terça-feira, 26 de outubro de 2021

Guimarães Rosa (Pirlimpsiquice*)


Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e menos da desordem do que do rumor. Depois, os padres falaram em por fim a festas dessas, no Colégio. Quem nada podia mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de coreografia e história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive, estará lá já após de velho. E o endiabrado pretinho Alfeu, corcunda? Astramiro, agora aeroviário, e o Joaquincas — bookmaker e adjazidas atividades – com ambos raro em raro me encontro, os fatos recordam-se. A peça ia ser o drama “Os Filhos do Doutor Famoso”, só em cinco atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o representar? Às vezes penso. Às vezes, não. Desde a hora em que, logo num recreio de depois do almoço, o regente Seu Siqueira, o Surubim, sisudo de mistérios, veio chamar-nos para a grande novidade, o pacto de puro entusiasmo nosso avançara, sem sustar-se. Éramos onze, digo, doze.

Atordoados, pois. O padre Prefeito, modo solene, fez-nos a comunicação. Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente, à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse, leu-se desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era. Quando o Dr. Perdigão nos despachou, lembramo-nos de que na turma estavam de mal os dois mais decididos e respeitados — Ataualpa, que ia ser o Doutor Famoso, e o Darcy, o Filho Capitão. Mas os mesmos conviram logo em precisar pazes, sem o caso de a gente bem-oficiar se oferecendo de permeio. Tocaram de bem, dando ainda o Ataualpa ao Darcy um selo do Transvaal, e o Darcy a Ataualpa um da Tasmânia ou da China. Em seguida, eles, de chefes, nos sobreolharam, e pegaram com ordens: — “Ninguém conta nada aos outros, do drama!” Concordados, combinou-se, juramos. Careciam-se uns momentos, para a grandiosa alegria se ajustar nos cantos das nossas cabeças. A não ser o Zé Boné, decerto.

Zé Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal — figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife. Dele, bem, se ria. O basbaque. Mesmo assim, acharam que para o teatro ele me passava; decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por retraído e mal à vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não fosse o padre Diretor, de bom acaso vindo entrando, declarar que, aluno aplicado, e com voz variada, certa, de recitador, eu podia no vantajoso ser o “ponto”. Sorri de os outros comigo, amigos, mexerem. Joaquincas, o que era para personificar o Filho Padre, me deu duas marcas novas de cigarros, e eu a ele uma prata de quinhentos réis e o meio pão que estava guardando na algibeira. Aí, o Darcy e Ataualpa, arranjada coragem, alegaram não caber Zé Boné com as prestes obrigações. Mas o padre Prefeito repreendeu-nos a soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné tocava, de um policial, se versava dos mais simples, com escasso falar. Adiantou nada o Araujinho, servindo de o outro policial, fazer a cara amargosa: acabou-se a opinião da questão. Não que Zé Boné à gente não enchesse — de inquietas cautelas. O segredo ia ele poder guardar?

Aí, mais, teve-se dúvida. Se os outros alunos se embolassem, para à força quererem fazer a gente contar a estória do drama? Dois deles preocupavam-nos, fortes, dos maiores dos internos, não pegados para o teatrinho por mal comportados incorrigíveis! Tãozão e o Mão-na-Lata, centro avante do nosso time. E um, cá, teve a ideia. Precisávamos de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais inventada, que íamos falsamente contar, envolvendo os demais no engano. E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.

Sem razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem na estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia (chacota) ou peripécia, logo e mal encartadas em suas fitas de cinema; pois, enquanto recreios houvesse, continuava ele descrevivendo-as, com aquela valentia e o ágil não-se-cansar, espantosos. E o Tãozão e Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam, fingindo decerto não dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares em extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a máscara: “fuça de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. Ouviam, gostavam, exigiam mais. Até o pretinho Alfeu, filho da cozinheira, e aleijado, voltava se arrastando com rapidez para a escutar, enquanto o Surubim não o via e mandava embora. Já, entre nós, era a “nossa estória”, que, às vezes, chegavamos a preferir à outra, a “estória de verdade”, do drama. O qual, porém, por meu orgulho de “ponto”, pusera eu afinco em logo reter, tintim de cor por tintim e salteado. Descontentava-me, só, na noite do dia, dever ficar encoberto do público, debaixo daquela caixa ou cumbuca, que por ora ainda não se tinha, nos ensaios.

— “Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade” — exortava-nos o Dr. Perdigão, sobre suas sérias barbas. Ataualpa — o “Peitudo” — e Darcy — o “Pintado” — determinavam se acabasse, em hora, com essa tolice de apelidos. Umas donas estariam costurando as roupas que íamos revestir, os fraques do Doutor Famoso e do Amigo, a batina do Filho Padre, a farda do Filho Capitão, só trajes. Alvitrou-se senha de nos tratarmos só pelos nomes em drama: Mesquita, o “Filho Poeta”, Rutz, o “Amigo”, Gil, o “Homem que sabia o segredo”, Nuno, o “Delegado”. O Dr. Perdigão dirimia os embaraços: em vez de o “Criado”, o Niboca chamar-se-ia melhor o “Fâmulo”, Astramiro o “Redimido”, e não o “Filho Criminoso”; eu, o “Mestre do Ponto”. — “Lembrem-se: circunspecção e majestade…” proferia o Dr. avante — … e: “Longa é a arte e breve a vida… — um preconício dos gregos!” Inquietávamo-nos, não fossem destituir-nos daquele sonho. Íamos proceder muito bem, até o dia da festa, não fumar escondido, não conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas aulas. Os que não éramos “Filhos de Maria”, impetrávamos fazer parte. Joaquincas comungava a diário, via-se mesmo só ideal, já padre e santo. Todas as tardes, a partir do recreio de depois do jantar, subia-se para o ensaio, demorado, livrando-nos dos estudos da noite sob o duplo olhar do Surubim; essa vantagem, também, os outros nos invejavam. — “Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad astra per aspera! Sempre dúcteis ao meu ensinamento…” — o Dr. Perdigão observando. Suspirávamos pelo perfeito, o estrito jogo de cena a atormentar-nos. Menos ao Zé Boné, decerto. Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia palavra. E já o dia vindo próximo, nem mais duas semanas. Por que não o trocar, ao estafermo? Não o Dr. Perdigão: — “Senhores discípulos meus, para persistir no prepará-los, a perseverança não me desfalece!” Zé Boné, do tom, tirava algum entender, empinava-se inconfuso e contente. Ah, seu “ensino”, à rija, à vera, seria para ele nos pagar. Não por enquanto. Só se ansiava. Sempre juntos, no notável, relegados os planos para as férias, e mesmo só por alto lembrado o afã do futebol.

Se não os tempos e contratempos. Troçavam de nós, os outros? Citando, com ares, o que não entendíamos, nem. Diziam já saber a verdadeira estória do drama, e que não passávamos de impostores. De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado, de muita inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da verdade. O cume de cachorro! Nele, passada a festa, jurou-se também uma sova. Por ora, porém, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que nos deixava humilhados. Repetíamos, então, sem cessar, a nossa estória, com forte cunho de sinceridade. Sempre ficavam os partidários de uma e de outra, não raro bandeando campo, vez por vez, por dia. Tãozão e Mão-na-Lata chefiavam o grupo dos Gamboas?

— “Entreguemo-nos à suma justiça do Onipotente…” — proferia o Joaquincas.

– “Uma tana! Sento o braço!” — o Darcy rugia, ou o Ataualpa. Mas: — “… O réprobo, o ímprobo, que me malsina os dias…” — já, vai vago, desembestando. O Surubim dizia que o nosso teatro roubava ao ensino, e que não era verdade que, nas provas, iríamos ganhar boas notas de qualquer maneira. Possível? Mão-na-Lata estava combinando outro time, porque a gente mal treinava; misérias! Para ver se Zé Boné enfiava juízo, valia não o deixar dar mais seu cinema? E, pronto, certas cenas do drama, legítimas, estavam sendo divulgadas. Haveria entre nós um traidor? Não. Descobriu-se: o Alfeu. O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas, feito uma cobra; e que vinha escutar os ensaios, detrás das portas! Só que, no Alfeu, mesmo pós festa, não se podia meter o braço: ele furtava, para a gente, pão, doces, chocolate, coisas da cozinha dos padres. Tínhamos de alugar- lhe o silêncio! Tudo, felizmente, por três dias. Já o Dr. Perdigão, desistido de introduzir no Zé Boné sua parte, intimara-o a representar de mudo, apenas, proibido de abrir a boca em palco. Doía-me um dente, podia inchar a cara; ou não, não doía? Tudo por dois dias, só. Tãozão e Mão-na-Lata, o que ameaçavam? Tudo por dia e meio, pela véspera. Pelo que, fremia-se e ardia-se. Sendo, nessa véspera, o nosso ensaio geral.

— “Sus e eia! Abroquelemo-nos…” O Dr. Perdigão se passeava levemente.

Saía-nos o ensaio geral em brilho e pompa, todos na ponta da língua seus papéis – para meu desgosto. Não iam precisar de ponto? Nisso, porém, sobreveio-nos o trom de Júpiter. O padre Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta… Despejou conosco, tontos de consternados. E já na noite tão tarde. Do nosso Dr. Perdigão, empalidecendo até a barba: — “Senhores meus alunos… Ad augusta per angusta…” — ele se gemeu. — “Durmamos…”

E quem disse que, no outro dia, seguinte, domingo — o dia! — íamos tornar a ensaiar, ensaiar, ensaiar, senhor, mas — com os rebuliços, as horas curtas, poucas: a missa demorada, a gente ganhando pão de mel e biscoitos no café, tendo-se de ajudar a arrumar o teatro, a caixa do ponto verde, repintada fresca, as muitas moças e senhoras aparecidas, chegadas as roupas nossas teatrais, novinhas nos embrulhos, enquanto se dizia que Tãozão e o Mão-na-Lata estavam reunindo uns, que iam amassar a gente, armar baderna de briga, e chegando visitas, pais, parentes, de fora, para assistir, corriam o Colégio, se dizendo agora que o pessoal de Tãozão e Mão-na-Lata, os Gamboas, iam dar na gente a tremenda vaia! — e o Dr. Perdigão de repente doente, de fígado, cólicas, a gente com medo que a festa pudesse não haver, e traziam também os programas prontos do nosso teatro, até o Alfeu vestido de roupa nova, marinheiro, a mãe dele fazia-o hoje andar com as muletas, e o Dr. Perdigão já sarado, levantado, suas sumas pretas barbas, de tarde, o jantar cedo, garrafa de soda limonada, e galinha, pastéis, sobremesa de dois doces, nem pude, pois, que era que vinha vindo, direto para dizer, o Surubim, satisfeito, bem eu tinha temido caiporismos de última hora, passado o dia inteiro assim, de orelha com a pulga atrás?

Silêncio. O Surubim vinha para o Ataualpa. Estava na portaria o tio do Ataualpa — o pai do Ataualpa era deputado, estava à morte, no Rio de Janeiro. Ataualpa tinha de viajar, de trem, daqui a duas horas. E o teatro, o espetáculo? Ataualpa já ia, com o Surubim, mudar de roupa, arrumar a mala. Mas, o teatro era para impossível de não haver, era em benefício. E… Só quem podia ser, em vez do Ataualpa, quem sabia decorados todos os papéis, o Doutor Famoso: eu! Ah, e o “ponto”? Dúvida, não dúvida: o ponto seria, ótimo, o Dr. Perdigão, sendo. Se disse, se fez.

O contentamento — o medo. O fraque? O povo. O — ali, quem meio escondido, me cutucando — o Alfeu! — “Quer um gole?…” — do que ele tinha furtado: uma garrafa de genebra, da adega dos padres — falava que era para dar mais alma de coragem. Eu não quis. E os outros? Zé Boné? O Alfeu não sorria: sibilava. Eu não queria saber dos outros, já estavam me vestindo, o fraque só ficava um pouquinho largo, de nada. Os outros também não deviam de gostar das senhoras e moças passando carmins na cara da gente, o que não era de homem! — e repintando-nos os olhos. E a hora enorme. O teatro, imensamente, a plateia: — “Ninguém mais cabe!” — o povaréu de cabeças, estrondos de gente entrando e se sentando, rumor, rumor, oh as luzes. O Dr. Perdigão, de fraque também: — “Excelsior!” — meio desanimado. Não era o monte de momento, sim, não. Era a hora na hora. Parecia que os empurravam – para o de todo sem propósito. Me punham para a frente. Só ouvi as luzes, risos, avistei demais. O silêncio.

Eu estava ali, parado, em pé, de fraque, a beira-mundo do público, defronte. E, que queriam de mim, que esperavam? Atrás, os companheiros tocando-me; isto era hora para piparotes? E oh! — súbito a súbitas, eu reconhecia na plateia, tão enchida, todos, em cada um seu lugar: Tãozão, o Mão-na-Lata, o Gamboa, o Surubim, o Alfeu, o padre Diretor… oh! — e tinha-me lembrado da terrível coisa, Meu Deus, então ninguém não tinha pensado nisso, antes? Porque, aquele arranjo de todos nós no palco, vindos ao proscênio, eu adiante, era conforme o escrito no programa: o Ataualpa, primeiro, devia recitar uns versos, que falavam na Virgem Padroeira e na Pátria. Mas, esses versos, eu não sabia! Só o Ataualpa sabia-os, e Ataualpa estava longe, agora, viajando com o tio, de trem, o pai dele à morte… Eu, não. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio e quente, não tendo dá-me-dá, gago de êêê, no sem-jeito, só espanto.

O minuto parou. Riam, diante de mim, aos milhares. De lá, da fila dos padres, faziam-me gestos: de ordens e de perguntatividades, sinais danados, explicavam-me o que eu já sabia que não sabia, não podia. Sacudi que não, puxei para fora os bolsos, para demonstrar que não tinha os versos. Instavam-me. — “Abaixem o pano!” — escutei a voz do padre Prefeito. O Dr. Perdigão, em seu buraco bobo, rapava goela. Tornei a não olhar; falei alto. Gritei, tremulei, tão então: — “Viva a Virgem e viva a Pátria!” — gritei.

Ressoaram enormes aplausos. — “Abaixem o pano!” — era ainda o padre Prefeito, no bastidor. Porque, agora, era mesmo a hora, para ficarmos no palco só o Doutor Famoso e seus quatro Filhos, daí o pano tornava a subir, para abrir a primeira cena do drama. — “… o pano!” Mas o pano não desceu, estava decerto enguiçado, não desceu nunca. Confusão. Os que tinham de sair de cena, não saíam. Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra, em fila, feito soldados, apalermados. E, aí, veio a vaia. Estrondou…

A vaia, que ninguém imaginava. O que era um mar — patuleia, todos em mios, zurros, urros, assovios: pateada. A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos, mudando de cor, de amargor. — “Atenção! Submetam-se!” — mas nem os padres àquilo não podiam por cobrança? Por pouco, o Dr. Perdigão ia se surgir de lá, da caixa, mas não venceu, e se botou abaixo. A gente, firmes, sem mover o passo, enquanto a vaia se surriava. A vaia parou. A vaia recomeçou. Aguentávamos. — “Zé Boné! Zé Boné!” — aqueles gritavam também, depois de durante, dessa vaia, ou em intervalos. — “Zé Boné!…” Foi a conta.

Zé Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar!

A vaia parou, total.

Zé Boné representava — de rijo e bem, certo, a fio, atilado para toda a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele recitava com muita existência. De repente, se viu: em parte, o que ele representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas palmas.

A pasmação. Num instante, quente, tomei vergonha; acho que os outros também. Isso não podia, assim! Contracenamos. Começavamos, todos, de uma vez, a representar a nossa inventada estória. Zé Boné também. A coisa que aconteceu no meio da hora. Foi no ímpeto da glória — foi — sem combinação. Ressoaram outras muitas palmas.

A princípio, um disparate — as desatinadas pataratas, nem que jogo de adivinhas. Dr. Perdigão soprava alto, em bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só pouca parte se aproveitava. O mais eram ligeirias — e solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito — tudo tão bem — sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu via — que a gente eramos outros — cada um de nós, transformado. O Dr. Perdigão devia de estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa do ponto.

Gritavam bis o Surubim e o Alfeu. Até o padre Diretor se riu, como ri Papai Noel. Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens personificantes. Assim perpassando, com a de nunca naturalidade, entrante própria, a valente vida, entrepuxada. Zé Boné, sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Boné! — freme a representação. O sucesso, que vindo não se sabe donde e como; alguém me disse, que estava lá; jurou como foi. Mas — de repente — eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O que aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia — para fora do corrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito — o maravilhoso — a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti que — só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair — do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.

E, me parece, o mundo se acabou.

Ao menos, o daquela noite. Depois, no outro dia, eu são, e glorioso, no recreio, então o Gamboa veio, falou assim: — “Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estória também era a de verdade?” Pulou-se, ferramos fera briga.
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* Pirlimpsiquice. À parte o estranhamento, percebe-se que é perfeita a construção desta palavra-valise que condensa, em si, a magia (pirlimpimpim), a doação do sopro (psique) de vida (ou de poesia) e a maluquice (ou doidice, como se queira) de realização do inesperado, do imprevisível.
 
Fonte:
Guimarães Rosa. Primeiras histórias. Publicado em 1962.

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