Atacado de senso de responsabilidade num momento de descrença de si mesmo, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não aguentou a crise da puberdade morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme, com a sua fé.
A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados chapinha ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul.
Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.
Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia*, mas que havia de fazer?
Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.
E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu inda possa ter. Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.
Mas, cadê o menino? Voado? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas.
O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.
Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada veio dizer-nos que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste.
É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra, a doer em nossos olhos.
Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo never more. Este refrão (never more) me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho.
A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados chapinha ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul.
Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.
Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia*, mas que havia de fazer?
Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.
E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu inda possa ter. Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.
Mas, cadê o menino? Voado? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas.
O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.
Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada veio dizer-nos que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste.
É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra, a doer em nossos olhos.
Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo never more. Este refrão (never more) me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho.
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* Serôdia = tardia
Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. Autor, 1960.
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. Autor, 1960.
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