domingo, 17 de outubro de 2021

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 4


A UM POETA


Poeta, quando te leio, a angústia dolorida
Que te mina a existência e que em teu peito impera,
Faz-me também sofrer, d’alma se me apodera,
Como se da minh’alma ela fosse nascida.

Sinto o que sentes: ora a lágrima sincera
Que foi pela saudade ou pelo amor vertida,
Ora a mágoa que habita em tua alma, – guarida
Onde a negra legião das mágoas se aglomera.

Não há nos versos teus um sentimento alheio
A esse teu coração macerado de fráguas;
Há neles ora o suave e módulo gorjeio

Das aves, ora a queixa harmônica das águas...
Leio os teus versos; e, em minh’alma, quando os leio,
Vai gemendo, em surdina, a música das mágoas…
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AURORA

Mensageira da luz, a brisa corre. A Aurora
Do seu leito real de tiro se levanta.
Toda a campina acorda em festa. Cada planta
Mostra o sorriso ideal da matutina Flora.

Um cheiro doce e fresco a verdura evapora.
A araponga, afinando a matinal garganta,
Grita; um pássaro geme; a patativa canta...
Todo o campo é uma orquestra harmônica e sonora.

Vara o diáfano véu da alvíssima neblina
Uma seta de sol. E a floresta, a campina,
Ainda cheias de luz de um pálido arrebol,

Descortinam-se ... E em pouco, a campina, a floresta,
Cheias do riso bom da natureza em festa,
Palpitam sob a luz fecundante do sol.
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CALME DE LA MER*

Tranquilo, o mar não canta nem ondeia;
O nauta, imerso noutro mar de mágoas,
Os olhos tristes e úmidos passeia
Pela tranquila quietação das águas.

A onda que dorme quieta, não espuma;
O austro que sonha plácido, não canta;
E em todo o vasto mar, em parte alguma,
A mais pequena vaga se levanta.
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* Calma do mar.
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LIED SICILIEN*

Olhos! Que ateais os corações e a guerra,
Olhos, quando piscais, olhos de brasas,
Muralhas abalroam, caem casas,
E enormes paredões rolam por terra!

Assim, a um golpe rápido de vista,
Esta débil e trêmula muralha,
Dentro da qual meu coração trabalha,
Como quereis, dizei-me, que resista?
–––––––––––––––––––––––––––––––-
*Canção siciliana.
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LA PRUDE*

Deliciosa manhã de primavera doura
Os campos. Ainda dorme o sol. Mas a pastora,
Descuidosa, passeia, enfeitadinha já.
Quem a vê, a maciez das faces lhe namora.
E ela cantando vai pelos campos em fora:
Trá, la, lá! Trá,lá, lá!

Por um beijo um pastor oferta-lhe uma ovelha,
Duas, quantas quiser... E ela fica vermelha
De raiva, bate o pé... Tão formosa e tão má!
Encara-o com desprezo; e depois, apressando
Os passos, segue adiante, alígera, cantando:
Trá, lá, lá! Trá, lá, lá!

Um pastor lhe oferece o coração a ela;
Fitas outro pastor lhe oferta; mas a bela
Pastorinha gentil, enfastiada já,
Ri de ambos, como riu das ovelhinhas brancas
Do primeiro. E prossegue, entre risadas francas,
Trá, lá, lá! Trá, lá, lá!
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-
*A recatada.

Fonte:
Francisca Júlia da Silva. Mármores. Brasília: Senado Feder4al, 2020.
 Publicado originalmente em 1895.

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