segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Raul Pompéia (Antes e depois)

I
 
O salão entornava luz pelas janelas. No sofá, bocejava a boa gorducha d. Maria, digerindo sonolentamente o quilo do jantar. O seu digno consorte, o desembargador, apreciava o fresco da noite à janela, sugando com ruído a fumaça de um havana, com os olhos nos astros e as mãos nas algibeiras. Perto do piano, arrulavam à meia-voz Belmiro e Clara... Já se sabe: dois pombinhos...

O Belmiro estudava; tinha futuro, portanto; Clara... tocava e cantava...

II

— Belmiro, disse o desembargador, atirando à rua a ponta do charuto, manda Clara cantar...

— Cante, d. Clara, pediu Belmiro.

Clara cantou... Cantou mesmo? Não sei. Mas as notas entraram melífluas pelos ouvidos de Belmiro e foram cair-lhe como açúcar no paladar do coração...

— Esplêndido! esplêndido! dizia ele, fazendo chegar a umidade do hálito à face rosada da meiga Clarinha...

O desembargador olhava outra vez para os astros...

III

Rola o tempo...

Numa casinha modesta de S. Cristóvão, mora o dr. Belmiro com sua senhora d. Clara... Os vizinhos dizem coisas... ih!

IV

— Como vais, Belmiro?

— Mal!

— Mal?... disseram-me que te casaste com a tua Clarinha...

— Sim! sim!... mas, queres saber... de amor ninguém vive; é de feijões...

— Então...

— Devo até a roupa com que me cubro!...

— E o dote?

— Ah! ah! adeusinho...

V

É noite.

D. Clara está ao piano. Um vestido enxovalhado escorre-lhe da cintura abaixo, sem um enfeite. D. Clara está magra. No chão arrasta-se um pequenote de um ano, com uma camisolinha porca amarrada em nós sobre o cóccix.

Clara toca; e não canta, porque tem os olhos vermelhos e inflamados...

O dr. Belmiro vem da rua zangado.

— Não sei o que faz a senhora, gastando velas a atormentar-me!... Mande para o diabo as suas músicas e vá-se com elas!

Fonte:
A Comédia. São Paulo, n. 66, 21 maio 1931. Série "Uma história por dia". 
Disponível em Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

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