sábado, 30 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 531

 

Júlia Lopes de Almeida (Incógnita)

– Ah! O senhor conheceu-a?

– De vista.

– Devia ter sido feia!

– Não! Era formosa.

– Que nome tinha, sabe?

– Ignoro... Faz-me o favor do seu fogo?

– Pois não...

Houve uma pausa e, enquanto um dos interlocutores, o que perguntava, examinava com interesse o interior do Necrotério, o outro ia acendendo muito pachorrentamente o seu cigarro.

Em frente deles, sobre o mármore branco de uma das quatro mesas, estava o cadáver de uma mulher.

A claridade frouxa de um dia de inverno entrava pela larga porta e pelas janelas, indo cair sobre o corpo seminu da infeliz, a envolvê-la, como uma grande mortalha transparente.

Tudo triste, tudo cor da neve, tudo frio!

O vento entrava, cortante como uma lâmina bem afiada. No seu nicho, sobre fundo azul, a Virgem da Piedade, sustendo nos joelhos o corpo inerte do Cristo morto, evocava, como um exemplo de profunda agonia, a sua grande dor.

– Infeliz, dizia um dos espectadores, encostado ao umbral, olhando para aquele pavoroso espetáculo, numa fixidez de animal magnetizado.

O cadáver estava inchado pela absorção da agua e já manchado da gangrena. Os cabelos enovelados empastavam-se sobre as clavículas, numas madeixas pretas, curtas, ásperas, sujas de areia e de partículas de algas. Os olhos, entreabertos, pareciam, na sua névoa sinistra e glacial, feitos da água que os havia apagado e que se tivesse coagulado em dois grandes glóbulos gelatinosos e opacos. Expressão medonha, feita pelo terror da onda e pelo terror da morte!

O diálogo continuava:

– O senhor diz que ela não era feia! No entanto parece horrorosa! Como a morte transfigura... como a morte é má!

O outro sorriu-se, respondendo:

– Se estivesse, como eu, habituado a olhar para isto, já se não impressionaria assim. Vá-se embora... está pálido e não convém abusar de uma impressão nervosa.

Separaram-se. E o sujeito que conhecera a desgraçada morta, noutros tempos, em que ela era talvez alegre, jovial, risonha, ia andando despreocupadamente, a bambolear a grossa bengala de castão de prata, e a pensar no almoço do hotel, nas ostras frescas e no vinho leve. O outro, ao contrário, tremia, sentia as palmas das mãos úmidas e gélidas, como se as tivesse passado sobre a carne mole da defunta; olhava com raiva para o mar azul franjado de espuma alvinitente e semeado aqui e além por umas velas brancas como asas de cisne; sentia um cheiro de cadáver e de ácido fênico em tudo, na rua, no próprio fato, no chapéu, no lenço, nas mãos...

Todo esse dia foi para ele de sofrimento; numa obsessão doentia, cismava continuamente nessa morta desconhecida, por quem talvez tivesse passado e a quem talvez tivesse podido socorrer ou aconselhar.

A sua responsabilidade de ente humano ofendia-se àquela revelação de padecimento sem consolo. A felicidade depende às vezes de tão pouco!

Querendo reagir, procurou em vão entreter o espírito, arejá-lo com outras ideias. Afinal, não fora por causa dele que aquela mulher se matara! Depois, não lia ele todas as manhãs, já sem abalo à força do costume, tantas notícias de crimes, tão dolorosas revelações nos jornais?

Por que haveria agora este fato de o impressionar mais que tantos outros? Então, só porque os seus olhos tinham visto aquele corpo imundo, já a sua impassibilidade dava lugar a uma tamanha vibração de nervos?

Devia pensar em outra coisa; queria-o, mas era vão o esforço, à resistência acudia a curiosidade:

– Coitada, por que se teria matado?

Desgraças de amor, naturalmente. Uma paixão; sim, devia ter sido isso mesmo... Quando voltasse para casa passaria outra vez pelo Necrotério... esperava já lá não encontrar o cadáver, sabe-lo reconhecido pela família, tirado dali, daquela exposição ignominiosa.

Àquela hora alguém choraria a seu lado, já haveria flores sobre o seu corpo imundo, e o perdão da família sobre o seu crime nefasto!

Ainda dois dias antes ela devia ter sido bonita, fresca, louçã... Naturalmente aquele por quem ela se matou foi procurá-la, e, humilhado, arrependido, irá acompanhá-la ao cemitério, fazendo-lhe um enterro bonito e espargindo violetas sobre o seu túmulo, com saudosa ternura.

Talvez a matasse uma traição... o amante casaria... o marido amaria outra... a vergonha... o ciúme... Fosse o que fosse, ela estava morta, desfigurada, repugnante, e não lhe podia sair do pensamento, numa obstinação cruel.

E as mãos, e o fato e o lenço cheiravam a defunto e a ácido fênico!

Saiu de novo; girou pelas ruas; aqui um amigo alegre detinha-o, contando-lhe uma anedota picaresca. Os outros riam, ele sorria apenas, condescendentemente, pensando nuns olhos vítreos, parados, e num corpo hirto e manchado de escuro. Entrou num botequim: muita confusão. Gente e música estrepitosa. Mas todas aquelas pessoas, quase todas homens, pareceram-lhe tétricas, sombrias, pensativas. Nem uma gargalhada! Nem um dito de espírito faiscando no ar; bulha de passos, tilintar de vidros e metais, unicamente rostos amarelados, olhos fixos no café das xícaras, e ao fundo uns músicos, vibrando os seus instrumentos com desespero, num interesse de ganho mercenário.

Achou estúpido aquilo e saiu.

Mas na rua, como em casa, sentia o mesmo cheiro e o mesmo desgosto. Sempre aquela mesa de mármore branca, inclinada, a Virgem no seu nicho de madeira, e o cadáver da afogada, com os olhos abertos e as algas mirradas presas no cabelo.

Entretanto o outro, que a conhecera, já nem pensava nela...

E no espírito do impressionado rapaz voltava de vez em quando a impertinente pergunta:

– Por que se mataria... por quê?...

Voltando para casa, parou de novo no Necrotério. A morta já lá não estava. Sobre a mesa que ela tinha ocupado, agora vazia, o sol punha, através dos vidros vermelhos e amarelos das janelas, umas rosas de luz cor de ouro e cor de sangue. Trouxe-lhe aquilo algum sossego, mas não se coibiu de perguntar com interesse ao guarda se a infeliz fora, enfim, reclamada pela família.

– Não, senhor, respondeu-lhe o guarda com amabilidade, ajeitando no pescoço um lenço de lã azul.

– Então ninguém a reconheceu?!

– Ninguém.

– Ninguém a procurou?

– Ninguém.

– Coitada!

O guarda espantou-se de ver brilharem de comoção os olhos daquele importuno perguntador, que no entanto ia dizendo:

– Não teve a desventurada pai, irmão ou amigo que lhe viesse dizer um último adeus! Que coisa triste...

– Ninguém, repetiu o guarda; foi daqui para o cemitério.

– Antes a tivessem deixado no mar...

– Sim, mais valia...

O rapaz não respondeu; olhou outra vez para a mesa, onde tremulavam as rosas de sol, e seguiu.

Talvez se tivesse matado por ser sozinha. A mulher é uma eterna criança, precisa sempre que a conduzam pela mão... Sem lar, sem amor, sem amparo e sem conselhos, como poderia resistir e viver neste mundo? Faltou-lhe talvez o esposo... um amigo dedicado... talvez a mãe... um braço salvador, enfim, que a sustivesse em um outro nível.

Pobre rapariga! fascinou-a naturalmente a cor misteriosa do oceano, ora verde, ora azul... Supôs poder dormir entre os corais e as conchas nacaradas, enquanto as ondas rolassem sobre o seu corpo, marulhosamente!

Seria louca? É possível. Um pouco de espuma aparecendo e sumindo-se assemelhar-se-ia a um aceno que a chamasse...

Incógnita! passando pela terra sem deixar ninho nem vestígio, afundou-se no mar repentinamente, com todas as suas desilusões, ou quem sabe? Com todas as suas esperanças!

Talvez que ele, ele mesmo, já a tivesse visto e beijado!

Esta ideia fê-lo estremecer. Viu fixarem-se nos seus os olhos terríveis e impenetráveis da morta, nublados de cinzento, a cor sombria e muda.

Interrogou as suas reminiscências. E a voz do guarda pareceu dizer-lhe de novo, ao ouvido:

– Ninguém...

No caminho percorrido da sua vida, não a vira nunca. Antes assim! E ele respirou.

Por que se obstinava em pensar nela? Que estranho poder era esse, prendendo-o de tal forma a uma desconhecida? Vira-a pela primeira vez já morta, já putrefata e asquerosa. Acabou-se. A vida é bem pouca coisa para que a gente se ocupe tanto dela!...

Entrando em casa, a esposa correu a recebê-lo com a filhinha; ele beijou-as com ternura, demoradamente, sentindo como nunca a alegria inefável de proteger alguém.

Depois contou-lhes tudo, a sua dolorosa impressão, diante da mesa inclinada do Necrotério, onde um cadáver de mulher mostrava o rosto amarelo e os cabelos ásperos, sujos de areia e de algas secas.

Acabada a narração, a esposa tinha os olhos rasos d’água, e a vozinha débil da filha murmurava:

– Logo à noite, mamãe há de me fazer rezar pela afogada, sim?

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 5


AS DUAS IRMÃS


Vem a primeira a fala-lhe em segredo:
“Amiga, vê, (nem sei como isto conte!)
Como correm as águas desta fonte:
Tal corre a vida, e acaba-se tão cedo!

Ama, pois!” A segunda, em cuja fronte
Brilha um raio de luz, murmura, a medo,
Apontando-lhe o chão: “Este é o degredo
Perpétuo e atroz do teu amor insonte.

Contudo, espera.” E somem-se a Esperança
E a Saudade. E ela fica, como doida,
A olhar o rastro dessas deusas belas...

E ela fica esperando-as.... Cansa, cansa
De esperá-las assim, a vida toda,
Sem jamais receber notícias delas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

BALADA

“Eu vou partir. A noite já desmaia.
Parto; por isso, cândida princesa,
Venho beijar as mãos à Vossa Alteza...
Botes e naus esperam-me na praia.

Tenho, decerto, de sofrer azares,
Dores sofrer; mas hei de, com denodo,
Pugnas vencer e conquistar de todo
Terras estranhas e remotos mares...

Não sei se morrerei; mas se, princesa,
Através de procelas e de escolhos
A negra morte me fechar os olhos,
Eu morrerei pensando em Vossa alteza.

Mas, forçoso é partir; adeus, senhora...”
“Conde, adeus...” murmurou, baixando a fronte.
A noite desmaiava. No horizonte
Já se movia o séquito da aurora.

E ela, a princesa, imersa num letargo,
Ficou olhando a vastidão do oceano.
Rompeu, enfim, o sol. E, a todo o pano,
A aventureira nau se fez ao largo...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ESTELA

Como dormes feliz, anjo adorado,
Nesse teu berço, assim... tu, cujos olhos
Nunca viram misérias nem abrolhos,
Mas as vêm somente o maternal cuidado.

O anjo da guarda está velando ao lado
Do teu berço, a sorrir.... Os teus antolhos
São, por enquanto, os ondulantes folhos
Do teu bercinho de ébano lavrado.

Dorme, que enquanto o querubim de vela,
Ele te envolve nessa etérea veste
Que usam no céu os querubins, Estela;

Dorme; o teu sono cheio de fulgores
De certo eleva-te a um país celeste
Todo cheio de pássaros e flores.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INCONSOLÁVEIS

Almas, por que chorais, se ninguém vos responde?
Almas, por quê? Deixai as lágrimas! Empós*
Do ideal correi, correi a longes plagas, onde
Não exista ninguém que escarneça de vós.

Lançai o vosso olhar a longínquas paragens,
Bem distantes daqui, cheias de ideais risonhos,
Onde as aves do amor, sacudindo as plumagens,
Passem cantando ao longe a música dos sonhos...

A longes plagas onde estas misérias todas
Não consigam deixar o mínimo sinal;
Paragens onde, em meio às delirantes bodas
Dos sonhos e do amor, exulte e cante o Ideal...

Mas não, almas! Soltai a vossa queixa triste;
Contai ao mundo inteiro a vossa mágoa justa;
Essa terra de ideal, ó almas, não existe;
Inventei-a somente, e inventá-la não custa.

Pobres almas, lançai em torno a vossa vista:
Sempre haveis de encontrar essa miséria atroz.
Almas, chorai, que embora esse país exista,
Nele há de haver alguém que escarneça de vós.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Empós = (antigo) após, depois.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NO BOUDOIR*

Aguarda o jovem conde há quase uma hora,
Mudo, a agradável ocasião de vê-la.
A um canto de boudoir, altiva e bela,
Está sentada a viscondessa Aurora.

Entra e murmura: “Que brilhante estrela!
Vou confessar-lhe o meu amor agora...”
Depois, aproximando-se: “Senhora,
Tenho muito prazer em conhecê-la...”

E segreda baixinho: “Viscondessa,
É por Vossa Excelência que deliro...”
E ela, soerguendo, tímida, a cabeça,

Fita-o, sorrindo, nada lhe responde...
Solta apenas um trêmulo suspiro
Ao ver os olhos do formoso conde.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
*Boudoir = é uma sala de estar ou salão de beleza privado para mulheres em um alojamento mobiliado, geralmente entre a sala de jantar e o quarto, mas também pode se referir a um quarto privado feminino.

Fonte:
Francisca Júlia da Silva. Mármores. Brasília: Senado Feder4al, 2020. Publicado originalmente em 1895. .

Contos e Lendas do Paraná - 5 (Jaguariaíva: Assombração da antiga Serrinha)


Esta história eu ouvi no norte do Paraná, quando ainda era menino. Meu avô materno Miguel Oleranos estava relatando a outra pessoa e eu memorizei a história. Antigamente, a estrada que dava acesso a Jaguariaíva saía pela Chácara Santa Luíza, hoje propriedade da família Nanni, em frente ao Bairro Samambaia, e subia aquela serra das pedras, até ao topo do morro. Passava pela fazenda de Juviniano Carneiro Lobo, hoje Fazenda Santa Rosa, até o pouso dos tropeiros, no lugar conhecido como Cinco Pinheiros, fazenda de João Pivovar.

Esta propriedade pertenceu antigamente à falecida mãe do Átila Xavier, hoje sede da Fazenda Rincão da Serra. E ia em frente, rumo ao bairro Pesqueiro e Fazenda Diamantina.

Um cidadão antigo, das bandas do Barreiro, do qual não me lembro o nome, vinha seguindo para Jaguariaíva a cavalo e lhe disseram que embaixo da serra, depois que anoitecia, era mal-assombrado.

Este se exaltou e disse:

– Qual o quê? Eu não tenho medo! Pois vou a Jaguariaíva e volto de noite de lá, com meu revólver na cintura, no lombo do meu cavalo. Não tenho medo de nada.

E veio para a cidade. Ficou até tarde e altas horas da noite pegou seu destino, rumo ao Barreiro.

Quando passou o portão que dava acesso às terras do então Coronel Antônio Roque de Lima, percebeu que alguém montou na garupa de seu cavalo. O animal, sentindo o peso no lombo, diminuiu seus passos e o valente começou a sentir arrepios. Mas ainda tinha que subir a serra. Olhava de relance sobre seus ombros e via que havia alguém na garupa. Ao terminar de subir a serra, o pobre animal estava arquejando e ao chegar no próximo portão, que dava acesso à fazenda do Pivovar, o cidadão invisível desmontou.

O pobre animal sentindo-se aliviado, deu um arranco pra frente. Nosso amigo, que era valente, passou o portão aliviado, desmontou e foi apertar os arreios que estavam todos frouxos. Foi-se embora e nunca mais passou à noite por essa estrada.

Passaram-se muitos anos. Um dia o senhor Valfrido Wallis me contou que o senhor Luís Cava foi pescar no rio da serrinha, rio Sabiá, e levou uma cortadeira para tirar minhocas. Ao voltar, altas horas da noite, sei lá, onze horas ou meia-noite, ao abrir o portão, quando levou a mão na tronqueira* recebeu um tapa no rosto. E o gringo, do estopim bastante curto, disse, no escuro, a quem lhe bateu:

– Bate outra vez, seu filho da...!!!. Tomou outro tapa, tornou a repetir a ofensa, levou outro “pé de ouvido”. Na quarta vez o camarada se materializou e disse:

– Embaixo do mourão, isto é, da tronqueira do portão, existe um pote de moedas de ouro enterrado! Tire que é teu.

Foi só tirar do lugar a tronqueira, estava lá embaixo o pote.

Dizem que dali em diante sumiu a assombração do local, pois a alma penada se salvou. Sei lá. Nunca estive no inferno, nem no céu pra averiguar!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

* Tronqueira – mourão no qual se prende a tranca do portão.


Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Minha Estante de Livros (“Ao correr da pena”, de José de Alencar)


O que é hoje denominado crônica tem seu surgimento datado do ano de 1836, pela publicação do primeiro número do jornal francês La Presse, de Émile de Girardin, no espaço de rodapé da página do jornal, designado como feuilleton, entre nós denominado folhetim.
 
As relações entre a literatura e o jornalismo foram intensas no Brasil do século XIX. Escritores como José de Alencar e Machado de Assis não construíram sua reputação intelectual e literária apenas com os romances que escreveram, mas também com os textos que estamparam nos jornais do Rio de Janeiro.
 
Ao correr da pena, do escritor brasileiro José de Alencar, publicado em 1874 pela editora Typografia Allemã em São Paulo. A obra é uma reunião dos folhetins publicados por Alencar no jornal Correio Mercantil entre 3 de setembro de 1854 e 8 de julho de 1855, e no Diário do Rio de Janeiro, de 7 de outubro a 25 de novembro desse mesmo ano.
 
Sobre os temas preferenciais e as experiências exigidas de um cronista do Segundo Império, escreveu Brito Broca o seguinte, como tentativa de explicar a pequena produção de Alencar nesse gênero: "condição essencial para ser um bom folhetinista na época era frequentar os salões, os teatros e as galerias da Câmara e do Senado. Os folhetins giravam frequentemente em torno de três assuntos que polarizavam o interesse e as atenções da sociedade brasileira do Segundo Reinado: o mundanismo (bailes, festas, recepções), a vida teatral (principalmente os espetáculos líricos) e a política (a eterna torcida provocada pelo revezamento dos partidos e a queda dos ministérios)".
 
Aos vinte e cinco anos, em setembro de 1854, ele publicou o primeiro folhetim da série "Ao correr da pena", no Correio Mercantil. Dez meses depois, o prestígio conquistado abriu-lhe as portas do Diário do Rio de Janeiro, no qual continuou por algum tempo o trabalho de folhetinista.
 
Alencar testemunhou as transformações da sociedade e escreveu, com entusiasmo, sobre o progresso e as mudanças na fisionomia da cidade do Rio de Janeiro. Os folhetins escritos eram abrangentes, abordavam fatos políticos e econômicos e redesenhavam a cidade do Rio de Janeiro com os primeiros traços de progresso capitalista.
 
O folhetim, espécie de texto-avô da crônica dos nossos dias, tinha como regra fundamental comentar os principais acontecimentos da semana. Por esse lado, era essencialmente jornalístico. Mas, como devia ser escrito com leveza e graça, favorecia também o exercício da literatura. Alencar soube como ninguém harmonizar esses dois aspectos. Seus folhetins são um documento histórico de inegável valor literário sobre o Rio de Janeiro de meados do século XIX.

Fontes:
Wikipedia
Amazon
UNESP

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Versejando 84


Ademar Macedo, poeta, trovador, cordelista, nasceu em 1951, em Santana do Matos/RN e faleceu em 2013, em Natal/RN.

Durante muitos anos ele enviava nos nossos emails logo que amanhecia o dia suas Mensagens Poéticas, compostas de: Uma trova de Ademar; Uma trova nacional; Uma trova potiguar; Uma trova premiada; …E suas trovas ficaram; Uma poesia; Soneto do dia.

Fonte da pintura do amanhecer: Pinterest

Dorothy Jansson Moretti (Vivendo um Sonho)

Durante toda a minha infância e boa parte da juventude, ao observar aquelas velhas casas do Cruzeiro, eu me punha a romancear: Quem teria vivido nelas? Quantas gerações as haveriam habitado? Teria havido escravos? Como seriam as pessoas?

Tanta curiosidade, e nunca fiz perguntas a quem pudesse me informar. No dia do aniversário da cidade, entretanto, a convite da escritora Dona Eunice, tive a grata surpresa e o enorme prazer de adentrar uma delas, o que me pareceu — pelo romance e mistério com que eu sempre as envolvi — uma aventura maravilhosa!

É a chácara que fica à esquerda do caminho velho do Cruzeiro, hoje transformado em bela e larga avenida. Incrível eu ignorar durante tanto tempo que esse fora o lar dos Tatit, e que eles haviam quase todos nascido ali!

Eu queria ir a p[e, fanática que sou por boas caminhadas, mas Beth e Tamara fizeram questão de levar-me de carro, dizendo que depois eu poderia voltar a pé.

Dona Eunice e Seu João estavam me esperando. Já de chegada eu me senti vivendo um sonho encantado. Que lugar! Que jardim! Que paineira! Que casa!... Eu não sabia o que mais admirasse. Minha imaginação começou fertilmente a trabalhar. E fomentada pelos relatos minuciosos de ambos... como foi longe!

Levaram-me a todos os recantos, e eu só tinha exclamações de admiração.

O pomar, plantado por Seu João, é lindo e muito grande, estendendo-se até o Córrego dos Tatit. Há uma variedade de árvores frutíferas, dentre as quais uma de que eu nem mais me lembrava. Ele perguntou-me:

"Você conhece esta? Garanto que nunca ouviu falar… é um jambeiro".

Como não haveria de conhecer? Tínhamos um no fundo do quintal, na divisa com a Prudente de Morais... que era um tormento! O dia inteiro batiam palmas à nossa porta ou tocavam a campainha. Moleques, naturalmente.

Minha mãe ia atender.

"A senhora me dá um jambo?"

Papai encheu-se daquilo, e como a árvore estivesse muito grande, já misturando a copa com a da ameixeira e incomodando os vizinhos... o pobre jambeiro teve de ser sacrificado. Nunca mais vi um jambo em minha vida. E agora ali, diante dos meus olhos, um igualzinho!

Seu João contou que o jambeiro estivera muito doente e que somente à custa de pacientes cuidados seus, conseguira sobreviver.

A casa conserva, com algumas alterações exigidas pelo conforto, os elementos principais com que foi construída. Batentes, portas, trincos, janelas... tudo evoca um tempo que eu desejara ter vivido... poético, poético...

O galpão, cheio de velhos arreios, máquinas antigas, carrocinhas, rodas, paiolzinho de milho atopetado, pilão, máquina de fazer garapa... tudo isso rendeu-me totalmente, completando o romance em minha imaginação.

E a hospitalidade dos donos, o cafezinho servido na velha sala, nós três sentados, e eu tendo à vista um quadro natural em cada porta ou janela, os gansos chapinhando alegremente a água do pequeno tanque... reportei-me aos fascinantes contos de fazenda do velho Lobato... sonhando... sonhando.

Acordei somente no momento de ir embora. Despedi-me do amável casal sumamente agradecida pela oportunidade, e encantada com o carinho que ambos devotam à velha chácara da família, procurando preservar-lhe tanto quanto possível as características originais. Ali se dá — literalmente — uma "volta às raízes".

Retornei a pé, curtindo as belezas do caminho, o córrego, o campo, as casas, as ruas, o novo panorama com o prédio de andares, e o Fórum novo, parcialmente coberto de hera... Se eu antes já era "vidrada" naquela paisagem... depois dessa visita nunca mais vou conseguir tirá-la da imaginação.

(Tribuna de Itararé— 25/10/1989)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XVIII

Águas claras, cristalinas,
ou turvas em profusão,
alimentam as turbinas
pela força da vazão.
= = = = = = = = = = =

Aguerrido, forte e bravo,
seja todo o brasileiro,
jamais venha ser escravo
da cobiça e do dinheiro.
= = = = = = = = = = =

À indústria tão resoluta
não tem tarefas banais,
'transforma a matéria bruta
em produtos usuais'.
= = = = = = = = = = =

À janela o olhar perpassa
vendo um cenário incomum,
se fechada ou sem vidraça
não se vê cenário algum.
= = = = = = = = = = =

Consolai todo o que chora
e com quem canta, exultai!
Não tem dia, não tem hora
pra partir... Perseverai!
= = = = = = = = = = =

Meu sonho pode não ser
qual uma flor no jardim,
mas dele ascende o viver
florescendo a vida em mim.
= = = = = = = = = = =

Nas plantações da existência
cresce o trigo e cresce o joio,
temos que agir com prudência
tendo firme o pé de apoio.
= = = = = = = = = = =

Na vida nem sempre temos,
tudo o quanto desejamos,
mas com trabalho podemos,
alcançar o que almejamos.
= = = = = = = = = = =

Ninguém transite na vida
sem deixar algum sinal,
ou mensagem a ser lida
do começo até o final.
= = = = = = = = = = =

Nos canteiros desta vida
se uma roseira cresceu,
deve ser sempre mantida
no lugar que era só seu.
= = = = = = = = = = =

Num sepultamento, alguém
chora lágrimas de dor,
pois morre um pouco também,
frente a quem deu tanto amor.
= = = = = = = = = = =

O aluno na formatura
se enche de satisfação,
mas não vê aquela futura
depender da execução.
= = = = = = = = = = =

O mal espalha a semente
do joio em lugar do trigo,
o homem que não for prudente
cai nos laços do inimigo.
= = = = = = = = = = =

O mosquito, tão pequeno,
tem grande poder de ação,
gerando com seu 'veneno'
indigesta infestação.
= = = = = = = = = = =

O mundo pertence aos vivos
e aos mortos a luz divina,
que Deus nos conserve altivos
sendo à fé quem ilumina.
= = = = = = = = = = =

O rosto do Deus-humano
quando ferido sangrava,
impresso, ficou no pano,
que Verônica o secava.
= = = = = = = = = = =

Para o produto chegar
pelo caminho normal,
ao comércio, cabe dar,
o seu destino final.
= = = = = = = = = = =

Pelas janelas do bem
nossas virtudes são vistas,
possam ser luzes também
para as almas altruístas.
= = = = = = = = = = =

Pobre raposa enroscada
se faz morta astutamente,
para fugir da emboscada
numa morte só aparente.
= = = = = = = = = = =

Primeiras horas do dia
a mesa toda arrumada,
um café gera energia
no limiar da jornada.
= = = = = = = = = = =

Que o potencial do saber
produza conhecimentos!
Fonte de onde irão beber
nossos filhos, tão sedentos!
= = = = = = = = = = =

São tantos esconderijos
que o réptil se refugia,
alguns por serem mais rijos
quer de noite, quer de dia.
= = = = = = = = = = =

Somente atravesse a rua,
num local muito agitado,
se a preferência for sua
mesmo assim, tenha cuidado!
= = = = = = = = = = =

Surgindo, o sol nos comove
de manhã com luz radiante,
mas é a terra quem se move,
ao redor do sol brilhante.
= = = = = = = = = = =

Toda a música desvela
um toque sentimental,
em qualquer língua revela
seu valor universal.
= = = = = = = = = = =

Toda estrela dá suporte
pigmentando o firmamento,
faz o homem se sentir forte
nas noites de isolamento.
= = = = = = = = = = =

Todo centavo ofertado
é tão pouco, vais dizer!
Mas para o necessitado
muito bem pode fazer.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Raul Pompéia (Rogério, o rude)

E um velho apareceu. Muito velho; os cabelos brancos, franjas encacheadas desciam-lhe aos ombros, tão brancos, tão realmente prata, que todo o ouro do dia nascente não conseguia dourar. Perdia-se sobre aquele inverno, todo o esforço de um sol pujante de primavera.

— Vens, talvez ao meu apelo? Ninguém me pode valer. Queixo-me do passado irrevogável que me preparou esta vida de amarguras. Não há remédio.

— Nada desejo, entretanto, para mim. Meu filho são as minhas aspirações e o infeliz, tão moço, é já um condenado. Eu o quisera iluminado e a escola o repeliu. Cresceu-lhe pelos à beira da testa como orelhas de onagro e eu lhe quisera um perfil de medalha. Indico-lhe a cidade, o caminho largo do sucesso e o selvagem reclama o campo, o campo. Quisera vê-lo calcando aos pés o galanteio das princesas, tapete de corações!... e vou surpreendê-lo a desabotoar amor às virtudes campônias cheirando a estrume e a feno...

— Tranquiliza-te. Teu filho está grande. Mas é preciso que me ouças. Deixa cair a foice; o trabalho é a escravidão. Míseros, aqueles que se escravizam à gleba. O pedreiro acumula a alvenaria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha; edifica o fundamento e o esqueleto da muralha. Vem o pintor e encobre a valia de todo aquele trabalho com a ligeira camada das tintas. E o arquiteto vem e debuxa a linha aristocrática do arabesco, que é como uma inscrição em que se recomenda ao futuro e à glória. E o estatuário sobre o monumento do pintor e do arquiteto apóia uma grande estátua, asas de bronze abertas para o céu, como um anjo insolente de gênio, prestes a escapar-se para a apoteose. Quem vai lembrar-se, diante desta grandeza, do obscuro operário da muralha? O pedreiro trabalha; é o servo; os outros triunfam. Triunfar é fabricar aparências. O melhor pedestal da nossa vitória é o despeito da concorrência. A evidência fere o despeito com um deslumbramento. Fabrica a evidência e verás.

"Nada me perguntes. Bem sei do que digo. Sou muito velho. Chamam-me zombando: o Experiência, e eu me chamo Século. Sou filho do Tempo e vou... meu destino é ir. Os dias são os meus irmãos; passam por mim, conheço-lhes o sorriso. Toma. Este é o cofre dos meus recursos. Retira a mão, cheia quanto precisares. Tudo terás para teu filho. O condão misterioso da caixa guarda expedientes contados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será grande, iluminado, poderoso. Vencerá distâncias sociais e altitudes de prestígio. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Ele será Papa! Chamar-se-a Leão."

E o velho extinguiu-se numa evasão de sonho, desfeito em névoa, em nada, como uma forma de vapores no espaço, deixando apenas por momentos a impressão lúcida das alvas barbas, como a lembrança de um meteoro.

"Fabrica a evidência e verás, dissera o velho, fabrica e evidencia. Mas é incrível! A alma latente do mundo não se revela assim... mas este cofre é real, é positivo. Uma ilusão palpável?! E o que será então a realidade? Abramos-o e ensaiemos."

Aberto o cofre, foi como um derramamento de Paraíso. Expandiu-se no ambiente uma sensação de ventura que chegou até às flores. Os pedúnculos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez lânguida do ar.

— Que meu filho apareça.

E mal fora este desejo enunciado, que surgiu em pessoa Rogério, o rude, olhos oblíquos de selvagem, pelos fartos à beira da testa, como orelhas de onagro:

— Que me quereis, pai?

— Que sejas nutrido...

E ali mesmo, a olhos vistos Rogério inchou como um balão, arredondou-se de plástica; exibiu-se às ambições paternas, bochechudo como um sopro de Éolo, alteadas as protuberâncias da carne em polpas de ádipe, avançando e ostensivo o umbigo em próspero ventre de Sileno jovem.

— Que sejas belo.

E no mesmo instante, sobre a gorda prosperidade de Rogério, abriram-se as rosas da formosura. Esvaíram-se os pelos do onagro; o olhar oblíquo do selvagem endireitou-se em franca perpendicular, temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecê-lo dentro daquela frescura macia de cores e de carnes, esgaravatar-lhe a minguadíssima parcela de boçalidade agreste que lhe servia de alma, nos interstícios da ironia daquele sorriso de bailarina petulante.

— Que detestes convictamente o campo e todas as suas tentações.

E no coração de Rogério nasceu de súbito estranho mal-estar, a febre dos predestinados; espécie de saudade absurda de coisas desconhecidas, grandes ruas, vastas praças, tumulto e movimento durante o dia, luz e festas durante a noite; sede de viagens e fome de aventuras, avidez intensa por grandes tentativas e maiores êxitos. Apagou-se a memória dos primeiros anos, a meninice de poldro, a adolescência de bode farto. Fugiu-lhe de vez o aferradíssimo apego aos idílios do estrume e dos fenos.

"Parte, meu filho, e vai pelo mundo. Grande hás de ser, iluminado e poderoso. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Tu serás Papa! Chamar-te-ás Leão. Parte!"

E tantas vezes abriu-se o cofre dos recursos que, Rogério, o rude, subiu ao trono pontifical.

Mordei-vos, despeitados! Invejosos, imitadores e plagiários, basbaques das honrarias que levais a vida olhando para o alto, impotentes de todas as categorias, e de todas as ambições, mordei-vos! Ele triunfou. Entronizou-se no superlativo da pose. Tudo que se arma na terra de brocardo e ouro, tudo ele foi; hoje, é Papa e chama-se Leão. Dobrai o joelho; beijai-lhe as pegadas, que cada prego de seu calçado grava no chão um selo de santidade. O favor de um só dos seus olhares exalta-nos e nos enche com a munificência de Assuerus. Que se há de fazer ao homem a quem El-Rei quer honrar? Ele olha e basta. Aquele olhar veste-nos do linho real, e, sobre opulentos jaezes de um corcel altivo, passeia-nos através dos aplausos de uma capital em delírio.

Roma é o cenário do seu triunfo, a herdeira universal do esplendor artístico das idades, do aparato ostentoso da humana vaidade no passado, metrópole arrogante de todas as ênfases do catolicismo, orgulhosa da glória dinástica das próprias tradições.

Lá está.

Diante, arrojam-se os cardeais, fazendo agitar-se em mar de sangue a multidão dos ombros em cabeções vermelhos. Mais baixo, no escuro, a massa miserável de uma população prostrada. Dessa humilhação e dessa sombra, eleva-se apenas, medroso ainda assim de se elevar, um murmúrio de prece. Ao redor do trono, sob o docel, vistosa homenagem da Arte, imagens que passam com a expressão celestial dos rostos de Fra Angelico, visões da capela Sixtina, academias funambulescas que se contorcem, acrobatas do terror, que se despenham de toda a altura do céu e da Fé - povoando o espaço de aspectos contraditórios em grandiosa desordem, enquanto vibra e avulta, solene na cúpula enorme, a música dos êxtases de Santa Cecília.

E ele no centro, Rogério, hoje Leão, nutrido e belo, em seda branca da cor das transfigurações, sob a tiara de ouro, pasmado de se ver tão grande, mal avistando ao longe, na multidão, o pai que o adora de baixo, acaçapado e satisfeito!

Até que um dia, notando-se-lhe espantosa imobilidade, como se pela magia transformadora das grandezas, acabasse por se consubstanciar o entronizado com o trono, alguém ousado subiu até a eminência a verificar...

Levantaram-lhe a tiara como uma tampa, e viram, maravilha! E viram, no fundo, seco, mirrado e reduzido...

Rogério, o rude, morrera havia muito, dentro daquela armadura de esplendor e de aparência, da nostalgia dos seus campos, represália terrível da boçalidade ludibriada.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, 
Literatura e Linguística da UFSC.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 13: Adelmar Tavares

 


Newton Sampaio (Trem de subúrbio)

Calixto interrompe a discussão, enterra o chapéu na cabeça, cai no mundo. Esbarra nos homens que passam.

O bonde apinhado também esbarra nele. Por um triz teria os pés esmagados.

Procura um cigarro. No bolso não há cigarros.

Procura o relógio. O relógio mostra o ponteiro pequeno bem em cima do número 3. Chega à estaçãozinha. Só o tempo de entrar e o trem sair.

O maquinário rodando lhe dá o gosto longínquo de desaparecimento, de evasão.

Evasão... Longo tempo lhe dança no cérebro, o termo. Evasão...

Fugir da vida...

Mas a vida florescia em tudo, feito milagre permanente. Florescia na paisagem se mexendo sem parar. E no cheiro da máquina vomitando fumaça. E na promiscuidade do vagão, — do vagão cheio de gente se abanando, de cores se exibindo, de perfumes baratos se misturando como os donos.

Ao lado, volumosa ruiva tem os quadris maltratados pela cinta apertadíssima. Perto da ruiva, um velhote percorre as letras de um vago pasquim suburbano. O velhote lê. Mas não fala. Quem fala toda a vida é aquele rapaz de bigode lustroso. Transmite, ao companheiro, imaginárias peripécias do último jogo de futebol.

O companheiro guarda um interesse imenso na história. Não é como a moça de boina azul que não dispensa atenção a nada.

Ela é bonita, está no segundo banco, e olha, e olha.

No mundo existem milhares de moças — de boininha azul ou sem boina — que fazem a mesma coisa. Que têm esse jeito triste, distante. Que espiam silenciosamente. Com vontade de segurar nas mãos aquilo que corre do lado de lá das janelas. Mas as janelas têm vidraças que separam o corpo das moças dos apelos que correm e se sucedem.

É cheia de vidraças, a vida das moças. Por isso há moças de boina espiando, tristinhas. Espiando com olhos parecidos com os de Calixto.

Os olhos de Calixto estão vermelhos e molhados. Por causa de uma faísca impertinente. A faísca obriga-o a esfregar as pálpebras, muitas vezes. Esfrega, esfrega. A ruiva pensa que o rapaz havia chorado. Será que as matronas gordas pensam coisas exatas? Gravíssimo é o problema, cidadãos!

Apesar do problema, o garoto louro do primeiro banco continua chupando o seu caramelo. E se sujando também. Até o fim. Depois, a mãe limpa o rostinho dele. Como agradecimento, o garoto começa a fazer travessuras. Salta no corredor. O trem dá uma sacudidela violenta, e o teria fatalmente derrubado se a moça de boina não o tivesse amparado em tempo.

Cresce um rebuliço. A mãe fica muito pálida, o rapaz de bigode lustroso acha graça, o velhote interrompe a leitura. E a senhorita guarda o menino. Passa-lhe a mão na cabecinha.

— Como se chama?

— Roaldo.

— Quantos anos tem?

A mãe intervém.

— Já fez três. Foi no último agosto.

— Crescidinho, não?

— E ladino! — completa o orgulho materno.

O cabelo do menino tem a cor do sol. Desse sol que atravessa a vidraça e a deixa intacta. Mas a senhorita do segundo banco não tem mais esses pensamentos. Porque uma criança loura quase sempre resolve o silêncio das moças de boina...

Calixto, infelizmente, não se lembra disso. Continua a meditar em torno da discussão com a noiva. Enquanto o trenzinho corre, corre. Vomitando fumaça como um demônio.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
 
Newton Sampaio foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro, considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno.

O adolescente Newton Sampaio transferiu residência em 1925, saindo da pequena Tomazina para estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias (em sua primeira edição) concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade.

Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio.

Publicações:
Romance: Trapo: trechos publicados em jornais e revistas; Dor: publicado, incompleto, no periódico Correio dos Ferroviários.
Novela: Remorso: 1935; Cria de alugado: 1935.
Contos: Irmandade: 1938, premiado pela Academia Brasileira de Letras; Contos do Sertão Paranaense: 1939; Críticas, reportagens e entrevistas; Algumas Vozes do Brasil; Reportagem de Ideias: contos incompletos.


Fontes:
- Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
- Biografia do autor: Wikipedia

Adriane Garcia (Fábulas para adultos em versos) 1

A PRINCESA E O MENTIROSO


Enganou-me dizendo que tinha
Fazendas
Lavouras que administrava ele mesmo
Mas
Tudo que tinha
Era
Um gato
Em que calçava botas para não dar a entender que
Sua consciência era escrava

E cá estou eu
Dormindo com o
Nunca havido
Marquês de Carabás.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

E O RATO ROEU A ROUPA...

Todos viram a roupa
E o rei viu a roupa

(jamais tão bela as tivera antes)

Saiu orgulhoso com seu corpo
Curado de há tanto não ter ilusão

Só uma criança não viu
Dessas viciadas em televisão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O PATINHO FEIO

No primeiro quá-quá
Que disse
Já havia sido interrompido:
– É quém-quém, é quém-quém!

E foi informado que seu ovo
Nasceu quadrado
Quebrou do lado errado
E incomodava por ter quina

Todos os bichos do curral, da sala, do quintal
Eram-lhe muito diferentes
E tentou ser cada um deles, sem sucesso.
Soluçava...

Um dia sonhou com um cisne
Grannnnnnnnnnnnnnnnnnnde
Que sem nenhum soluço lhe dizia:
– Vai procurar a sua turma!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O SAPO E A PRINCESA

O sapinho Croac-Croac
Aparece na janela
Toda noite a mesma coisa
Faz serenata pra ela

Malabares, se contorce
Na esperança de um beijo
Ela nada, vira e dorme
Fica adiando o desejo

O sapinho Croac-Croac
Sofre, finge realeza
Nem sabe que ela é sapa
Disfarçada de princesa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

OS ARTISTAS

Os artistas são aqueles que veem
Chifre em cabeça de cavalo:
São deles os unicórnios.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PARA A ENTEADA

O espelho, espelho meu
Dizia que qualquer uma
Era mais bela do que eu

E eu acreditei anos a fio
Nesse presente
Que a Madrasta me deu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERSONAGENS

No Grande Hospício
Eu penso que eu sou eu
Tu pensas que tu és tu
Ela pensa que ela é ela

E ele pensa que ele é ele
Nós pensamos que nós somos nós
Vós pensais que vós sois vós
E eles pensam que eu sou louca.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SOB OS DOSSÉIS

Toda noite morríamos mais um pouco
Fingindo que
Nosso cavalo era o unicórnio encantado:
Pangaré estava manco e deveria ser sacrificado.

Toda noite morríamos mais um pouco
Fingindo que
O beijo dele me despertava:
Eu era movida para o tédio e o nojo.

Toda noite morríamos mais um pouco
Fingindo que
Nosso castelo era por toda a eternidade encantado:
Eram rachaduras que formavam nosso teto.

Mas toda noite morríamos, toda noite insistíamos
Mais um pouco:
Porque não fomos
Felizes para sempre.

Fonte:
Adriane Garcia. Fábulas para adulto perder o sono. Curitiba, PR : Secretaria de Estado da Cultura : Biblioteca Pública do Paraná, 2013.

Minha Estante de Livros (Novelas Exemplares, de Miguel de Cervantes)


Como gênero literário, a novela já existia, mas, como nota o próprio Cervantes, ele é o primeiro a tentá-la na Espanha. Ele experimenta o gênero em todas as direções possíveis, com relatos bizantinos, cortesãos ou picarescos. E mais: busca estabelecer um padrão realista, fala do cotidiano das pessoas, de uma Espanha que podia ser vista da janela de casa. É interessante notar como ele, filho de uma sociedade machista, sabe das dores femininas e pinta mulheres inteligentes e espirituosas, quando outros as queriam apenas lindas e submissas. É exemplar como Cervantes, homem de temperamento satírico, conseguiu despistar a censura, deixando transparecer entre exaltações aos reis e à Igreja, seu país violento e sensual, trapaceiro e cobiçoso, em que o estupro, por exemplo, é aceito com naturalidade, e um casamento é o único sinal de respeito que se tem pelas mulheres. A edição traz aparatos críticos de estudiosos do autor, notas, poemas em sua versão original e ilustrações.

As Novelas exemplares são uma série de novelas curtas que Miguel de Cervantes escreveu entre 1590 e 1612, e que publicaria em 1613 em uma coleção editada em Madrid por Juan de la Cuesta, devido à grande acolhida que obteve com a primeira parte de Dom Quixote. A princípio receberam o nome de Novelas exemplares de honestíssimo entretenimento.

Trata-se de doze novelas curtas que seguem o modelo estabelecido na Itália. Sua denominação de "exemplares" obedece ao fato de serem o primeiro exemplo castelhano desse tipo de novelas, e ao caráter didático e moral que incluem em alguma medida os relatos. Cervantes se gabava, no prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano.

Costumam ser agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista. As de caráter idealista, que são mais próximas à influência italiana, se caracterizam por tratar de argumentos de enredos amorosos com grande abundância de acontecimentos, pela presença de personagens idealizados e sem evolução psicológica e por escasso reflexo da realidade. Se agrupam aqui: O amante liberal, As duas donzelas, A espanhola inglesa, A senhora Cornélia e A força do sangue. As de caráter realista atendem mais à descrição de ambientes e personagens realistas, com intenção crítica muitas vezes. São os relatos mais conhecidos: Rinconete e Cortadillo, O licenciado Vidriera, A pequena cigana, A conversa dos cachorros ou o ilustre esfregão. Não obstante, a separação entre os dois grupos não é categórica, e, por exemplo, nas novelas mais realistas podem-se encontrar também elementos idealizantes.

Já que existem duas versões de Rinconete e Cortadillo e de A ciumenta extremadura, pensa-se que Cervantes introduziu nestas novelas algumas variações com propósitos morais, sociais e estéticos (daí o nome de "exemplares"). A versão mais primitiva se encontra numa coleção mista de diversas obras literárias entra as quais se encontra uma novela habitualmente atribuída a Cervantes, A tia fingida. Por outro lado, algumas novelas curtas se acham inseridas também no Dom Quixote, como O curioso impertinente ou uma história do cativo, que conta com elementos autobiográficos. Ademais, alude-se a outra novela já composta, Rinconete e Cortadillo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Adega de Versos 53: Hermoclydes S. Franco

 

Cláudio de Cápua (O Mundo Literário em Preto & Branco) Judas Isgorogota


Na década de 60, por intermédio de Américo Bolonha, renomado jornalista e chefe das oficinas de "A Gazeta", travei conhecimento com quem, anos depois, teria a felicidade de conviver profissionalmente - Judas Isgorogota, jornalista ativo e intelectual de rara sensibilidade e poeta dos mais inspirados dentre os que valorizam a literatura nacional.

Judas Isgorogota nasceu em Lagoa da Canoa, município de Iraipu, no estado de Alagoas, no dia 15 de setembro de 1901. Seu nome de batismo Agnelo Rodrigues de Melo. Faleceu em 10 de janeiro de 1979, aos 77 anos.

O motivo de ter adotado o pseudônimo de Judas Isgorogota é que, ao publicar o seu primeiro soneto, "Madrepérolas", como Rodrigues de Melo, surgiu um homônimo poeta menor que o acusou de assim assinar para criar confusão e que de má fé queria tirar proveito próprio. Bastante aborrecido, apressou-se Agnelo em arranjar outro nome literário.

Tendo um irmão chamado Messias, que era desenhista e ilustrador gráfico e que pelo menos por três décadas se notabilizou em todo o país, Agnelo decidiu: já que existe um Messias na família, vai também existir um Judas.

O nome lembra o apóstolo da traição - Judas Isgorogota - assim chamado por ter nascido no povoado de Kareoth. Ao invés de Iscariotes criou a corruptela de Isgorogota.Com esse pseudônimo, Agnelo Rodrigues de Melo sagrou-se um dos maiores poetas do século XX do Brasil.

Judas Isgorogota era sério e rigoroso, mas também tinha suas sacadas de humor. Vamos a uma delas; nós tínhamos um colega na Rádio Gazeta, rico em virtudes intelectuais, mas... cujos dotes morais não correspondiam ao seu douto-saber; procurava obter vantagens financeiras entre o grupo e Judas, quase que desculpando o colega que se retirava, comentou: – Sabem, fulano tem 11 filhos e vive em constante apuro financeiro. A melhor coisa que se tem a fazer é não emprestar dinheiro pra ele porque, se for pouco, ele esquece e, se for muito, não tem como pagar...

Em outra ocasião, em noite de garoa de inverno paulistano, Judas não parava de tossir. Naquele momento estava na redação o jornalista médico Monteleone, que também ocupava cargo na direção do jornal. Doutor Monteleone prescreveu uma receita para dar fim à tosse do seu ilustre colega. Judas Isgorogota guardou o papel em um dos bolsos. Antes de passar na farmácia, saímos da redação na Av. Cásper Libero e fomos em grupo, Judas, Monteleone, este que vos narra o fato e outros companheiros de imprensa tomar um cafezinho num bar da rua Antonio de Godói. No primeiro gole, Monteleone engasgou-se sendo acometido de forte tosse.

Judas comentou, assim que o médico saiu: - Vou jogar fora este papel por que, afinal, se o doutor não consegue curar a si mesmo, com que autoridade me passou esta receita?

Muito poderia dizer sobre Judas Isgorogota, mas encerro aqui reverenciando a memória desse Judas que, em contra oposição ao nome, jamais traiu alguém e muito enobreceu o mundo das letras nacionais.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retrovisor: crônicas. Publicado em Santos/SP, pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXI

DESPERTO SEMPRE ANTES QUE RAIE O DIA

 
Desperto sempre antes que raie o dia
E escrevo com o sono que perdi.
Depois, neste torpor em que a alma é fria,
Aguardo a aurora, que já quantas vi.

Fito-a sem atenção, cinzento verde
Que se azula de galos a cantar.
Que mau é não dormir ?  A gente perde
O que a morte nos dá pra começar.

Oh, Primavera aquietada, aurora,
Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria,
O que é que na alma lívida a colora
Com o que vai acontecer no dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DEVE CHAMAR-SE TRISTEZA
 
Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza  -  mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
 De entre as mãos ricas de pó.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DÓI VIVER, NADA SOU QUE VALHA SER
 
Dói viver, nada sou que valha ser.
Tardo-me porque penso e tudo rui.
Tento saber, porque tentar é ser.
Longe de isto ser tudo, tudo flui.

Mágoa que, indiferente, faz viver.
Névoa que, diferente, em tudo influi.
O exílio nado do que fui sequer
Ilude, fixa, dá, faz ou possui.

Assim, noturno, a árias indecisas,
O prelúdio perdido traz à mente
O que das ilhas mortas foi só brisas,

E o que a memória análoga dedica
Ao sonho, e onde, lua na corrente,
Não passa o sonho e a água inútil fica.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DÓI-ME QUEM SOU. E EM MEIO DA EMOÇÃO
 
Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DO MEIO DA RUA
 
Do meio da rua
(Que é, aliás, o infinito)
Um pregão flutua,
Música num grito...

Como se no braço
Me tocasse alguém
Viro-me num espaço
Que o espaço não tem.

Outrora em criança
O mesmo pregão...
Não lembres... Descansa,
Dorme, coração !...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DORME, CRIANÇA, DORME
 
Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.

Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.

Evely Libanori (A levíssima presença do instante)

Hoje libertei o bem-te-vi que criei. Entramos na mata, casa dele, ele na minha mão fechada. Eu ia conversando e explicando.

E então eu abri a mão, mas ele não voou. Eu era a mulher com a mão aberta dando a liberdade ao passarinho. Mas ele não voava, Eu, cheia de tristeza, alegria, coragem e júbilo, arremessei ele para o alto, e ele voou para um galho lá em cima. Foi para bem alto.

Ficou olhando, olhando, me olhando lá de cima. Passou uma borboleta, ele virou a cabeça, acompanhou.

Eu pensei; "Que bom, ela agora é o seu alimento, e você está por você, agora não vem mais da minha mão". E ele vai conseguir. Já estava feito, peito estufado, inquieto, treinado, ansioso. Eu não quis que ele esperasse mais, ele já estava pronto. Ficar com ele seria egoísmo meu.

Eu me despedi e saí da mata, não olhei para trás. Como me apeguei a esse passarinho, ele no escritório cantando... Agora, este silêncio. Separar-se de quem se ama: a força que a vida pede de nós. Eu alimentei de três em três horas durante três semanas, só parando para dormir. E vi ele crescer. De criança passou a adolescente, o voo certeiro. O passarinho que voava pela minha cabeça enquanto eu digitava.

Há horas ele estava aqui, agora não está mais e nunca mais estará. E só importa que ele fique bem. E não importa que não nos vejamos. A nossa história é para sempre e foi linda.

Tive um bem-te-vi na minha vida por vinte e um dias. Ouvíamos Strauss e ele cantava. E ele teve a uma humana que o amou. Agora, ele está lá, na mata, sendo passarinho. Ele tem instintos. Lá na mata tem outros bem-te-vis, ele vai ficar bem, Ele solto no céu e na mata. Na minha cabeça, estou com os olhos, o bico aberto para mim, o amarelo do peito dele, o cheiro das penas, o ruflar das asas em cima de mim, o canto, o canto que era de um bem-te-vi.

Eu fui de um bem-te-vi. E cuidei. E hoje eu lancei ele para a vida da mata. Sei que esta noite eu estarei na cama e estarei com ele pousado no galho de uma árvore da mata escura. E, hoje, apesar de estar quente, vai ser uma noite fresca para mim, Eu e esse passarinho bem-te-vi.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 6

 

Sammis Reachers (A pinga, os pinguços e a vala de óleo)

O motorista era o Sidnei, que além de militar como chofer de busão era também soldado da Polícia Militar, no tempo em que era possível aos tais manterem dois empregos. Sidnei era o que podemos chamar de 'bandalha', aquele motorista meio amalucado, que quando dá na venta, faz o que quer.

Bem, nesse dia Sidnei vinha com o carro para a garagem da Ingá, já encerrados os trabalhos no turno da tarde, recolhendo de seu expediente na linha 31 (Beltrão X Ponta da Areia). O ônibus era um antigo queixo duro, com portas enormes.

O cobrador, outro presepeiro de responsa, o lendário Chacrinha, deitou-se no banco de trás do ônibus e veio dormindo enquanto Sidnei dirigia-se à garagem.

O bom Sidnei, bandalha como só ele, havia tomado umas cachaças antes de levar o carro para a garagem, mais até do que ele estava acostumado. Sim, grave infração, mas o cara era cana... Ao entrar na garagem, alguém lhe disse para colocar o carro 'na vala', que é uma parte elevada onde se lavam as partes inferiores e se fazem reparos nos ônibus. Sidnei, muito mamado, arremeteu à toda em direção à vala.

Segundos antes, ele havia aberto as duas portas, para que o marcador de roletas (catraca) na portaria da empresa pudesse anotar o número do encerrante, mas ao andar esquecera-se de fechá-las. Enquanto isso o velho Chacrinha, o cobrador, também mamado, nada de acordar.

Ao aproximar-se da vala, ao invés de diminuir a velocidade para posicionar o veículo no estreito espaço, o maluco do Sidnei se atrapalhou e acelerou ainda mais. O resultado? Deu uma grande bordoada no muro ao fim da vala, que foi ao chão.

Quanto ao cobrador Chacrinha, o boneco caiu do banco fim rolou como uma jaca madura e caiu para o fundo da vala, que sempre estava molhada e cheia de óleo e graxa.

Levantou-se desnorteado e todo torto, xingando, efeito da cachaça...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 6 –

AO LEITOR

Quando escrevo me assalta um pensamento
indeciso de não saber a quem
possa atingir meu louco sentimento
e duvidar assim não me faz bem...

Espero apenas que o meu sofrimento
não vá prejudicar... ferir ninguém...
Ponho aqui realidade e fingimento
para a escolha daqueles que me leem.

Segue junto comigo se te apraz
conhecer solidão e fantasia,
às vezes desespero, às vezes paz:

meus Sonetos e Cânticos Dispersos
dizendo que no mundo da poesia
cada qual é o poeta dos seus versos…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

AQUELA NOITE, AQUELE SONHO...

Aquela noite que eu sonhei contigo
não foi tão triste como as outras mais.
Aquele sonho belo eu não maldigo,
naquelas horas eu te amei demais.

Sonhei imensamente e não consigo
esquecer teus abraços irreais.
O destino era então o meu amigo
e tu, meus devaneios ideais...

Hoje, volto pra o quarto novamente,
sem vontade de me atirar ao leito
que me espera num único convite.

Por fim, meu corpo pálido consente
e na esperança de sonhar-te deito,
ouvindo os pios que a coruja emite!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“CIGARRAS CANTAM NA MANHÃ SERENA”

Cigarras cantam na manhã serena
que se aproxima já do meio-dia,
e escutando a estridente cantilena
fico a pensar... do mundo o que seria ?

se não houvesse o encanto da poesia
pra libertar o espírito que pena
mergulhado em tristeza e nostalgia
afeito assim à condição terrena.

E me pergunto nestas horas calmas
o que pudera confortar as almas
quando envoltas em ânsias e conflito,

se não fossem os sons da natureza,
as flores coloridas e a beleza
do céu azul, das nuvens, do infinito?!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NOITES DE LUAR

Estou de novo só... mas conformado
porque posso enfrentar a solidão,
sem esquecer também que no passado
derramei minhas lágrimas em vão.

É preciso entoar uma canção
que venha merecer o teu agrado,
isenta de qualquer desilusão
como se nunca houvesse soluçado.

Eu olho os céus e como antigamente
as noites têm estrelas e luar
que me permitem outra vez sonhar;

e não me sinto triste nem contente,
porquanto a vida agora é diferente:
tenho a poesia para não chorar…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SONETO A MÁRIO QUINTANA

Leio Mário Quintana e A Rua dos Cata-ventos
me leva à infância de menino sonhador,
quando inda não pensava em mágoas e tormentos
que havia de sofrer ao procurar o amor...

Vejo os dias sem sol, frios e nevoentos,
tal a Londres longínqua envolvida em palor,
... (tudo esquecer talvez !)... os bons e maus momentos,
as horas de alegria e também as de dor.

A ruazinha é tão calma e sossegada; agora
minha imaginação ouve canções de outrora ,
e os lindos pregões da madrugada , me acordam...

Olho ao alto girar um cata-vento triste,
parece ser assim o último que persiste
de todos que, os de minha infância, hoje recordam !

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Guimarães Rosa (Pirlimpsiquice*)


Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e menos da desordem do que do rumor. Depois, os padres falaram em por fim a festas dessas, no Colégio. Quem nada podia mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de coreografia e história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive, estará lá já após de velho. E o endiabrado pretinho Alfeu, corcunda? Astramiro, agora aeroviário, e o Joaquincas — bookmaker e adjazidas atividades – com ambos raro em raro me encontro, os fatos recordam-se. A peça ia ser o drama “Os Filhos do Doutor Famoso”, só em cinco atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o representar? Às vezes penso. Às vezes, não. Desde a hora em que, logo num recreio de depois do almoço, o regente Seu Siqueira, o Surubim, sisudo de mistérios, veio chamar-nos para a grande novidade, o pacto de puro entusiasmo nosso avançara, sem sustar-se. Éramos onze, digo, doze.

Atordoados, pois. O padre Prefeito, modo solene, fez-nos a comunicação. Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente, à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse, leu-se desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era. Quando o Dr. Perdigão nos despachou, lembramo-nos de que na turma estavam de mal os dois mais decididos e respeitados — Ataualpa, que ia ser o Doutor Famoso, e o Darcy, o Filho Capitão. Mas os mesmos conviram logo em precisar pazes, sem o caso de a gente bem-oficiar se oferecendo de permeio. Tocaram de bem, dando ainda o Ataualpa ao Darcy um selo do Transvaal, e o Darcy a Ataualpa um da Tasmânia ou da China. Em seguida, eles, de chefes, nos sobreolharam, e pegaram com ordens: — “Ninguém conta nada aos outros, do drama!” Concordados, combinou-se, juramos. Careciam-se uns momentos, para a grandiosa alegria se ajustar nos cantos das nossas cabeças. A não ser o Zé Boné, decerto.

Zé Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal — figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife. Dele, bem, se ria. O basbaque. Mesmo assim, acharam que para o teatro ele me passava; decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por retraído e mal à vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não fosse o padre Diretor, de bom acaso vindo entrando, declarar que, aluno aplicado, e com voz variada, certa, de recitador, eu podia no vantajoso ser o “ponto”. Sorri de os outros comigo, amigos, mexerem. Joaquincas, o que era para personificar o Filho Padre, me deu duas marcas novas de cigarros, e eu a ele uma prata de quinhentos réis e o meio pão que estava guardando na algibeira. Aí, o Darcy e Ataualpa, arranjada coragem, alegaram não caber Zé Boné com as prestes obrigações. Mas o padre Prefeito repreendeu-nos a soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné tocava, de um policial, se versava dos mais simples, com escasso falar. Adiantou nada o Araujinho, servindo de o outro policial, fazer a cara amargosa: acabou-se a opinião da questão. Não que Zé Boné à gente não enchesse — de inquietas cautelas. O segredo ia ele poder guardar?

Aí, mais, teve-se dúvida. Se os outros alunos se embolassem, para à força quererem fazer a gente contar a estória do drama? Dois deles preocupavam-nos, fortes, dos maiores dos internos, não pegados para o teatrinho por mal comportados incorrigíveis! Tãozão e o Mão-na-Lata, centro avante do nosso time. E um, cá, teve a ideia. Precisávamos de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais inventada, que íamos falsamente contar, envolvendo os demais no engano. E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.

Sem razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem na estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia (chacota) ou peripécia, logo e mal encartadas em suas fitas de cinema; pois, enquanto recreios houvesse, continuava ele descrevivendo-as, com aquela valentia e o ágil não-se-cansar, espantosos. E o Tãozão e Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam, fingindo decerto não dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares em extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a máscara: “fuça de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. Ouviam, gostavam, exigiam mais. Até o pretinho Alfeu, filho da cozinheira, e aleijado, voltava se arrastando com rapidez para a escutar, enquanto o Surubim não o via e mandava embora. Já, entre nós, era a “nossa estória”, que, às vezes, chegavamos a preferir à outra, a “estória de verdade”, do drama. O qual, porém, por meu orgulho de “ponto”, pusera eu afinco em logo reter, tintim de cor por tintim e salteado. Descontentava-me, só, na noite do dia, dever ficar encoberto do público, debaixo daquela caixa ou cumbuca, que por ora ainda não se tinha, nos ensaios.

— “Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade” — exortava-nos o Dr. Perdigão, sobre suas sérias barbas. Ataualpa — o “Peitudo” — e Darcy — o “Pintado” — determinavam se acabasse, em hora, com essa tolice de apelidos. Umas donas estariam costurando as roupas que íamos revestir, os fraques do Doutor Famoso e do Amigo, a batina do Filho Padre, a farda do Filho Capitão, só trajes. Alvitrou-se senha de nos tratarmos só pelos nomes em drama: Mesquita, o “Filho Poeta”, Rutz, o “Amigo”, Gil, o “Homem que sabia o segredo”, Nuno, o “Delegado”. O Dr. Perdigão dirimia os embaraços: em vez de o “Criado”, o Niboca chamar-se-ia melhor o “Fâmulo”, Astramiro o “Redimido”, e não o “Filho Criminoso”; eu, o “Mestre do Ponto”. — “Lembrem-se: circunspecção e majestade…” proferia o Dr. avante — … e: “Longa é a arte e breve a vida… — um preconício dos gregos!” Inquietávamo-nos, não fossem destituir-nos daquele sonho. Íamos proceder muito bem, até o dia da festa, não fumar escondido, não conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas aulas. Os que não éramos “Filhos de Maria”, impetrávamos fazer parte. Joaquincas comungava a diário, via-se mesmo só ideal, já padre e santo. Todas as tardes, a partir do recreio de depois do jantar, subia-se para o ensaio, demorado, livrando-nos dos estudos da noite sob o duplo olhar do Surubim; essa vantagem, também, os outros nos invejavam. — “Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad astra per aspera! Sempre dúcteis ao meu ensinamento…” — o Dr. Perdigão observando. Suspirávamos pelo perfeito, o estrito jogo de cena a atormentar-nos. Menos ao Zé Boné, decerto. Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia palavra. E já o dia vindo próximo, nem mais duas semanas. Por que não o trocar, ao estafermo? Não o Dr. Perdigão: — “Senhores discípulos meus, para persistir no prepará-los, a perseverança não me desfalece!” Zé Boné, do tom, tirava algum entender, empinava-se inconfuso e contente. Ah, seu “ensino”, à rija, à vera, seria para ele nos pagar. Não por enquanto. Só se ansiava. Sempre juntos, no notável, relegados os planos para as férias, e mesmo só por alto lembrado o afã do futebol.

Se não os tempos e contratempos. Troçavam de nós, os outros? Citando, com ares, o que não entendíamos, nem. Diziam já saber a verdadeira estória do drama, e que não passávamos de impostores. De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado, de muita inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da verdade. O cume de cachorro! Nele, passada a festa, jurou-se também uma sova. Por ora, porém, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que nos deixava humilhados. Repetíamos, então, sem cessar, a nossa estória, com forte cunho de sinceridade. Sempre ficavam os partidários de uma e de outra, não raro bandeando campo, vez por vez, por dia. Tãozão e Mão-na-Lata chefiavam o grupo dos Gamboas?

— “Entreguemo-nos à suma justiça do Onipotente…” — proferia o Joaquincas.

– “Uma tana! Sento o braço!” — o Darcy rugia, ou o Ataualpa. Mas: — “… O réprobo, o ímprobo, que me malsina os dias…” — já, vai vago, desembestando. O Surubim dizia que o nosso teatro roubava ao ensino, e que não era verdade que, nas provas, iríamos ganhar boas notas de qualquer maneira. Possível? Mão-na-Lata estava combinando outro time, porque a gente mal treinava; misérias! Para ver se Zé Boné enfiava juízo, valia não o deixar dar mais seu cinema? E, pronto, certas cenas do drama, legítimas, estavam sendo divulgadas. Haveria entre nós um traidor? Não. Descobriu-se: o Alfeu. O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas, feito uma cobra; e que vinha escutar os ensaios, detrás das portas! Só que, no Alfeu, mesmo pós festa, não se podia meter o braço: ele furtava, para a gente, pão, doces, chocolate, coisas da cozinha dos padres. Tínhamos de alugar- lhe o silêncio! Tudo, felizmente, por três dias. Já o Dr. Perdigão, desistido de introduzir no Zé Boné sua parte, intimara-o a representar de mudo, apenas, proibido de abrir a boca em palco. Doía-me um dente, podia inchar a cara; ou não, não doía? Tudo por dois dias, só. Tãozão e Mão-na-Lata, o que ameaçavam? Tudo por dia e meio, pela véspera. Pelo que, fremia-se e ardia-se. Sendo, nessa véspera, o nosso ensaio geral.

— “Sus e eia! Abroquelemo-nos…” O Dr. Perdigão se passeava levemente.

Saía-nos o ensaio geral em brilho e pompa, todos na ponta da língua seus papéis – para meu desgosto. Não iam precisar de ponto? Nisso, porém, sobreveio-nos o trom de Júpiter. O padre Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta… Despejou conosco, tontos de consternados. E já na noite tão tarde. Do nosso Dr. Perdigão, empalidecendo até a barba: — “Senhores meus alunos… Ad augusta per angusta…” — ele se gemeu. — “Durmamos…”

E quem disse que, no outro dia, seguinte, domingo — o dia! — íamos tornar a ensaiar, ensaiar, ensaiar, senhor, mas — com os rebuliços, as horas curtas, poucas: a missa demorada, a gente ganhando pão de mel e biscoitos no café, tendo-se de ajudar a arrumar o teatro, a caixa do ponto verde, repintada fresca, as muitas moças e senhoras aparecidas, chegadas as roupas nossas teatrais, novinhas nos embrulhos, enquanto se dizia que Tãozão e o Mão-na-Lata estavam reunindo uns, que iam amassar a gente, armar baderna de briga, e chegando visitas, pais, parentes, de fora, para assistir, corriam o Colégio, se dizendo agora que o pessoal de Tãozão e Mão-na-Lata, os Gamboas, iam dar na gente a tremenda vaia! — e o Dr. Perdigão de repente doente, de fígado, cólicas, a gente com medo que a festa pudesse não haver, e traziam também os programas prontos do nosso teatro, até o Alfeu vestido de roupa nova, marinheiro, a mãe dele fazia-o hoje andar com as muletas, e o Dr. Perdigão já sarado, levantado, suas sumas pretas barbas, de tarde, o jantar cedo, garrafa de soda limonada, e galinha, pastéis, sobremesa de dois doces, nem pude, pois, que era que vinha vindo, direto para dizer, o Surubim, satisfeito, bem eu tinha temido caiporismos de última hora, passado o dia inteiro assim, de orelha com a pulga atrás?

Silêncio. O Surubim vinha para o Ataualpa. Estava na portaria o tio do Ataualpa — o pai do Ataualpa era deputado, estava à morte, no Rio de Janeiro. Ataualpa tinha de viajar, de trem, daqui a duas horas. E o teatro, o espetáculo? Ataualpa já ia, com o Surubim, mudar de roupa, arrumar a mala. Mas, o teatro era para impossível de não haver, era em benefício. E… Só quem podia ser, em vez do Ataualpa, quem sabia decorados todos os papéis, o Doutor Famoso: eu! Ah, e o “ponto”? Dúvida, não dúvida: o ponto seria, ótimo, o Dr. Perdigão, sendo. Se disse, se fez.

O contentamento — o medo. O fraque? O povo. O — ali, quem meio escondido, me cutucando — o Alfeu! — “Quer um gole?…” — do que ele tinha furtado: uma garrafa de genebra, da adega dos padres — falava que era para dar mais alma de coragem. Eu não quis. E os outros? Zé Boné? O Alfeu não sorria: sibilava. Eu não queria saber dos outros, já estavam me vestindo, o fraque só ficava um pouquinho largo, de nada. Os outros também não deviam de gostar das senhoras e moças passando carmins na cara da gente, o que não era de homem! — e repintando-nos os olhos. E a hora enorme. O teatro, imensamente, a plateia: — “Ninguém mais cabe!” — o povaréu de cabeças, estrondos de gente entrando e se sentando, rumor, rumor, oh as luzes. O Dr. Perdigão, de fraque também: — “Excelsior!” — meio desanimado. Não era o monte de momento, sim, não. Era a hora na hora. Parecia que os empurravam – para o de todo sem propósito. Me punham para a frente. Só ouvi as luzes, risos, avistei demais. O silêncio.

Eu estava ali, parado, em pé, de fraque, a beira-mundo do público, defronte. E, que queriam de mim, que esperavam? Atrás, os companheiros tocando-me; isto era hora para piparotes? E oh! — súbito a súbitas, eu reconhecia na plateia, tão enchida, todos, em cada um seu lugar: Tãozão, o Mão-na-Lata, o Gamboa, o Surubim, o Alfeu, o padre Diretor… oh! — e tinha-me lembrado da terrível coisa, Meu Deus, então ninguém não tinha pensado nisso, antes? Porque, aquele arranjo de todos nós no palco, vindos ao proscênio, eu adiante, era conforme o escrito no programa: o Ataualpa, primeiro, devia recitar uns versos, que falavam na Virgem Padroeira e na Pátria. Mas, esses versos, eu não sabia! Só o Ataualpa sabia-os, e Ataualpa estava longe, agora, viajando com o tio, de trem, o pai dele à morte… Eu, não. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio e quente, não tendo dá-me-dá, gago de êêê, no sem-jeito, só espanto.

O minuto parou. Riam, diante de mim, aos milhares. De lá, da fila dos padres, faziam-me gestos: de ordens e de perguntatividades, sinais danados, explicavam-me o que eu já sabia que não sabia, não podia. Sacudi que não, puxei para fora os bolsos, para demonstrar que não tinha os versos. Instavam-me. — “Abaixem o pano!” — escutei a voz do padre Prefeito. O Dr. Perdigão, em seu buraco bobo, rapava goela. Tornei a não olhar; falei alto. Gritei, tremulei, tão então: — “Viva a Virgem e viva a Pátria!” — gritei.

Ressoaram enormes aplausos. — “Abaixem o pano!” — era ainda o padre Prefeito, no bastidor. Porque, agora, era mesmo a hora, para ficarmos no palco só o Doutor Famoso e seus quatro Filhos, daí o pano tornava a subir, para abrir a primeira cena do drama. — “… o pano!” Mas o pano não desceu, estava decerto enguiçado, não desceu nunca. Confusão. Os que tinham de sair de cena, não saíam. Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra, em fila, feito soldados, apalermados. E, aí, veio a vaia. Estrondou…

A vaia, que ninguém imaginava. O que era um mar — patuleia, todos em mios, zurros, urros, assovios: pateada. A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos, mudando de cor, de amargor. — “Atenção! Submetam-se!” — mas nem os padres àquilo não podiam por cobrança? Por pouco, o Dr. Perdigão ia se surgir de lá, da caixa, mas não venceu, e se botou abaixo. A gente, firmes, sem mover o passo, enquanto a vaia se surriava. A vaia parou. A vaia recomeçou. Aguentávamos. — “Zé Boné! Zé Boné!” — aqueles gritavam também, depois de durante, dessa vaia, ou em intervalos. — “Zé Boné!…” Foi a conta.

Zé Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar!

A vaia parou, total.

Zé Boné representava — de rijo e bem, certo, a fio, atilado para toda a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele recitava com muita existência. De repente, se viu: em parte, o que ele representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas palmas.

A pasmação. Num instante, quente, tomei vergonha; acho que os outros também. Isso não podia, assim! Contracenamos. Começavamos, todos, de uma vez, a representar a nossa inventada estória. Zé Boné também. A coisa que aconteceu no meio da hora. Foi no ímpeto da glória — foi — sem combinação. Ressoaram outras muitas palmas.

A princípio, um disparate — as desatinadas pataratas, nem que jogo de adivinhas. Dr. Perdigão soprava alto, em bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só pouca parte se aproveitava. O mais eram ligeirias — e solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito — tudo tão bem — sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu via — que a gente eramos outros — cada um de nós, transformado. O Dr. Perdigão devia de estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa do ponto.

Gritavam bis o Surubim e o Alfeu. Até o padre Diretor se riu, como ri Papai Noel. Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens personificantes. Assim perpassando, com a de nunca naturalidade, entrante própria, a valente vida, entrepuxada. Zé Boné, sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Boné! — freme a representação. O sucesso, que vindo não se sabe donde e como; alguém me disse, que estava lá; jurou como foi. Mas — de repente — eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O que aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia — para fora do corrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito — o maravilhoso — a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti que — só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair — do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.

E, me parece, o mundo se acabou.

Ao menos, o daquela noite. Depois, no outro dia, eu são, e glorioso, no recreio, então o Gamboa veio, falou assim: — “Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estória também era a de verdade?” Pulou-se, ferramos fera briga.
====================================

* Pirlimpsiquice. À parte o estranhamento, percebe-se que é perfeita a construção desta palavra-valise que condensa, em si, a magia (pirlimpimpim), a doação do sopro (psique) de vida (ou de poesia) e a maluquice (ou doidice, como se queira) de realização do inesperado, do imprevisível.
 
Fonte:
Guimarães Rosa. Primeiras histórias. Publicado em 1962.