de um desses cômodos. E passando ouviu um: murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E, inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.

A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.

- Que se abram as portas! - gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.

- Que se abram as portas! - correu o grito da sala ao salão, da escada ao jardim, muro acima, até esbarrar na cúpula de vidro, e voltar, batendo no queixo majestoso.

- Que se derrube a redoma! - lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam os muros!

E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe - maritacas - um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 607)

Uma Trova de Ademar  

Inimigo do trabalho,
é meu primo, o “Paraíba;”
seu emprego é no baralho:
buraco, truco e biriba.

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Maria anda bem vestida.
Dizem que faz quase nada.
Tem roupas caras... que vida!
Mas só trabalha pelada.

–Nilton Manoel/SP–

Uma Trova Potiguar


Maroquinha, o teu gingado
está dando o que falar!
Talvez não seja pecado,
mas faz a gente pecar!

–José Lucas de Barros/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Nova Friburgo/RJ
Tema - CINQUENTÃO - 2º Luga
r

Na sinuca, ela afobada
num jogo de sedução,
acertou uma tacada
no taco do cinquentão !

–Adilson Maia/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Há três coisas que a mulher
consegue fazer de um nada:
uma intriguinha qualquer,
um chapéu e uma salada!...

–Carolina A. de Castro/PE–

U m a P o e s i a


M O T E : Ademar Macedo/RN
Fiz a “pergunta” ao espelho
que para não me ofender
disfarçou, ficou vermelho,
e não quis me responder!

G L O S A : Lisieux/MG
Fiz a “pergunta” ao espelho
"existe mulher mais bela?
Dá-me aqui o teu conselho:
posso atuar na novela?"
O espelho, eu imagino
que para não me ofender
buscou com cuidado e tino
uma forma de dizer...
E, coitadinho do espelho!
Fez rodeio, embaraçou-se,
disfarçou, ficou vermelho,
engoliu seco, engasgou-se.
Sem poder dizer-me tudo
e por mentir não saber,
ficou cego, surdo, mudo,
e não quis me responder!
Soneto do Dia

BENEDITO SALGADO.
–Joinvile Barcelos/RS–


Vai às aulas e às feiras, lê, patina,
namora, odeia os militares. Tersos
os seus sonetos, nos jornais dispersos,
João dos Anzóis "pomposamente" assina.

Ama o truco, o bilhar, jogos diversos.
Ah! Viver no "xadrez" (que bela sina!!),
tendo ao lado uma cândida menina,
bons patins, bons autores e bons versos.

Vive alheio aos jurídicos assuntos.
Provas de exame nós "colamos" juntos,
eis por que ainda não levamos pau.

Prega aos calouros tímidos na Escola:
“não tenham medo, aqui tudo se cola”,
“Cola-se” até solenemente — “o grau!"

Guimarães Rosa (Conto de Sagarana: Minha gente)

Análise da obra

Narrado em primeira pessoa, tendo um narrador que participa da história com visão limitada dos fatos que narra, Minha gente é um dos contos mais bem tramados do livro, com a história principal emendada, alterada, recontada por pequenos detalhes e elementos dados pouco a pouco ao leitor.

O foco narrativo ilumina os passos do protagonista, mas também revela certas sutilezas que servem para esclarecer o sentido mais profundo da história. Há uma partida de xadrez, narrada no início, que mostra como se deve entender o enredo em si: um xeque, dado pelo protagonista, acaba se virando contra ele próprio. Assim, a narração insinua ao leitor que as aparências dos fatos escondem, mais que revelam, sua verdadeira intenção.

É um conto que fala mais do apego à vida, fauna, flora e costumes de Minas Gerais que de uma história plana com princípios, meio e fim. Os "causos" que se entrelaçam para compor a trama narrativa são meros pretextos para dar corpo a um sentimento de integração e encantamento com a terra natal. O lirismo dos temas do amor e da solidão transparece em Minha gente.

O autor utiliza uma linguagem mais formal, sem grandes concessões aos coloquialismos e onomatopéias sertanejas. Alguns neologismos aparecem: suaviloqüência, filiforme, sossegovitch, sapatogorof - mas longe da melopéia vaqueira tão ao gosto do autor. A novidade do foco narrativo em primeira pessoa faz desaperecer o narrador onisciente clássico, entretanto quando a ação é centrada em personagens secundárias - Nicanor, por exemplo - a oniscência fica transparente.

Muitas temáticas são desenvolvidas no conto, por exemplo: a saga da política no interior (tio Emilio); a honra sertaneja (morte do Bento Porfírio); os caprichos do Destino (casamento de Armanda com o narrador).

Aliás, esse último aspecto é desenvolvido também num conhecido poema de Drummond, Quadrilha:

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

O cenário é a Fazenda Saco-do-Sumidouro (interior de Minas Gerais), do Tio Emílio, pai de Maria Irma.

Personagens

Narrador - Homem da cidade que estava a passeio pelas fazendas dos tios, no interior de Minas Gerais. Chamavam-no "Doutor", gostava da prima Maria Irma, mas casou-se com Armanda, filha de uma fazendeira. É o protagonista do conto. Só sabemos que é um "Doutor" por intermédio da fala de José Malvino, logo no início da narrativa: "Se o senhor doutor está achando alguma boniteza...", fora isso, nem mesmo seu nome é mencionado.

Santana - Inspetor escolar intinerante. Bonachão e culto. Tem memória prodigiosa. É um tipo de servidor público facilmente encontrável. Companheiro nas andanças do narrador, tem mania de jogar xadrez, mesmo quando estão andando a cavalo.

José Malvino - Roceiro que acompanha o protagonista na viagem para a fazenda do Tio Emílio. Conhece os caminhos e sabe interpretar os sinais que neles encontra. Atencioso, desconfiado, prestitavo e supersticioso.

Tio Emílio - Fazendeiro e chefe político, para ele é uma forma de afirmação pessoal. É a satisfação de vencer o jogo para tripudiar sobre o adversário. Tio do narrador; sofreu mudança radical depois que se meteu na política.

Maria Irma - Prima do protagonista e primeiro objeto de seu amor. É inteligente, determinada, sibilina. Elabora um plano de ação e não se afasta dele até atingir seus objetivos. Não abre seu coração para ninguém, mas sabe e faz o que quer. Uma das filhas de Tio Emílio; no passado, o narrador e ela foram namorados de brincadeira. Tem cintura fina, olhos grandes, pretíssimos. Passou alguns anos no internato.

Armanda - Filha de fazendeiros; estudou no Rio de Janeiro. Terminou casada com o narrador.

Bento Porfírio - Empregado da fazenda de Tio Emílio. Vaqueiro; gostava de pescar. Envolveu-se com uma prima casada (de-Loudes) e terminou assassinado a foice pelo marido enciumado (Alexandre). É companheiro de pescaria do protagonista.

Resumo do conto

Caminham juntos, pelo sertão de Minas, a cavalo, o narrador, Santana e José Malvino. O narrador é um observador apaixonado das coisas do sertão: a paisagem, o céu, os pássaros, as árvores... Tudo para ele merece elogios e observações. A viagem chega ao fim: estão agora numa fazenda.

Dois dias na fazenda, e o narrador achava tudo mudado. Mas mudança de verdade notara no Tio Emílio: rejuvenescido, transfigurado. Logo, o narrador descobriu o porquê da mudança: Tio Emílio estava metido na política. Sempre atendendo aos pedidos do povo, a qualquer hora, mesmo à noite.

A prima Maria Irma, em conversa com o narrador, fez questão de informar que estava quase noiva. O narrador quis saber de quem, mas ela fez mistério.

Bento Porfírio, enquanto pesca com o narrador, vai-lhe contando uma história. Agripino, bom parente, convidou Bento para ir ao arraial. Queria apresentá-lo à sua filha de-Lourdes: quem sabe os dois podiam casar. Mas Bento não foi. Preferiu uma pescaria misturada com farra, com mulher-da-vida e sanfona pelo meio. Tempos depois, "quando Bento Porfírio veio a conhecer a prima de-Lourdes, ela já estava casada com o Alexandre". Os primos foram-se vendo e gostando um do outro. Por pirraça e por falta do que fazer, Bento casou-se com Bilica.

O narrador ficou na varanda até anoitecer. A prima Irma mudou de modos e, na hora do jantar, sorriu diferente para o narrador. Ele ficou desconfiado. "Mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça". E o narrador lembra bem o conselho de Tertuliano Tropeiro: "Seu doutor, a gente não deve de ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo..." Noite sem estrelas, noite de roça. O narrador foi dormir.

O narrador foi novamente pescar no poço com Bento Porfírio. Depois de algum tempo, a história do adultério continuou. O marido da prima, o Alexandre, não sabe que está sendo enganado. De repente, o marido traíd????È?o surgiu de trás de uma moita, foice na mão, e matou Bento com um só golpe. O corpo caiu no poço, e o narrador, apavorado, não sabia o que fazer. O assassino foi embora, o narrador correu para casa e contou ao Tio Emílio o ocorrido. As ordens foram dadas: tirar o morto do poço, avisar o subdelegado e ir atrás do assassino. Não para matá-lo, mas para protegê-lo das autoridades.

Os dias vão passando, e o narrador começa a gostar da prima Maria Irma. Por que não namorá-la? Um rapaz da cidade veio visitá-la e trazer-lhe livros. Ela se enfeitou toda para o receber. Por que não estava toda enfeitada na chegada do primo? À noite, o narrador fica sabendo que o rapaz se chama Ramiro e que é namorado da Armanda, uma amiga de Maria Irma, filha da fazendeira do Cedro.

O narrador não se conteve e fez uma declaração de amor à prima. Ela ouviu e, depois, disse que não acreditava. Ele tentou convencê-la usando argumentos infantis. Em vão.

Depois de uma conversa séria com a prima e de obter dele somente negativas, o narrador ameaçou ir embora. Ela insistiu que ele ficasse: queria apresentar-lhe Armanda, a namorada de Ramiro. Ele, teimoso, partiu no outro dia. Iria para Três Barras, onde mora o seu tio Luduvico.

Em Três Barras, o narrador não conseguia esquecer Maria Irma. Depois das eleições, com vitória do partido de Tio Emílio, o narrador recebeu carta: ele, o tio, queria-o de volta. O narrador ficou muito alegre e nem esperou o outro dia para voltar.

De volta, o narrador foi apresentado a Armanda. Foram passear a pé pelos pastos. Dali, do primeiro passeio, já nasceu o namoro. Em pouco tempo, o noivado e, no mês de maio, o casamento, ainda antes do matrimônio da prima Maria Irma com Ramiro Gouveia.

Fonte:
Passeiweb