terça-feira, 5 de outubro de 2021

JB Xavier (A Praia)

Por alguma razão com a qual eu não conseguia atinar, as coisas começaram a dar errado em minha vida. Meu casamento vacilava, diante de diálogos ríspidos e incompreensões várias entre eu e minha esposa.

Meus filhos, submetidos a um ambiente tenso, estavam arredios e inseguros, temendo por uma possível separação, que nunca era citada em nossas discussões, mas que parecia mais palpável a cada dia.

Esta tensão em meu lar – se é que eu poderia ainda chamá-lo assim – foi afastando os já poucos amigos que eu possuía, até que um dia me encontrei só!

Notei isso num dia especialmente negro em minha vida, apesar de ser um dos mais bonitos dos que a natureza já havia me brindado. As 8:30 da manhã, meu diretor me chamou em sua sala e, com aquela conversa mole que eu já conhecia, por tanto tê-a utilizado, demitiu-me sumariamente. Diante de minha perplexidade, ele tentou fazer-me escutar as razões de minha demissão, dizendo-me que eu me transformara num elemento desagregador dentro da companhia, e que eram muitas as críticas de colegas que trabalhavam comigo.

De certa altura da conversa em diante, eu só via seus lábios se mexendo, mas já não o ouvia mais, porque o impacto de saber-me sem emprego causou uma revolta em meu estômago me fazendo sentir uma vontade terrível de vomitar.

Olhei através da janela, por trás de meu chefe, e vi uma palmeira balançando ao vento, e ao lado dela, o carro zero que eu havia acabado de comprar, e com cujas prestações do financiamento eu havia comprometido boa parte do meu salário. “E agora? Pensei eu. O que faço da vida?” Beirando os cinquenta anos não é exatamente uma idade fácil para se conseguir um emprego.

Pedi licença e saí rapidamente, indo até o banheiro, onde devolvi todo o café da manhã. Uma tremedeira incontrolável e uma tontura apossou-se de mim, e tive que encostar-me na parede para não cair.

Então desabei! Chorei copiosamente tudo o que já deveria ter chorado há muito. Chorei o fato de estar perdendo minha esposa, a quem eu amava desesperadamente; chorei por meus filhos, que aos poucos se afastavam de mim, tornando-se a cada dia mais distantes, e chorei por não haver um único amigo a quem eu pudesse recorrer naquele momento.

Um turbilhão desalinhava meus pensamentos, e eu não conseguia estabilizar uma linha coerente de raciocínio que me permitisse racionalizar a situação e estabelecer uma estratégia de ação. Eu só via o desespero do fantasma do desemprego, das dívidas se acumulando, da desagregação final da família e de meu nome sujo na praça.

Não sei por quanto tempo fiquei naquele banheiro, mas o que vi no grande espelho enquanto lavava o rosto para tentar me recompor e voltar à minha sala, me causou profundo desânimo. Vi um homem de rosto inchado, olhos injetados, semblante desesperado, bochechas trêmulas, desgrenhado e absolutamente perdido.

Meu amor próprio fora-se! Jamais pensei que passaria por isso um dia. Quando atravessei a sala em direção à minha mesa de trabalho para apanhar minhas coisas, senti os olhares postos em mim. Nenhum dos meus subordinados ou pares saiu de seus lugares e veio me oferecer apoio. Compreendi que estava sozinho! A possibilidade de eu ser odiado nunca me ocorrera. Como chefe de meu departamento, eu era enérgico, admito, mas não acreditava ser uma pessoa injusta. Entretanto, eu podia sentir um certo alívio no semblante das pessoas ao meu redor.

O turbilhão que me envolvia não me permitiu ver muito mais. Quando cheguei ao meu carro, estacionado sob a palmeira, notei que meu diretor me observava sorrateiramente através das persianas. Levantei o polegar fazendo-lhe um sinal de positivo – único blefe que consegui pensar como última vingança para desmascarar sua presença – fazendo-o afastar-se da janela.

Quando eu ia entrar no carro, Arnaldo, o jovem e brilhante engenheiro indígena que eu admitira há poucos dias, aproximou-se.

“Má hora” – pensei eu – “Não quero conversar com ninguém!”

- Desejo lhe agradecer por minha admissão – disse ele – minha origem estava me causando problemas para me integrar ao mercado de trabalho. Se não fosse o senhor...

- Arnaldo – respondi, interrompendo-o – Eu ...

- Se não se importar, chame-me de Nhuamã. É o meu nome de batismo...

- Ora! Que nome sonoro! Ele não constava em seu currículo...

- Bom, sou obrigado a esconder o que posso de minhas origens indígenas, porque ela só me causa problemas no mundo dos brancos – disse ele sorrindo...

- Bom, Nhuamã – acabei de ser demitido, e para falar a verdade, acabei de demitir também minha vontade, e talvez mesmo, minha auto estima... isso nunca tinha me acontecido – disse eu, tentando fazer graça, mas mal contendo a emoção.

- Preciso voltar ao trabalho. Almoce comigo hoje! Se puder, encontre-me no shopping da praia, na lanchonete de sempre...

- Ok! - Disse eu forçando um sorriso – estarei lá. Não tenho mesmo para onde ir...

O jovem despediu-se com um aceno e eu entrei no meu carro novinho, decidido a curti-lo o mais que podia, porque certamente dentro em pouco teria que devolve-lo à financeira!

Decidido a não ir para casa, porque eu sabia que a briga seria grande tão logo eu desse à minha esposa a notícia de minha demissão, fui a um cinema próximo, e fiquei aguardando a primeira sessão que começava às dez horas.
 
Eram 12:15 quando Arnaldo – ou Nhuamã, como queria ele - chegou. Eu estava encostado na pequena mureta de pedra que limitava a praia, quando sua mão tocou em meu ombro.

- Achei que o senhor não viria – disse ele.

- Qual foi a repercussão de minha demissão lá no escritório? – perguntei tentando sorrir.

Ao invés de responder, Nhuamã tirou os sapatos, enrolou as calças nas pernas e foi até a água, onde o mar ficou a lamber-lhe os pés.

- Minha vida foi toda passada junto ao mar – disse ele voltando até onde eu estava - tire seus sapatos e vamos dar uma caminhada pela praia para abrir o apetite.

- De que tribo você é? Perguntei enquanto descalçava meus sapatos.

- Tupinambá.

Lentamente fomos caminhando pela praia, em direção ao rochedo onde ela terminava, uns 300 metros adiante.

Enquanto caminhávamos, fui relatando minha vida, surpreso pela confiança que eu estava depositando em um quase desconhecido! Há muito tempo eu não fazia confidências. Meus últimos anos foram todos passados enclausurados dentro de mim mesmo. Não sei se isso aconteceu por falta de amigos, ou se os amigos se foram por eu ser assim.

Nhuamã parecia não estar muito interessado em meu desabafo. Enquanto eu falava e falava, ele parava a todo instante para juntar conchas. Na verdade eu não esperava que um jovem rapaz recém formado tivesse alguma coisa a me dizer. Se vim a esse encontro, foi principalmente porque não tinha o que fazer, e também para satisfazer minha curiosidade sobre como teria repercutido minha demissão lá na empresa.

Assim, caminhamos calmamente, como se tivéssemos o resto do dia ao nosso dispor. Eu, relatando coisas sobre minha vida que há muito não falava a ninguém, e ele, divertindo-se feito uma criança com as conchinhas coloridas que apanhava.

Confesso que comecei a me sentir meio idiota ao notar a situação ridícula de esperar que um jovem apenas alguns anos mais velho que meu filho, pudesse me incentivar ou tivesse algo a me dizer.

Quando chegamos ao extremo da praia, Nhuamã subiu por uma pequena trilha até o alto do rochedo, convidando-me a acompanhá-lo. Arfando, parei de falar até chegarmos ao topo, de onde se descortinava um lindo cenário.

Ficamos observando o oceano e a enseada, com o shopping no outro extremo da praia. Então Nhuamã falou:

- O senhor percebe agora onde está a causa dos seus problemas?

Eu o olhei intrigado, sem saber se sorria ou se o levava a sério. Ele ficou me olhando diretamente nos olhos, sem nenhuma expressão no rosto, num silêncio perturbador. Finalmente desisti de sustentar seu olhar.

- O que há para perceber? – perguntei um pouco envergonhado pela falta de perspicácia...Eu apenas lhe falava de alguns aspectos de minha vida...que aliás penso ser pouco interessante...

- Na cidadezinha onde me criei - disse Nhuamã - há uma praia muito parecida com esta, e, no dia em que me despedi da minha família para ir estudar na capital, meu pai levou-me por um passeio pela praia, como fiz com o senhor...

Fiquei em silêncio, sem ousar interrompe-lo.

- Tal como o senhor, eu lhe falei dos meus planos, enquanto passeávamos pela areia...contei-lhe de minhas intenções, do que eu pretendia ser um dia, e de tudo o que pudesse vir à mente de um jovem que iria partir para a sua jornada pelo mundo.

“Caminhando ao meu lado com as mãos às costas, meu pai ouviu pacientemente, tudo o que eu tinha a dizer. Quando chegamos ao outro lado da praia, ele falou pela primeira vez, e disse-me coisas que levei anos para compreender o verdadeiro sentido:

“- Meu filho querido – disse ele – tu serás infeliz se atravessares a vida como atravessaste esta praia...

“Eu quis dizer algo, mas ele levantou a mão, fazendo-me silenciar...

“- Há momentos para falar, e há momentos para ouvir – continuou ele - Usa menos a fala do que o ouvido. Faze da fala uma delicada harpa, que não fere os ouvidos de quem ouve, e faze do ouvido uma fonte de prazer. Não escuta, apenas. Ouve! Não olha, apenas. Vê! Se tivesses caminhado em silêncio, terias ouvido o murmurejar da água acariciando a areia...ou o carinho que o vento faz às copas das árvores...Se tivesses pensado menos em ti próprio, terias prestado atenção às belas conchas que adornam a praia, e que enfeitaram teu caminho por todo o percurso, embora delas não tenhas te dado conta.

“Depois de um instante, meu pai finalizou:

“- Amanhã caminharás num novo mundo. Ele será a tua praia. Tal como essa que acabamos de atravessar, ela também terá muitos escolhos, mas sempre haverá as lindas conchas para serem descobertas, se decidires prestar atenção a elas. Essas conchas poderão ser pessoas, situações ou coisas. Isso não importa. O importante é que elas estarão lá, à espera de que as descubras, e que com elas enfeite teu caminho...portanto, não pises nas conchas apenas porque elas não estão à altura da tua vista...Serás uma pessoa completa apenas no dia em que souberes reconhecer o brilho e a beleza das pessoas ao teu redor, não importa quão humildes ou nobres elas sejam."
 
Nhuamã parou de falar, mas eu continuei sob o efeito de suas palavras...

Enquanto ele falava pude ver com que descuido atravessei a praia de minha vida! Naqueles poucos instantes, tomei consciência do quão pouco ouvi o vento saudando as manhãs, do quão mais falei do que ouvi e de quantas pessoas interessantes passaram por minha vida sem que eu lhes tivesse dado atenção...

Então Nhuamã aproximou-se e ofereceu-me as lindas conchas que apanhara.

- Elas estavam lá o tempo todo...mas o senhor não as viu, e pisou em muitas delas...

Apanhei as conchas e fui até a beirada do rochedo, de onde pude ver a esteira magnífica do sol refletido na água. Até há poucos instantes eles eram apenas reflexos incômodos. Atrás de mim, a voz de Nhuamã soou calma:

- A caminhada abriu-me o apetite...vamos almoçar? Disse ele sorrindo.

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