quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Newton Sampaio (Trem de subúrbio)

Calixto interrompe a discussão, enterra o chapéu na cabeça, cai no mundo. Esbarra nos homens que passam.

O bonde apinhado também esbarra nele. Por um triz teria os pés esmagados.

Procura um cigarro. No bolso não há cigarros.

Procura o relógio. O relógio mostra o ponteiro pequeno bem em cima do número 3. Chega à estaçãozinha. Só o tempo de entrar e o trem sair.

O maquinário rodando lhe dá o gosto longínquo de desaparecimento, de evasão.

Evasão... Longo tempo lhe dança no cérebro, o termo. Evasão...

Fugir da vida...

Mas a vida florescia em tudo, feito milagre permanente. Florescia na paisagem se mexendo sem parar. E no cheiro da máquina vomitando fumaça. E na promiscuidade do vagão, — do vagão cheio de gente se abanando, de cores se exibindo, de perfumes baratos se misturando como os donos.

Ao lado, volumosa ruiva tem os quadris maltratados pela cinta apertadíssima. Perto da ruiva, um velhote percorre as letras de um vago pasquim suburbano. O velhote lê. Mas não fala. Quem fala toda a vida é aquele rapaz de bigode lustroso. Transmite, ao companheiro, imaginárias peripécias do último jogo de futebol.

O companheiro guarda um interesse imenso na história. Não é como a moça de boina azul que não dispensa atenção a nada.

Ela é bonita, está no segundo banco, e olha, e olha.

No mundo existem milhares de moças — de boininha azul ou sem boina — que fazem a mesma coisa. Que têm esse jeito triste, distante. Que espiam silenciosamente. Com vontade de segurar nas mãos aquilo que corre do lado de lá das janelas. Mas as janelas têm vidraças que separam o corpo das moças dos apelos que correm e se sucedem.

É cheia de vidraças, a vida das moças. Por isso há moças de boina espiando, tristinhas. Espiando com olhos parecidos com os de Calixto.

Os olhos de Calixto estão vermelhos e molhados. Por causa de uma faísca impertinente. A faísca obriga-o a esfregar as pálpebras, muitas vezes. Esfrega, esfrega. A ruiva pensa que o rapaz havia chorado. Será que as matronas gordas pensam coisas exatas? Gravíssimo é o problema, cidadãos!

Apesar do problema, o garoto louro do primeiro banco continua chupando o seu caramelo. E se sujando também. Até o fim. Depois, a mãe limpa o rostinho dele. Como agradecimento, o garoto começa a fazer travessuras. Salta no corredor. O trem dá uma sacudidela violenta, e o teria fatalmente derrubado se a moça de boina não o tivesse amparado em tempo.

Cresce um rebuliço. A mãe fica muito pálida, o rapaz de bigode lustroso acha graça, o velhote interrompe a leitura. E a senhorita guarda o menino. Passa-lhe a mão na cabecinha.

— Como se chama?

— Roaldo.

— Quantos anos tem?

A mãe intervém.

— Já fez três. Foi no último agosto.

— Crescidinho, não?

— E ladino! — completa o orgulho materno.

O cabelo do menino tem a cor do sol. Desse sol que atravessa a vidraça e a deixa intacta. Mas a senhorita do segundo banco não tem mais esses pensamentos. Porque uma criança loura quase sempre resolve o silêncio das moças de boina...

Calixto, infelizmente, não se lembra disso. Continua a meditar em torno da discussão com a noiva. Enquanto o trenzinho corre, corre. Vomitando fumaça como um demônio.
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Newton Sampaio foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro, considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno.

O adolescente Newton Sampaio transferiu residência em 1925, saindo da pequena Tomazina para estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias (em sua primeira edição) concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade.

Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio.

Publicações:
Romance: Trapo: trechos publicados em jornais e revistas; Dor: publicado, incompleto, no periódico Correio dos Ferroviários.
Novela: Remorso: 1935; Cria de alugado: 1935.
Contos: Irmandade: 1938, premiado pela Academia Brasileira de Letras; Contos do Sertão Paranaense: 1939; Críticas, reportagens e entrevistas; Algumas Vozes do Brasil; Reportagem de Ideias: contos incompletos.


Fontes:
- Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
- Biografia do autor: Wikipedia

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