sábado, 14 de setembro de 2019

Lição (1)

Os versos a seguir são integrantes do Folhetim Literário Desiderata n. 10 - Tema: Lição
 

Josafá Sobreira
Rio de Janeiro/RJ


Certa lição da vovó
coube ao meu pai me ensinar:
"Nunca, filho, corte um nó
que tu possas desatar!"
______________
Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

LIÇÃO


Em cada dia que nós vivemos
aprendemos uma lição...
A família nos ensina a ter sempre
um bom coração, gentileza e educação.
Assim estaremos prontos
para quem nós vamos encontrar
em nosso peregrinar...

A lição que a vida nos dá,
muitas vezes nos complica,
mas se temos sabedoria,
o coração não implica,
com facilidade resolve o dilema
e bom senso nos dá à dica.
A calma e a paciência
nos ajudam na tarefa
qualquer situação, resolvemos
a desavença, com calma e gentileza

Se observamos a natureza
muitas lições nos ensina...
tudo universo tem equilíbrio,
tudo roda e movimenta no silêncio...
a árvore cresce sem barulho,
a semente na terra brota,
o rio corre para o mar
contorna as pedras sem reclamar!

Mas, sempre terá algumas feridas
provocadas das lições...
que não foram bem cumpridas
deixando grandes arranhões...
Todas as rosas mais perfumadas
têm espinhos em profusão!
___________________________

Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ


A formiga na labuta,
nos dá profunda lição:
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
__________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

LIÇÃO DE PAI


Meu filho, toma atenção,
tens que saber a lição
e a tabuada de cor,
faz a cópia com cuidado
e, na escola, preparado,
vai mostrar ao professor.

Verás que fica contente
por te saber diligente,
com vontade de saber,
se a lição não entenderes,
acabando os teus deveres,
vem depois comigo ter.

Repara, filho, que a vida
pra se levar de vencida
é com trabalho e atenção,
e apesar da pouca idade,
precisas de ter vontade
pra aprenderes a lição.

Num tempo já mais distante,
quando te achares diante
do que tu julgas saber,
lembra-te do que ensinei
“eu só sei que nada sei”,
que é lição para aprender.
______________________
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Nunca digas com certeza:
-não comerei deste pão!
Cada instante é uma surpresa,
cada dia é uma lição.
______________________
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN


Da ingratidão praticada
eu tirei uma lição:
Perdoar, não pesa nada,
pesado…É pedir perdão!

_______________________________

Gabriela Pais
Almada/Portugal

LIÇÃO COM PROVA


A vida é uma lição
que por vezes faz tremer,
tanto oprime o coração  
como mostra o alvorecer.

A vida é uma lição,
um livro de matemática
de fundamental didática,
de rigor e exatidão,
apresenta a solução
a cada dia que passa,
se erro não acha, este grassa.

Vida abrigo temporal
alentos de ventos brandos,
de silêncios cerrados,
livro de leitura real
de função estrutural
uma lição pra refletir,
no bem ou mal a existir.

É óbvio e comum o error
Tanto se pode refazer
ou deixar o rio correr,
rosa com espinho, a dor,
intuir a lição primor,
Um passo de cada vez
a tratar com sensatez.

Todos os dias aprendemos
voamos pelo Universo
com um destino diverso
e a lição murchos revemos
um sonho real queremos,
um destino generoso
mas às vezes tão penoso.
________________________
Valdereis de Jesus Ururahy
Rio de Janeiro/RJ


A lição que mais ensinou,
nos foi dada por Jesus,
que ao seu algoz perdoou,
mesmo pregado na cruz !
___________________________
Amadeu Rodrigues Torres
Viana do Castelo/Costa Verde, 1924 – 2012, Braga/Portugal

PROESEMAR FACILIDADES


Métrica, rima, ritmos, a parafernália
Usual, secular caiu de escantilhão
Nalguns, acaso e sorte tentam ritmação,
Mas os versos protestam como em represália.

Prosa e verso já calçam a mesma sandália
E aplaudem Mallarmé só por embirração
Co´a diferença e leis de discriminação,
Não obstante as lições da Fonte de Castália.

Mas quem quer lição hoje de outrem, afinal,
Se o raso quer assentar praça em general
E o poetrasto bisonho é Camões em Constância?

Fazem-me rir a crítica e a sua bitola:
Muita vez, não se sabe quem lidera a bola,
Se a amizade, a nesciência, a cor, a petulância.
______________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Aprender, durante a vida,
com mestres, toda a lição,
era a forma garantida
duma linda educação.
____________________________
Nemésio Prata
Fortaleza/CE

PRA QUEM QUER FAZER SONETO!


Soneto, peça rara da poesia,
tem rima, ritmo, métrica e estrutura,
motivo muitas vezes de agonia
pra quem, fazer soneto, se aventura.

A rima dá o tom da “melodia”,
a métrica mostra sua “escultura”,
no ritmo está sua “sonoplastia”,
e na estrutura a sua “assinatura”!

Composto de tercetos e quartetos,
depois dos dois quartetos, atenção,
os dois tercetos fecham o soneto.

Aviso: pode o Poeta, nos tercetos,
ser livre pra rimar. Pronta a “lição”,
agora é só botar no branco o preto!
_____________________________
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

Há uma lição que sem cola
pelo estudante é sabida:
na vida a melhor escola
é a grande escola da vida.
___________________________
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

LIMERIQUES URBANOS III


Professor, é com letra de mão?
Sim! cursiva nesta lição.
Quem escreve de pé
tendo no aluno fé,
é professor de profissão.
____________________________
Eliana Dagmar
Amparo/SP


Só o amor sabe de cor
esta divina lição:
– nenhuma ofensa é maior
que a grandeza do perdão!

André Kondo (O Jardim)


O prior do templo de Daitoku, em posição meditativa, aguardava o discípulo que havia cometido a profanação. No Daisen-in, estava cercado pelo venerável jardim zen. A brisa soprava, dando a impressão de que era ela quem ondulava os pedriscos que formavam a seca paisagem. Enquanto isso, um vento já corria pelos corredores do santuário, carregando a tempestuosa sentença que pesava sobre o discípulo: a morte.

Daitoku-ji não era um templo qualquer. Fundado aproximadamente em 1325, havia prosperado na época de Nobunaga e Hideyoshi, os maiores senhores da guerra que o Japão já havia testemunhado. Ambos eram duros na arte da guerra, porém, suaves na arte do chanoyxi. Dois guerreiros aficionados pela cerimônia do chá, que atingiu o requinte da perfeição em Daitoku-ji. Havia sido neste templo que mestre Sen no Rikyu recebeu o seu treinamento zen, elevando o simples ato de beber chá a uma requintada arte, um ritual para elevação da alma.

Há relatos, alguns dizem lendas, de que a fama e a importância de Sen no Rikyu elevaram o seu ego. Rikyu ostentou uma imagem de si próprio no alto do Sanmon, um dos principais portões do templo. Tal atitude custou-lhe a vida. O senhor de todo o Japão, Toyotomi Hideyoshi, guerreiro de humilde origem que havia chegado ao topo por sua sagacidade, ordenou que Rikyu extinguisse o seu ego. Condenado à morte, o seu chá esfriou, para sempre.

Ao profanador discípulo havia sido escolhida a mesma pena. Uma sentença assim proferida por um senhor da guerra até era esperada, porém, ordenada por um prior budista? Todos os monges do templo eram contra a pena de morte, porém, respeitavam sobremaneira o velho prior. Confiavam em sua sabedoria. Assim, observaram, impassíveis, o discípulo a caminho de seu fim.

O que fizera o infrator para merecer tal sentença? A profanação do sagrado jardim zen de Daisen-in, do complexo de templos de Daitoku, era o motivo.

Ante a chegada do condenado, o prior se levantou.

— Primeiro, gostaria de explicar, mais uma vez, a importância de nosso jardim — disse o prior.

O discípulo ruborizou. Mais uma vez, teria que se confrontar com seu ato de vandalismo, sua vergonhosa ação.

— Veja, este jardim não é apenas um monte de pedriscos esparramados pelo pátio, como muitos leigos o veem. Em cada elemento de nosso jardim encontramos uma íntima relação, que demonstra o nosso lugar no universo. Nas ondas desenhadas com os pedriscos, podemos ver o nosso vínculo com a natureza e o destino. Tudo está neste jardim: mutável, imutável, efêmero, eterno… E tudo deve fluir... em equilíbrio...

Com o coração apertado, o discípulo ouvia com atenção.

— Estamos diante do Grande Oceano... Além, no fim da jornada, podemos ver a árvore Bodhi, debaixo da qual o satori foi alcançado e o Buda abençoado com a iluminação.

O vasto pátio coberto de pedriscos, cuidadosamente dispostos como ondas de um grande oceano era um importante local de meditação. Após algumas horas naquele recanto, o prior pediu que o discípulo o acompanhasse pela lateral do Hojo, levando-o até outra parte do jardim: o Mar Interno.

Ali, demoraram-se por mais algumas horas, meditando. Em seguida, se dirigiram para outro canto, onde uma "cascata" de pedriscos brancos descia de uma rocha que representava o mítico Monte Horai. Circundando o sagrado monte, outras rochas representavam o céu e a terra.

Todos os pedriscos do jardim pareciam fluir, naturalmente, como a água: o Grande Oceano, o Mar Interno, a Cascata... o Rio da Vida. Ao chegar nas proximidades deste seco rio, o discípulo passou a se sentir mal. Estava próximo da prova de seu crime, de seu ato de leviandade que o condenara. Prior e discípulo demoraram-se por mais algumas horas diante de uma rocha em forma de barco que singrava o rio de pedriscos. Finalmente, com mais três passos apenas, depararam-se com algo que quebrava a harmonia de todo o jardim.

— E isto, creio que você poderia explicar melhor o que seria — disse o prior ao discípulo.

As mãos trêmulas, os olhos lacrimosos, o coração palpitando, a vergonha, a profanação, o indigno ato... O discípulo caiu de joelhos, diante de sua falha realizada por puro capricho do ego. Em meio a correnteza do rio de pedriscos, represada pelo "Muro", que representa o ponto em que todas as humanas dúvidas convergem, havia um elemento alheio que destoava de tudo. Atravessando o muro, os pedriscos voltavam a fluir no Rio da Vida, mais largo...

Porém, antes do "Muro", o ego.

— Compreendeu o seu ato? Compreendeu que tudo neste jardim é a representação pura da realidade que nos cerca? — perguntou o prior.

— Sim, mestre.

— Sabe que todo ato gera uma consequência...

— Sim.

— Está preparado para morrer? Extinguir o seu ego?

O discípulo, com lágrimas nos olhos, concordou com a cabeça, compreendendo a sabedoria do prior. E cumpriu a sentença, simplesmente, apagando o próprio nome, traçado com o dedo nos pedriscos do jardim.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLIX) "O olho da rua vê"


Cecy Barbosa Campos (o Bom Ladrão)


Pensava em suas crianças. Magrinhas e famintas não davam sossego à mulher que, de jovem viçosa e decidida, passara a uma sombra do que fora, com os olhos sem brilho, desgastada pela lida com os sete filhos e três abortos.

As palavras do Zé ecoavam em seus ouvidos: "Olha cara, tu é bobo. Pega um carro, leva pra oficina do Manolo, que ele te dá um dinheiro bom pelo desmanche".

Hesitava. Afinal, nunca fizera nada grande. Só pequenos furtos, quando pegava uma carteira distraída em cima do balcão, umas frutinhas no supermercado. coisas pequenas que o deixavam em perigo e não resolviam nada. Tinha, sim, que ter coragem e fazer alguma coisa que melhorasse a sua situação.

Enquanto pensava, tomou uma pinga e observou o casal que chegara no Monza cinza, estacionado quase em frente ao bar, em local proibido.

O homem começava a ficar embriagado, e a mulher, rindo muito, parecia mais "alegre" do que ele.

Saindo do bar, parou para olhar o carro e viu que a chave estava na ignição. Achou que era um sinal, e que não poderia perder a oportunidade.

"Pegar o carro e levar pro Manolo. Tudo ficaria resolvido em pouco tempo".

O motor estava bom, e o Monza, apesar de velho, funcionava perfeitamente. Empolgado, pisou no acelerador sentindo-se um herói até que, quase chegando, assustou-se com um choro de criança.

Num primeiro impulso, achou que era um dos seus filhos e, olhando para trás, verificou que, deitado no banco, estava um bebê que acordara assustado, provavelmente, pelos solavancos da estrada e as curvas bruscas que o motorista fazia.

Firmino parou o carro imediatamente. Deixou a direção e pegou o bebê, embalando-o carinhosamente. Como pai experiente, verificou que a fralda precisava ser mudada e, olhando melhor, viu que no carro havia uma sacola. Abriu-a e encontrou o que necessitava para a limpeza e troca. Acabada a função, deu conta do que acontecera: o casal resolveu beber e deixou a criança sozinha no carro. Revoltado, pegou no celular e chamou a polícia informando que deixaria o carro naquele local, a estrada que levava ao Buraco do Bode, e que o resgate devia ser rápido, pois havia uma criança no carro.

Ajeitou o bebê o mais confortavelmente possível e saiu correndo, pois não poderia ser encontrado por ali.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Caldeirão Poético XXXIII


AFONSO LOPES DE ALMEIDA
(1888-1953)

VOLTA À TERRA


Abre os braços, do Céu, à minha alma, o Cruzeiro...
Abre os braços de luz... Vou chegar! Vou chegar!
O vento já me traz das florestas o cheiro,
E é um balanço de berço o balanço do Mar...

Longe como eu do ninho, é para o ver primeiro
Que aquela ave levanta o vôo e sobe no ar.
Volta agora este Mar das terras de Janeiro,
Onde rio se fez, para as poder entrar!

É meu, todo, este Céu! É meu este braseiro
Em que se queima o Sol à luz crepuscular!
És meu, vento de terra, amoroso e fagueiro!

Na lua que desponta, olhai! vem o meu luar!
E abro os braços também, como faz o Cruzeiro,
A esta Lua, a este Céu, a este Vento, a este Mar!

ALCEU WAMOSY (1895-1923)

DUAS ALMAS


Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

AUTA DE SOUSA (1876-1901)
NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

LEGADO


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

GILKA MACHADO (1893-1980)

NONA REFLEXÃO


Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos!)...
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens, para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.

Desilusão tristíssima, de cada
momento, infausta e imerecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser amada!

Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a Morte!...

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969)

SILÊNCIO

Silêncio - voz do amor, voz da alma, voz das coisas,
suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas;
quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas,
do bando singular das lentas mariposas!

Silêncio - alma da dor de pálpebras enxutas;
reino branco da paz, dos círios e das lousas;
quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas
falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas!

Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem
com que se fala a Deus! Meu coração selvagem
segreda-te a impressão que à flor da alma resvala:

e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste
que te faz a mudez de tudo quanto existe,
porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala!

JORGE DE LIMA (1893-1953)

PAIXÃO E ARTE

Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O Verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum amor inocente, (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.

MARTINS FONTES (1884-1937)

ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA


Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro
De prata. E, entre cem joias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E ao fim beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.

Arthur de Azevedo (Duas Apostas)


Quando apareceu o primeiro número d’o Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:

– Isto não tem vida para um mês!

– Por que, papai? – perguntou a senhorita Esmeralda.

– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.

A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:

– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!

– Por que, minha filha?

– Porque tem.

– Veremos.

Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Sousinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.

– É muito cedo para pensarem em casamento! – sentenciara ele.

Mas, voltando a O Século:

– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?

– Já te disse que sim!

– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lá para papai; se viver… no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Sousinha.

O comendador soltou uma gargalhada e disse:

– Pois está dito!

Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Sousinha acompanhavam a vida d’O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.

– Então O Século ainda vive?

– Ainda, e não parece disposto a morrer!

– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!

No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.

Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:

– Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!

A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:

– Vamos fazer uma aposta, papai?

– Que aposta?

– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas… se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno… ou da pequena…

Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.

O outro dia ela chegou-se ao pai, e disse:

– Vamos fazer outra aposta?

– Qual?

– Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário…

– Nada! nada! não me apanhas! O tal Século tem vida para… um século!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 71


Carolina Ramos (A Boneca)


Primeiros dias de férias, Cristina ajeitou a boneca na mochila, deixando para fora a cabeça loira – encaracolada. Deu a mão ao avô, que a deixaria na casa da coleguinha. Levava consigo a vontade de partilhar com a amiga a intensa alegria das primeiras horas de folga.

— Cuidado com a boneca. Aí onde está é fácil perdê-la.

— Pode deixar, vô. Está bem presa. Não vou perdê-la, não.

Cristina e o avô davam-se às maravilhas. Conversavam como dois adultos, brincavam como duas crianças.

Os dois quarteirões, que os separavam da residência procurada, não exigiam condução mais rápida que um par de sapatos cômodos e pés dispostos a caminhar.

Mãos dadas, a tagarelar, avô e neta não tinham pressa de chegar. Um vulto suspeito, seguia-os de perto.

Magro, barba crescida, mãos nervosas, o homem não deixava oculto o interesse pela cabecinha loira-encaracolada, que ultrapassava a boca da mochila presa, aos ombros da menina.

Por várias vezes, estendera a mão trêmula, num gesto fortuito de intenção não consumada. O sinal vermelho favoreceu-lhe o intento, aglomerando os pedestres à beira da calçada. Na alma do homem, brilhou luz verde. Num átimo, tinha nas mãos a bonequinha loira que, pressionada, gritou fanhosa: Mamã!

Nada mais foi preciso para que a "mamã", alertada, se debulhasse em lágrimas: — Roubaram a minha boneca!!!

Nem o peso da idade e nem mesmo os excessos de peso acusados pela balança implacável, impediram aquele avô de atirar-se, impulsivamente, ao encalço do larápio, tão logo captou o desespero da neta. Mas, foi a dor aguda da angina que lhe tolheu a arremetida, logo aos primeiros passos.

Parou, levando a mão ao peito. A ira prosseguia crescente, na perseguição ao fugitivo, pouco adiante, seguro por mãos justiceiras.

A ternura do avô afagou a cabecinha da neta que soluçava sem parar, desprezando os esforços consoladores.

Sabia bem o quanto aquela boneca representava para a neta! Fora difícil a procura e mais ainda a escolha da menina. Visitas, sucessivas, a várias lojas de brinquedos, sem que nada satisfizesse a pequena. Era como se a cada dia fossem a novo berçário para escolher, a dedo, o bebê que se integraria aos sonhos da família.

O aniversário de Cristina avizinhava-se, quando, afinal, acontecera o milagre. Os olhos da menina cresceram, iluminados, ao vislumbrarem, na vitrina, aquela boneca! Um verdadeiro encontro de almas, se alma tivesse aquela coisinha fofa, loira-encaracolada.

Satisfeito com a decisão, o avô, cheio de júbilo, nem regateara o preço. Costumava dizer: ~ Pedido de neta é lei!

Pagou alto, pagou com gosto!

Pacote nos braços, haviam saído da loja duas crianças radiantes, sem que fosse possível constatar qual das duas a mais feliz!

Um mês depois, tudo mudava. Os fatos ali estavam; — Dois homens, e seus íntimos conflitos, defrontavam-se. Um, subjugado por mãos hostis, cabisbaixo, derrotado. Outro, tinindo de raiva, sopitando a custo o impulso de distribuir tabefes,

A pontada no peito não impediu o avô de inquirir furioso: — Seu cretino! Vagabundo! Não tem vergonha de arrancar uma boneca dos braços de uma criança?! É o cúmulo! O fim do mundo!

Para abastecer a raiva, estirou o olhar furibundo até a neta que, enternurada, abraçava a boneca, devolvida por alguém que testemunhara a cena.

O olhar do larápio acompanhou o seu.

— E então? — inquiriu ainda agressivo — o que tem a dizer?

Vencendo a emoção, o homem subjugado conseguiu protestar: — Não sou vagabundo, não senhor. Estou desempregado... Não consigo trabalho... não sei mais o que fazer!

– E isso lhe dá direito de causar tanto mal a uma criança?

Pausa constrangedora antes que o homem, submisso, cabeça baixa, gaguejasse, buscando dentro de si uma atenuante:

— É que o Natal está chegando… e eu também sou avô!…

A bordoada das palavras entrecortadas de emoção, abateu-se sobre a fúria do avô de Cristina. Num instante, a raiva desceu a zero!

Constrangido silêncio e logo a capitulação:

— Tudo bem… tudo bem... Podem soltá-lo. Não vou dar queixa, não.

Vasculhou os bolsos, estendendo um cartão ao homem que o fitava agradecido:

— Procure-me neste endereço. Talvez lhe arranje trabalho.

Mais alguns dias e chegava o Natal. Festivo e bimbalhante de amor! Com ele, uma linda boneca, irmã gêmea daquela que encantara Cristina, foi bater à porta de uma casa modesta, onde a luz da esperança começava a renascer. Lar singelo, onde um outro avô e uma outra neta aprendiam a rir e a brincar juntos, como duas crianças felizes!

A brisa, a insinuar-se pelo arvoredo, soprava flautas invisíveis e a música suave parecia repetir em surdina: "Paz na terra aos homens de boa vontade.”

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Tiago (Poemas Escolhidos)


SE UM DIA…

Se um dia...
a nuvem que chora
ficasse, não fosse embora,
e chorasse sempre assim,
eu bebia as suas águas
pra lavar todas as mágoas
que trago dentro de mim.

Se um dia…
a estrela cadente
que risca o céu, num repente,
caísse, do seu destroço
eu formaria fiadas
dessas contas prateadas,
pra te enfeitar o pescoço.

Se um dia...
beber licor
ao beijar, com muito amor,
os teus lábios sensuais,
serei mais que viciado,
um eterno embriagado
lutando sempre por mais.

Se um dia...
ao nascer do sol,
não ouvir o rouxinol
nos seus gorjeios de tenor,
rogo à brisa, peço ao mar,
que vão, junto a ti, cantar
meus versos feitos de amor.

Se um dia...
num ar vaidoso,
quiseres o corpo formoso
vestido pra me agradar,
pedirei à natureza
só tecidos de beleza
com fiapos de luar.

Se um dia...
já não puder
dizer tudo o que souber
deste grande amor por ti,
sentirás meu coração
a pulsar na tua mão,
estou vivo, mas já morri.

Se um dia...
a brisa viesse
dizer-me que, se eu quisesse
morrer, bastava um desejo,
num gesto desesperado,
morreria de bom grado
pelo sabor dum teu beijo.

Se um dia...
a morte chegasse
e, pra sempre, te levasse,
meu amor, não choraria.
Por te amar como a ninguém,
eu morreria também
pra te fazer companhia.

UM INSTANTE DE AMOR

Foi apenas num momento, num instante,
que o amor surgiu entre nós dois,
tu me olhaste com desvelo,
e eu depois,
senti-me tão feliz, tão radiante,
que acariciei o teu cabelo.
Quando, por fim,
te aninhaste no meu peito,
bem juntinha de mim,
senti-me comovido e satisfeito
por sentir todo o teu calor.
E os teus olhos, tão embaciados,
estavam, de tal forma, enamorados,
que só me falavam de amor,
com a suave luz duma sinceridade pura.
Eu sei que tu me queres como eu te quero,
que me olhas sempre confiante,
sem cansaço, sem fadiga,
com o mesmo carinho e com ternura
que me mostraste naquele instante,
minha doce cadela! Minha amiga!

LUAR

O sol já lá vai, chega o luar,
Dá boa noite, ajeita os prateados,
Promete cobertura aos namorados
Com sombras oportunas p’ra os tapar

De olhos profanos que andem a espreitar
Esses incautos pares, tão enlaçados,
Que, sem pudor, se beijam, descansados,
Confiantes na proteção lunar.

E a lua vai rodando em toda a terra,
Corre pelos vales, trepa à serra.
Na sua eterna ronda de vigia.

E, enquanto vai sorrindo, de prazer,
Ela aguarda, com calma, o amanhecer,
Para entregar, ao sol, a poesia.

DOCE VISÃO

Vejo o mar, ao longe, calmo e tão lindo
Como azul de arco-íris na tempestade,
Mar que é tão grande, um oceano infindo
Que leva e traz mensagens de saudade.

Beija as praias que as águas vão cobrindo
De ondas mansas a espumar vaidade,
Deste meu país onde o sol vai sorrindo
Em todas as manhãs de claridade.

As areias coloridas de dourados
Ocultam, de olhares, os namorados
Que ali se refugiam de quem passa,

Por isso, não me canso da cambraia
Das ondas que este mar rola na praia,
Este mar, este mar que nos abraça.

António José Barradas Barroso [Tiago] (1934)

António José Barradas Barroso - nome literário António Barroso ou Tiago, nasceu em 1934, em Vila Viçosa, Portugal, filho de Joaquim Barroso e Amélia Ema Barradas Barroso. Reside em Parede/Portugal.

Estudou no Instituto Militar dos Pupilos do Exército, donde transitou para a Academia Militar para frequentar o curso de Administração Militar.. Oficial do Exército (coronel) reformado, com 12 anos de comissões militares em África (Angola, Guiné e Moçambique).

Quando regressou de Moçambique, em 1974, se dedicou a poesia. Em 2007, começou a enviar poemas para concursos e jogos florais, tendo, durante cinco anos, obtido cerca de 140 prêmios, em Portugal, Brasil, Itália e República Dominicana com poemas, quadras, trovas e contos. Possui poemas em centenas de cirandas e antologias.

Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras, em Cachoeiro do Itapemirim; Academia Rio-Grandina de Letras em Rio Grande e sócio do Clube dos Poetas Livres, em Florianópolis, membro da AVSPE – Academia Virtual Sala de Poetas e Escritores; associado do Clube da Simpatia, em Olhão.

Livros de poesia:
- Memórias do tempo que passa
- Devaneios de Outono
- Último Fôlego
- "... antes que chegue o inverno "

Nilto Maciel (A Odisseia de Carlos Mago)


Havia um homem. Depois se fez capitão, cavalariano. Chamavam-no, quase sempre, Carlos Mago. O que o irritava profundamente. Talvez por entender magro, magricela, esquelético.

Ora, havia outros Carlos na cidade. Dezenas e dezenas. De importância, no entanto, somente dois. Ele, Carlos Mago, e Carlos Gordo. Ambos galistas, pais-de-família respeitáveis, cidadãos de bem, etc. Diferenciava-os, apenas, o espaço que ocupavam no Universo. Um, magro como um pau de vassoura; outro, gordo como um porco. A razão de serem assim parecia de fácil entendimento. O primeiro, eterno perdedor de apostas fraudulentas presididas por outro Carlos, deixava de se alimentar para cuidar de seus doze galos. Tratamento à base de aveia, girassol, lingofex intramuscular, pantetonato de cálcio, nicotinamida, vitamina K, ferro, fósforo e iodo.

(Corrija-se informação anterior: eram três e não dois os Carlos importantes da cidade. E o terceiro, com certeza, encabeçava a lista. Primeiro, por ser chefe político, cacique, raposa velha. E também por ser dono do único rinhadeiro da região.)

Carlos Gordo, o sempre ganhador das apostas, amigo, parente e correligionário do terceiro Carlos, seria gordo por isso mesmo.

A explicação do Mago de Carlos parece plausível. Além do mais, mago, no linguajar nordestino, é corruptela de magro. De outra forma, mago seria o Gordo.

Havia também um animal. O quadrúpede, o condutor do capitão, o cavalo, “um alazão famoso, bralhador e galopante, tão enorme quanto um cavalo de imperador, rei ou guerreiro”. Chamavam-no Carlos Galo.

(Corrija-se informação anterior: eram quatro e não três os Carlos importantes da cidade. E o quarto, com certeza, encabeçava a lista, como encabeça esta história.)

Montado em Carlos Galo, o cavaleiro desaparecia no meio das crinas esvoaçantes. Mais parecia um simples e mínimo adorno humano. Na estrada, somente se via o cavalo. Os mendigos cegos, no entanto, enxergavam um cavalo e seu cavaleiro. Os demais habitadores daquelas bandas só viam um cavalo fantasma, a atravessar, nu, os caminhos e as veredas, relinchando e bralhando. Às vezes cantando como um galo na madrugada. Não se sabe, daí, quem o apelidou de Galo, se o dono, se o povo.

Não, um cavalo não podia cantar – negavam os mais incrédulos. O canto fluía da garganta de Carlos Mago. Toadas de entristecer as pedras, a caminho ou descaminho das rinhas. Perdedor sempre, nunca chorava – cantava. Cantigas chorosas.

A lenda falava ainda de um fenômeno horroroso: a simbiose dos dois seres, enquanto cavaleiro e cavalo. Não seriam dois, mas um só bicho nos ermos: metade homem, metade cavalo. Sempre a cantar. Galo quadrúpede.

Estudiosos do romance de cavalaria veem em Carlos Magno a origem do nome do cavalo de Carlos Mago. Brasilianistas vislumbram Charles de Gaulle. Humoristas brasileiros, porém, veem apenas uma estreita relação entre o homem Carlos Mago e o cavalo Carlos Galo. Um seria Ma(g)no; outro, galo, gaulês. Ambos Carlos. No fundo, seriam um só ente: cavalo-cavaleiro.

Havia ainda doze galos. Todos semelhantes entre si em idade, tamanho, peso, penas, armadura e nome. Todos Carlos.

(Corrija-se informação anterior: eram dezesseis e não apenas quatro os Carlos importantes da cidade.)

Iam, um dia, em marcha, quatorze Carlos. Na seguinte ordem: o cavalo, sadio, cascos de ferro, esporões, chifres artificiais de touro e dentes afiados a lima. Montado neste, o homem, tísico, tossindo permanentemente, cantando, peixeira à cintura, pau de vassoura à mão direita, esporas, pracatas de rabicho, banguela e dois chifres invisíveis sob o chapéu de couro à Lampião. Logo atrás, os galos, em fila indiana, esporões naturais e de metal, bicos também naturais e de prata, cristas eriçadas, pescoços de girafa, rijos como cabos de aço, asas espalhadas como de aviões, coxas musculosas como de atletas humanos. Os doze carregavam consigo a glória e a fama de terem fendido o ventre de outros doze galos. Assim mesmo, Carlos Mago perdeu todas as apostas. Havia apostado nos adversários.

A marcha cavaleirosa capitaneada pelo galista Carlos Mago se denominou Coluna Carlos. Partiu do Sítio Dom Chicote, Município de Baturité, quando ficou proibida a realização de rinhas em todo o país.

Alguns anos atrás, Carlos Mago vivia de fabricar vassouras de palha para a prefeitura da cidade. E durante certo tempo percorreu estradas, lugarejos, vilas e ruas, em luta contínua contra a sujeira. Vassoura à mão, comandava um exército de garis. Enxotava os bichos que, soltos, sujavam as ruas e atormentavam as vistas castas de damas e donzelas.

E se fez janista noite e dia. Finda a campanha eleitoral, Carlos largou para sempre a vassoura. E abandonou uma profissão de quase meio século, para se dedicar a galos de briga. Em compensação, livrou-se de um estoque de três mil vassouras e um jumento de estimação. Em troca, recebeu um cavalo velho e doze pintos órfãos.

A Coluna Carlos atravessou a principal rua da cidade numa tarde quente. A molecada vaiou. Os bêbados, no entanto, gritaram e saudaram a marcha. Logo, moleques e bêbados, unidos, davam vivas ao troço. Incentivada pelas manifestações públicas, a comitiva seguiu, airosa, sua marcha guerreira.

A caminho da capital, a Coluna foi interceptada e interpelada por um grupo de pessoas. Fizeram perguntas de toda ordem. Apontaram máquinas para os galos, o cavalo e Carlos Mago. Aborrecido, este gracejou: ia às Índias, à China, à Pérsia, à Indonésia e à Grécia levar a formosura e a valentia dos galos do Ceará.

À noite, já em plena capital, Carlos Mago se viu no vídeo das televisões. O locutor falava de retirantes nordestinos em demanda do Oriente, fugidos da seca.

Alta noite, os retirantes tomaram o rumo da estrada que levava ao Planalto Central. A Coluna Carlos ia derrubar o inimigo das rinhas.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLVIII) "Amigo"


Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 5


A minha infância se foi…
Eu tinha sob meu jugo
um mi carro-de-boi
com sete bois de sabugo.

Da mulher, ele é idólatra
com copo cheio na mão;
do coração do alcoólatra,
verte álcool com paixão.

Ele não dançou com ela
na boa festa da uva,
dançou com o magricela
e surrado guarda-chuva.

Era o mais perfeito mundo,
feito só de regalia;
alicerce não profundo
tinha o Reino da Utopia.

Futebol, coisa fanática!
– É cabeça quente em fogo:
Deixa a gente em vida apática,
quando o time perde o jogo.

Há muita gente sem juízo
e com vida estabanada;
em tudo, colhe prejuízo
numa “canoa furada”.

Há político matreiro,
malabarista, eu percebo,
co’a mãozinha, sorrateiro,
sobe até em pau-de-sebo.

Há um tal político aí
que diz: “vocês são fregueses!”
E mente mais que o saci.
pois, já mentiu cem mil vezes!

Namorando estava o gago…
pra ela, dizia assim:
“– Vo-você…nun…nun-ca go…
nun-ca go… gos-tou de mim!”

No bar de Dona Dolores,
com sorrisos amistosos,
brindavam os pescadores
e mais outros mentirosos.

O devoto frei Gonçalo,
por entre vales e morros,
dá atenção para cavalos
e “bom-dia pra cachorros.”

O ovo nasce da galinha,
a galinha nasce do ovo;
círculo sem fim se alinha
se eu disser isso de novo.

O político venal
será senhor cidadão
quando o gato, com “miau-miau”,
duplar com “au-au” do cão.

O que todo mundo vê
geralmente, não vê o corno;
exibe sempre em fuzuê,
na cabeça, seu adorno.

O verde lembra a esperança,
o roxo, a dor – destempero,
o branco, o puro – a criança…
“Que cor terá o desespero?!”

– “Portuga de Santarém,
teu filho morre queimado
e tua esposa também”!
– “Mas raios!… Nem sou casado!?”

– Procuro urgente o Leitão.
Diz o Porquinho ligeiro;
– Ele não veio à reunião,
procure-o noutro “chiqueiro”!

Quando a Lucimira passa,
com todo aquele corpão,
sacode, ao mundo, a carcaça
e o morto sai do caixão.

– Quero falar com “Porquinho”
Nervoso disse o Davi.
– “Ele está no seu Martinho,
somente a “porca” está aqui!”

Santo Anjo do Senhor,
anjo amigo que me vem,
proteja-me, com humor,
nesta minha vida. Amém!

Saqueou-se a Cruz do escultor
Aleijadinho – pô, meu! -
– E o que me diz, chefe-mor?!
– Aleijadinho… sou eu!

Se a metade desta vida
eu perdi pra ter meu bem,
pois, que vá, minha querida,
outra metade também.

Sei que lhe devo cinquenta,
não o porei em apuro;
quero mais cento e noventa
pra que sonhe com bom juro.

Vem o leiteiro atrevido:
– “Maricota, quer um beijo?”
– “O que diz?” Grita o marido.
– “Perguntei…se quer… um queijo…”

Virou cinzas a floresta,
vejo aqui só geringonça…
dos animais, pouco resta,
além do amigo-da-onça.

Você não é jararaca,
mas apenas um safado;
– é político baitaca,
cara-de-pau… descarado.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 70


Carlos Drummond de Andrade (O Outro Marido)


Era conferente da Alfândega — mas isso não tem importância. Somos todos alguma coisa fora de nós; o eu irredutível nada tem a ver com as classificações profissionais. Pouco importa que nos avaliem pela casca. Por dentro, sentia-se diferente, capaz de mudar sempre, enquanto a situação exterior e familiar não mudava. Nisso está o espinho do homem: ele muda, os outros não percebem.

Sua mulher não tinha percebido. Era a mesma de há 23 anos, quando se casaram (quanto ao íntimo, é claro). Por falta de filhos, os dois viveram demasiado perto um do outro, sem derivativo. Tão perto que se desconheciam mutuamente, como um objeto desconhece outro, na mesma prateleira de armário. Santos doía-se de ser um objeto aos olhos de d. Laurinha. Se ela também era um objeto aos olhos dele? Sim, mas com a diferença de que d. Laurinha não procurava fugir a essa simplificação, nem reparava; era de fato objeto. Ele, Santos, sentia-se vivo e desagradado.

Ao aparecerem nele as primeiras dores, d. Laurinha penalizou-se, mas esse interesse não beneficiou as relações do casal. Santos parecia comprazer-se em estar doente. Não propriamente em queixar-se, mas em alegar que ia mal. A doença era para ele ocupação, emprego suplementar. O médico da Alfândega dissera-lhe que certas formas reumáticas levam anos para ser dominadas, exigem adaptação e disciplina. Santos começou a cuidar do corpo como de uma planta delicada. E mostrou a d. Laurinha a nevoenta radiografia da coluna vertebral, com certo orgulho de estar assim tão afetado.

— Quando você ficar bom…

— Não vou ficar. Tenho doença para o resto da vida.

Para d. Laurinha, a melhor maneira de curar-se é tomar remédio e entregar o caso à alma do padre Eustáquio, que vela por nós. Começou a fatigar-se com a importância que o reumatismo assumira na vida do marido. E não se amolou muito quando ele anunciou que ia internar-se no Hospital Gaffrée Guinle.

— Você não sentirá falta de nada, assegurou-lhe Santos. Tirei licença com ordenado integral. Eu mesmo virei aqui todo começo de mês trazer o dinheiro. Hospital não é prisão.

— Vou visitar você todo domingo, quer?

— É melhor não ir. Eu descanso, você descansa, cada qual no seu canto.

Ela também achou melhor, e nunca foi lá. Pontualmente, Santos trazia-lhe o dinheiro da despesa, ficaram até um pouco amigos nessa breve conversa a longos intervalos. Ele chegava e saía curvado, sob a garra do reumatismo, que nem melhorava nem matava. A visita não era de todo desagradável, desde que a doença deixara de ser assunto. Ela notou como a vida de hospital pode ser distraída: os internados sabem de tudo cá de fora.

— Pelo rádio — explicou Santos.

Um dia, ela se sentiu tão nova, apesar do tempo e das separações fundamentais, que imaginou uma alteração: por que ele não ficava até o dia seguinte, só essa vez?

— É tarde — respondeu Santos. E ela não entendeu se ele se referia à hora ou a toda a vida passada sem compreensão. É certo que vagamente o compreendia agora, e recebia dele mais do que mesada: uma hora de companhia por mês.

Santos veio um ano, dois, cinco. Certo dia não veio. D. Laurinha preocupou-se. Não só lhe faziam falta os cruzeiros; ele também fazia. Tomou o ônibus, foi ao hospital pela primeira vez, em alvoroço.

Lá ele não era conhecido. Na Alfândega informaram-lhe que Santos falecera havia quinze dias, a senhora quer o endereço da viúva?

— Sou eu a viúva — disse d. Laurinha, espantada.

O informante olhou-a com incredulidade. Conhecia muito bem a viúva do Santos, d. Crisália, fizera bons piqueniques com o casal na ilha do Governador. Santos fora seu parceiro de bilhar e de pescaria. Grande praça. Ele era padrinho do filho mais velho de Santos. Deixara três órfãos, coitado. E tirou da carteira uma foto, um grupo de praia. Lá estavam Santos, muito lépido, sorrindo, a outra mulher, os três garotos. Não havia dúvida: era ele mesmo, seu marido. Contudo, a outra realidade de Santos era tão destacada da sua, que o tornava outro homem, completamente desconhecido, irreconhecível.

— Desculpe, foi engano. A pessoa a que me refiro não é essa — disse d. Laurinha, despedindo-se.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Júlio Dinis (Poesias Avulsas)


UMA RECORDAÇÃO

Lembra-me ver-te inda infante,
Quando nos campos corrias
Em folguedos palpitantes;
Eras bela! e então sorrias.

Depois, na infância, eras inda,
Junto ao cadáver rezavas
De tua mãe, com dor infinda;
Eras bela! e então choravas.

Num baile vi-te valsando
Da juventude nos dias,
Todos de amor fascinando;
Eras bela! e então sorrias.

Dias depois encontrei-te;
Nos céus os olhos fitavas;
Sem me veres contemplei-te;
Eras bela! e então choravas.

Quando ao templo caminhando
Entre flores e alegrias,
De esposa a vida encetando,
Eras bela! e então sorrias.

Quando na campa do esposo
Com teu filho ajoelhavas,
Grupo inocente e saudoso!
Eras bela! e então choravas.

Num ataúde deitada
Eu te vi em breves dias,
Mimosa flor desfolhada!
Eras bela! e então sorrias.

Sorrindo, na vida entraste,
Sorrindo deixaste a vida;
Alguma flor que encontraste
A espinhos a viste unida.

Sim, às vezes tu sorrias,
E os sorrisos o que são?
Quase sempre profecias
Das penas do coração.

Nota do Autor. — Sorrisos e lágrimas andam muitas vezes acompanhados, uns por os outros, na vida. Olhada por este lado. esta poesia é verdadeira. Alguma coisa me podiam dizer as minhas recordações, para o provar, mas não seria absolutamente o que escrevi. Neste ponto é ela mentirosa. É pecado de que me confesso arrependido.

VISÃO

Não és real. Para o seres
Não foras, ó flor, tão bela;
Se à mente Deus te revela,
Não te cria o mundo, não.
Vegetas no peito do homem,
Mas não há viçoso prado
Onde te beije embriagado
O sopro da viração.

MORENA

Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos
Não vi nunca assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos galantes,
Teus olhos morena
São dois diamantes.

São dois diamantes
Olhando-me assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos
Não sejas assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

(De As Pupilas do Sr. Reitor.)

MOMENTO DECISIVO

O Sol descia ao poente,
E florente estava o prado;
Ouviam-se auras suaves
E das aves o trinado.

Tu sentada ao pé da fonte
O horizonte contemplavas
Vias o Sol declinando
E, corando, suspiravas.

E depois... seria acaso?
Do ocaso a vista ergueste,
E, ao olhar-me, mais coraste,
Suspiraste e emudeceste.

Foi bem rápido o momento
Dum alento repentino;
Porém nesse olhar de fogo
Eu li logo o meu destino.

Nesse olhar, no rubor vivo,
No furtivo respirar...
Diz, tu mesma nessas letras
Não soletras já: amar?

Nota do Autor. — Não é muito fácil esta espécie de leitura, o sentido das letras é diferente, conforme os desejos do que as pretende decifrar e daí mil decepções e amargos desenganos. Eu não sei se li bem ou mal; mas é certo que depois disso, o livro parece fechado... não descubro caracteres novos.

CULTO SECRETO

Ouve, lânguida virgem das cidades,
A paixão que me inspiraste.
Curvada, como a flor em vaso d'ouro,
Tu, bela, me encantaste.

Eu vi-te assim pendida; a estrela d'alva
Ao surgir do oriente
Não nos envia mais saudosos raios
Do seu leito fulgente.

A viração da tarde, mais amena
No bosque, não murmura;
A alva açucena, que o vergel enfeita,
Não tem a cor mais pura.

Eu vi-te, e desde então sempre em meus sonhos
Surges, e magoada
Pareces ver as vagas desta vida
Na margem debruçada

Vejo-te então ainda, e pensativa,
Os lábios entreabertos,
Murmurando em sentida linguagem
Pensamentos incertos.

Vejo-te ainda, as lágrimas ferventes
Dos olhos rebentando,
E, ao correrem nas faces, indiscretas,
Segredos revelando.

Que segredo é o teu, lânguida virgem,
Ideal dos meus amores?
Que imaginas nos sonhos dessas noites
Tão cheias de fulgores?

Que mistério procuras no ocidente
Ao desmaiar do dia?
Ou que visão esperas, quando a aurora
Com rosas se anuncia?

Que oculto sentimento reprimido
Te faz ansiar o seio?
Que íntima dor, que pensamento acerbo?
Que indefinido enleio?

Olha, se o coração te pede amores,
Virgem, não chores, canta,
Para ti é que são as flores da vida
E a luz que nos encanta.

Tu, sim, podes amar; nas sacras aras
Dessa chama inquieta,
Ateia o sacro fogo com que inflamas
O coração do poeta.

Tu sim, podes amar; mas eu... se ao ver-te
Interrogo o futuro,
Uma voz me murmura: «Adora, mártir,
Adora, e morre obscuro».

Fonte:
Júlio Dinis. Poesias. Disponível no Domínio Público.

Eça de Queiróz (Frei Genebro)


Nesse tempo ainda vivia, na sua solidão nas montanhas da Umbria, o divino Francisco de Assis — e já por toda a Itália se louvava a santidade de Frei Genebro, seu amigo e discípulo.

Frei Genebro, na verdade, completara a perfeição em todas as virtudes evangélicas. Pela abundância e perpetuidade da Oração, ele arrancava da sua alma as raízes mais miúdas do pequeno, e tornava-a limpa e cândida como um desses celestes jardins em que o solo anda regado pelo Senhor, e onde só podem brotar açucenas. A sua penitência, durante vinte anos de claustro, fora tão dura e alta que já não temia o tentador; agora, só com o sacudir da manga do hábito, rechaçava as tentações, as mais pavorosas ou as mais deliciosas, como se fossem apenas moscas inoportunas. Benéfica e universal à maneira de um orvalho de verão, a sua caridade não se derramava somente sobre as misérias do pobre, mas sobre as melancolias do rico. Na sua humilíssima humildade ao se considerava nem igual dum verme. Os bravios barões, cujas negras torres esmagavam a Itália, acolhiam reverentemente e curvavam a cabeça a este franciscano descalço e mal remendado que lhes ensinava a mansidão. Em Roma, em S. João de Lastrão, o Papa Honório beijara as feridas de cadeiras que lhe tinham ficado nos pulsos, do ano em que na Mourama, por amor dos escravos, padecera a escravidão.

E como nessas idades os anjos ainda viajavam na terra, com as asas escondidas, arrimados a um bordão, muitas vezes, trilhando uma velha estrada pagã ou atravessando uma selva, ele encontrava um moço de inefável formosura, que lhe sorria e murmurava:

— Bons dias, irmão Genebro!

Ora, um dia, indo este admirável mendicante de Spoleto para Terni, e avistando no azul e
no sol da manha, sobre uma colina coberta de carvalhos, as ruínas do castelo de Otofrid, pensou no seu amigo Egídio, antigo noviço como ele no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, que se retirara àquele ermo para se avizinhar mais de Deus, e ali habitava uma cabana de colmo, junto das muralhas derrocadas, cantando e regando as alfaces do seu horto, porque a sua virtude era amena. E como mais de três anos tinham se passado desde que visitara Egídio, largou a estrada, passou embaixo do vale, sobre as alpondras, o riacho que fugiu por entre os aloendros em flor, começou a subir lentamente a colina frondosa. Depois da poeira e ardor do caminho de Spoleto, era doce e larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doloridos. A meia encosta, numa rocha onde se esguedelhavam silvados, nas ervas úmidas, dormia, ressonando consoladamente, um homem, que decerto por ali guardava porcos, porque vestia um grosso surrão de couro e trazia, pendurada na cinta, uma buzina de porqueiro. O bom frade bebeu de leve, afugentou os moscardos que zumbiam sobre a rude face adormecida e continuou a trepar a colina, com o seu alforje, o seu cajado, agradecendo ao Senhor aquela água, aquela sombra, aquela frescura, tantos bens inesperados. Em breve avistou, com efeito, o rebanho de porcos, espalhados sob as frondes, roncando e fossando as raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto afogado em gordura, e os bacurinhos correndo em torno às tetas das mães, luzidios e cor-de-rosa.

Frei Genebro pensou nos lobos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a rocha, onde os restos do castelo lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira esburacada sobre o céu, ou, numa esquina de torre, uma goteira que, esticando o pescoço do dragão, espreitava por meio das silvas bravas.

A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre aqueles escuros granitos pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de feijoal, entre alfazema cheirosa. Egídio não andaria afastado porque sobre o murozinho de pedra solta ficara pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora da sesta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas velhas, que não tinha loquete para ser mais hospitaleira.

— Irmão Egídio!

Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido:

— Quem me chama? Aqui, neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão!

Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas, encolhido em farrapos e tão definhado que sua face, outrora farta e rosada, era como um pedaço de velho pergaminho, muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura, o abraçou.

— E há quanto tempo, há quanto tempo, neste abandono, irmão Egídio?

Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para sol e para a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com ele entrara um cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte.

— E dizei, irmão Egídio, pois que o Senhor me trouxe, que posso fazer eu pelo vosso corpo? Pelo corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão!

Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras
dum lençol, o pobre ermitão murmurou:

— Meu bom frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado... Mas será
pecado?

Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranquilizou. Pecado? Não, certamente. Aquele que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor! Não ordenava ele aos seus discípulos que comessem as boas coisas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas forças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já tão doentinho, sentira aquela longo desejo de uvas moscatéis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à vinha, e por suas mãos apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e doces...

— É um pedaço de porco assado que apeteceis? — exclamava risonhamente o bom Frei Genebro, acariciando as mãos transparentes do ermitão — Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos contentar

E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um serviço do Senhor, correu pela colina até os densos castanheiros onde encontrara o rebanho de porcos. E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que fossava a bolota, e desabou sobre ele, e enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrava. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, deixando a rês a arquejar numa poça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à cabana, gritou dentro alegremente:

— Irmão Egídio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era
bom cozinheiro.

Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, como podão sangrento, aguçou em espeto. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Era tanta a sua caridade que para dar a Egídio todos os antegostos daquele banquete, raro em terra de mortificação anunciava com vozes festivas e de boa promessa:

— Já vai aloirando o porquinho, irmão Egídio! A pele já tosta, meu santo!

Entrou enfim na choça triunfalmente, com o assado que fumegava e rescindia, cercado de frescas folhas de alface. Ternamente ajudou a sentar o velho, que tremia e se babava de gula.

Arredou das pobres faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastara. E, para que o bom Egídio não vexasse com a sua voracidade e tão carnal apetite, ia afirmando enquanto lhe partia as febras gordas, que também ele comeria regaladamente daquele excelente porco se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos três Caminhos!

— Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartinho!

E o santo homem mentia santamente — porque, desde madrugada, não provara mais que
um magro caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja.

Farto, consolado, Egídio deu um suspiro, recaiu no seu leito de folha seca. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu irmão Genebro aquele pedaço de porco!... E o ermitão, com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente, o Senhor que, a toda necessidade solitária, manda de longe o socorro. Então, tendo coberto Egídio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca, e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sobre ele, murmurou:

— Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita.

Mas Egidio cerrara os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque seu espírito, tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na terra. Frei Genebro pensava quanto era magnânimo o Senhor em permitir que o homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tão fácil consolação duma perna decerto assada entre duas pedras.

Retornou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde esse dia, a atividade de sua virtude. Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para além dos que sofrem, até aqueles que pecam, oferecendo um alívio a cada dor, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade que tratava os leprosos, convertia os bandidos.

Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos, as damas devotas de novo o vestiam, para evitar o escândalo de sua nudez através das cidades; e, sem demora, na primeira esquina, ante qualquer esfarrapado, ele se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo feroz, penetrava nas igrejas, afirmando, jovialmente, que mais apraz a Deus uma alma liberta que uma tocha acesa.

Cercado de viúvas, de crianças famintas, invadia as padarias, açougues, até as tendas dos cambistas, e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação eram, para ele, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite molhado, esfaimado, tiritando, a uma opulenta abadia feudal, e ser repelido da portaria como um mau vagabundo; só então, agachado nos lodos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, ele se reconhecia verdadeiramente irmão de Jesus, que não tivera também, como têm sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando um dia, em Perusa, as confrarias saíram ao seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, ele correu para um monte de esterco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que o vinham engrandecer, só recebesse compaixão e escárnio. Nos claustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável. Deleite maior, porém, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens, vertendo seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tão depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre velha de sua carga de lenha, como numa cidade revoltada, onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias.

Enfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos, avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sobre ele se abria e faiscava. Pensativo, murmurou:

— Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me colher ou para me repelir.

Deu logo a um pobre, que ali rezava a Ave-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado de suas lágrimas. No domingo, na igreja, ao levantar a Hóstia, desmaiou. Sentindo então que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o levassem para um curral e o deitassem sobre uma camada de cinzas.

Em santa obediência, ao guardião do convento, consentiu que o limpassem dos seus trapos, lhe vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro emprestado, como fora o de Jesus, seu senhor.

E, suspirando, só se queixava de não sofrer:

— O Senhor, que tanto sofreu, por que não me manda a mim o padecimento bendito?

De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.

Contemplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começaram a cantar sobre o beiral do telhado e, sorrindo, recordou uma manhã com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de pássaros e, fraternalmente, lhes recomendara que louvassem sempre o Senhor!

“Meus irmãos, meus irmãos passarinhos, cantai bem a vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós e aos vossos filhinhos!” Depois, beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.

Logo que ele cerrou os olhos carnais, um grande anjo penetrou diafanamente no curral e tomou, nos braços, a alma de Frei Genebro. Durante um momento, na fina luz da madrugada, deslizou por sobre o prado fronteiro tão levemente que nem roçava as pontas orvalhadas da relva alta. Depois, abrindo as asas, radiantes e níveas, transpôs, num voo sereno, as nuvens, os astros, todo o céu que os homens conhecem.

Aninhada nos seus braços, como na doçura do berço, a alma de Frei Genebro conservava a forma do corpo que sobre a terra ficara; o hábito franciscano ainda a cobria, com um resto de poeira e de cinza nas pregas rudes; e, com um olhar novo, que agora tudo trespassava e tudo compreendia, ela contemplava, num deslumbramento, aquela região em que o anjo parara, para além dos universos transitórios e de todos os rumores siderais. Era um espaço sem limite, sem contorno e sem cor. Por cima começava uma claridade, subindo espalhada à maneira de uma aurora, cada vez mais branca, e mais luzente, e mais radiante, até que resplandecia num fulgor tão sublime que nela um sol coruscante seria como uma nódoa pardacenta. E por baixo estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais fusca, mais cinzenta, até que formava como um espesso crepúsculo de profunda, insondável tristeza.

Entre essa refulgência ascendente e a escuridão inferior, permanecera o anjo imóvel, esperando, com as asas fechadas. E a alma de Frei Genebro perfeitamente sentia que estava ali esperando também, entre o Purgatório e o Paraíso. Então, subitamente, nas alturas, apareceram os dois imensos pratos duma balança — um que rebrilhava como diamante e era reservado às suas boas obras, outro, negrejando mais que carvão, para receber o peso das suas obras más. Entre os braços do anjo, a alma estremeceu... Mas o prato diamantino começou a descer lentamente. Oh! contentamento e glória! Carregado com as suas Boas Obras, ele descia, calmo e majestoso, espargindo claridade. Tão pesado vinha, que as suas grossas cordas se retesavam, rangiam. E, entre elas, formando como uma montanha de neve, alvejavam as incontáveis esmolas que semeara no mundo, agora desabrochadas em alvas flores, cheias de aroma e de luz.

A sua humildade era um cimo, aureolado por um clarão. Cada uma das suas penitências cintilava mais limpidamente que cristais puríssimos. E a sua oração perene subia e enrolava lá em torno das cordas, à maneira duma deslumbrante névoa d’ouro. Sereno, tendo a majestade de um astro, o prato das Boas Obras parou, finalmente, com a sua carga preciosa. O outro, lá em cima, não se movia também, negro, da cor do carvão, inútil, esquecido, vazio. Já das profundidades, sonoros bandos de serafins voavam, balançando palmas verdes. O pobre franciscano ia entrar triunfalmente no Paraíso — e aquela era a milícia divina que o acompanharia cantando. Um frêmito de alegria passou na luz do Paraíso, que um Santo novo enriquecia. E a alma de Genebro anteprovou as delícias da bem aventurança.

Subitamente, porém, no alto do prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! E começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. Que Má Ação de Genebro trazia ele, tão miúda que nem se avistava, tão pesava que forçava o prato luminoso a subir, remontar ligeiramente, como se a montanha de Boas Ações, que nele transbordavam, fosse um fumo mentiroso? Oh! mágoa! Oh! desesperança! Os serafins recuavam, com as asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retesas. E na região que se cavava sob os pés do anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu, rolou como a onda duma maré devoradora.

O prato mais triste que a noite parara — parara em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E os serafins, Genebro, o anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo, um porco, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de sangue... o animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!

Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que faiscavam. Era a mão de Deus, a sua mão direita, que aparecera a Genebro na escada de Santa Maria dos Anjos, e que agora supremamente se estendia para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o Paraíso fulgente ao Purgatório crepuscular, se contraíram num recolhimento de inexprimível amor e terror. E na estática mudez, a vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia...

Então o anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. Ciberfil Literatura Digital, 2002.

domingo, 8 de setembro de 2019

Paulo Leminski XLVII ("Pense Depressa")


Francisca Júlia (O Trovador)


Balada Escandinava

— Que é que ouves à porta, ó pajem loiro?

— Rei, é um velho de barbas brancas e cabelos longos, que empunha um instrumento de cordas, de que tira celestes harmonias e músicas sonoras.

— Faze-o entrar, lindo pajem, e dize-lhe que venha cantar sob meu trono, na presença dos meus vassalos, as melancolias de sua alma.

"Viva, poderoso rei! em tuas mãos está o cetro de ouro diante do qual se curvam os cortesãos e todos os validos do reino; ao teu mando os exércitos se movem, como servos submissos, obedientes, aos caprichos do teu desejo.

Saúde, nobres senhores! em vossos peitos se ostentam condecorações de honra e medalhas de valor, adquiridas no serviço do rei ou ganhas nos campos da batalha. Urrah, formosas damas! vós inflamais os peitos dos jovens e despertais em suas almas as mais estranhas aspirações de glória.

Eu sou um pobre velho, curvo ao peso doa anos, experimentado nas lides da miséria, que anda pelo mundo despertando nos corações alheios as amarguras adormecidas".

— Canta, trovador.

O velho fechou os olhos e entoou um canto triste, arrancado ao fundo de sua alma. Os homens abaixaram a cabeça para esconder as lágrimas que lhes subiram aos olhos; as moças tremeram á vibração do instrumento e choraram ao eco das suas notas.

O rei, a quem o canto era dirigido, levou aos olhos a ponta do manto, enxugou uma lágrima sentida e disse:

— Velho, desde que subi ao trono sobre o qual se sentaram meus antepassados ilustres, acostumei-me a assistir às dores de outrem de olhos enxutos e coração fechado. Na guerra vi meus amigos e companheiros de infância cair crivados de balas ou rasgados pelas lanças. A fonte do meu pranto está seca. Mas tu, velho, após tantos anos de odiosa indiferença, conseguiste, com as harmonias do teu canto, umedecer a rugosidade das minhas pálpebras com algumas gotas de saudosa lágrima. Toma esta barra de ouro; é mais pesada que o bastão a que te animas.

— Obrigado, bom rei! Agradeço o teu ouro. Quero apenas um pouco de alimento para matar a minha fome e um copo de água fresca para saciar a minha sede.

— Servos, dai ao velho o resto do meu banquete.

O trovador sacia-se nas iguarias reais.

— Obrigado, bom rei! Que a lágrima que derramaste te faça lembrar do trovador humilde. Dá-me agora a liberdade; quero sair, para continuar no silêncio da noite, sob o fulgor das estrelas, minhas tristezas interrompidas.

Fonte:
O Poeteiro

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -1-


António Botto
Concavada/Abrantes, 1897 — 1959, Rio de Janeiro/RJ/Brasil

OUTRA


Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: – a luz do dia!
– Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
– Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
– Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Gedeão
Lisboa, 1906 – 1997

AURORA BOREAL


Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

Florbela Espanca
Vila Viçosa, 1894 — 1930, Matosinhos

SONETO VII

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se pousaram.

São mortos os que nunca levantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, entre doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heroico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

José Saramago
Azinhaga, 1922 – 2010, Tías/Lanzarote/Espanha

DECLARAÇÃO


Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, 1890 — 1916, Paris/França

CRISE LAMENTÁVEL


Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir pra rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a “frousse” das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.

Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o ouro em chumbo se derrete
Por meu azar ou minha zoina suada…

Nicolau Santos
(n. Luanda/Angola) Lisboa

HOJE É UM DIA…


Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais e esta noite
uma cratera para boêmios não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria é um dia a mais ou a menos na
alma como chumbo derretido na garganta um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

Sebastião da Gama
Vila Nogueira de Azeitão, 1924 — 1952, Lisboa

QUANDO EU NASCI

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…

Para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…

Fonte:
Estúdio Raposa

Arthur de Azevedo (Elefantes e Ursos)


Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.

Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta.

Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades.

As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estroina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.

Mas isso não foi nada – dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. – Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a fêmea… A arma estroa descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava salvo.

Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:

– O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas.

Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:

– O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.

– Você já esteve em Ceilão? – perguntou o coronel.

– Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar – sim, porque também sou caçador! – saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!

– E que fez você? – perguntou o coronel, interessado deveras.

– Não fiz nada – respondeu o Miranda. – Fui comido!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.