Pois que fez Santo António? Mudou somente o púlpito e o auditório [. .]. Deixa as praças, vai às praias; deixa a terra, vai ao mar e começa a dizer a altas vozes: já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh, maravilhas do Altíssimo! Oh, poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam, a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos na sua ordem com as cabeças de fora da água. António pregava e eles ouviam.
(EXTRATO DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO, PADRE ANTÓNIO VIEIRA)
Um dia destes, quando saía de casa, deparei com meu vizinho, Jossinaldo. Estava no patamar, como que me esperando. Dos braços cruzados, espreitava uma trela. Me arrepiei.
Sempre eu o tinha evitado, por causa dos ditos e desditos. O homem era conhecido pelo que fazia no parque: levava um peixe a passear pela trela. Caminhava na margem do lago, segurando a trela. No extremo da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe. Jossinaldo era, nos gerais, tido por enjeitado: a cabeça do coitado, diziam, cabia toda num chapéu. E acrescente-se que o temiam, sem outro fundamento que essa estranheza do seu fazer.
E agora lá estava ele, a tira pendente como uma língua que lhe emergia do corpo. Já eu remastigava uns apressados bons dias quando o vizinho se me interpôs e esticou o braço na minha direção.
– Peço-lhe este favor! – Estremeci, receoso. Que favor? E era esse mesmo obséquio: o de ir eu substituí-lo no passeio ao peixe. Esquivei-me. O homem não desistiu: que ele estava-se sentindo doente, desvanecente e o peixe do lago não podia ficar órfão, sem ninguém para o conduzir, na fluência das águas.
– Por amor, não recuse!
Fiquei vacilando enquanto, dentro de mim, ecoavam os rumores que descontavam em Jossinaldo e seus descostumes. No bairro todos acreditavam compreender o comportamento do exótico morador.
Meu tio, por exemplo, deitava o seguinte entendimento: que o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia, penitente. Meu avô discordava. Aquilo, para ele, tinha outras, mais fundas explicações. Não ouvíramos falar do sermão de Santo António aos peixes? Recordávamos o que fizera o Santo António que deixara o auditório das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de guelra e escama. Pois, Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as indecorosas ganâncias que eram da exclusiva competência humana.
Adjetivavam a peixada: os mandantes do crime são chamados de “tubarões”. Os poderosos da indecência são “peixe graúdo”. Os pobres executantes são o “peixe miúdo”.
E afinal, onde não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada transparência. Pois, quem pregava o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe do lago. Era ele o sermãonista.
Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer. Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa, caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado com lado. Na rua me olhavam, surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no pleno da via pública?
Debaixo dos olhares, nos dirigimos ao parque e parámos junto ao lago.
– Veja como ele vem a correr.
E era a maior verdade. O peixão, na vista do vizinho, se aproximou da berma.
Jossinaldo debruçou-se e enlaçou a trela à volta da cauda do animal.
– Vá, pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridades.
Com o coração de fora, lá segurei na corda. O bicho veio à superfície da água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente. E remergulhando me conduziu pela margem. Contornei por inteiro a lagoa para me reencontrar com Jossinaldo.
– Deixe-me despedir dele! Ajoelhado sobre as águas, o vizinho falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida. Ficou, tenho medo de dizer, conversando com o peixe. Ergueu-se Jossinaldo, lágrima escorrendo, e me apertou as mãos, as duas em duplicado. Não falou, retirou-se em silêncio.
Sou eu agora quem, pela luz das tardes, passeia o peixe do lago. À mesma hora, uma misteriosa força me impele para cumprir aquela missão, para além da razão, por cima de toda a vergonha. E me chegam as palavras do vizinho Jossinaldo, ciciadas no leito em que desfalecia: – Não existe terra, existem mares que estão vazios.
Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.
Fonte:
Mia Couto. O fio das missangas. Publicado em 2004.
Mia Couto. O fio das missangas. Publicado em 2004.
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