– Ah! O senhor conheceu-a?
– De vista.
– Devia ter sido feia!
– Não! Era formosa.
– Que nome tinha, sabe?
– Ignoro... Faz-me o favor do seu fogo?
– Pois não...
Houve uma pausa e, enquanto um dos interlocutores, o que perguntava, examinava com interesse o interior do Necrotério, o outro ia acendendo muito pachorrentamente o seu cigarro.
Em frente deles, sobre o mármore branco de uma das quatro mesas, estava o cadáver de uma mulher.
A claridade frouxa de um dia de inverno entrava pela larga porta e pelas janelas, indo cair sobre o corpo seminu da infeliz, a envolvê-la, como uma grande mortalha transparente.
Tudo triste, tudo cor da neve, tudo frio!
O vento entrava, cortante como uma lâmina bem afiada. No seu nicho, sobre fundo azul, a Virgem da Piedade, sustendo nos joelhos o corpo inerte do Cristo morto, evocava, como um exemplo de profunda agonia, a sua grande dor.
– Infeliz, dizia um dos espectadores, encostado ao umbral, olhando para aquele pavoroso espetáculo, numa fixidez de animal magnetizado.
O cadáver estava inchado pela absorção da agua e já manchado da gangrena. Os cabelos enovelados empastavam-se sobre as clavículas, numas madeixas pretas, curtas, ásperas, sujas de areia e de partículas de algas. Os olhos, entreabertos, pareciam, na sua névoa sinistra e glacial, feitos da água que os havia apagado e que se tivesse coagulado em dois grandes glóbulos gelatinosos e opacos. Expressão medonha, feita pelo terror da onda e pelo terror da morte!
O diálogo continuava:
– O senhor diz que ela não era feia! No entanto parece horrorosa! Como a morte transfigura... como a morte é má!
O outro sorriu-se, respondendo:
– Se estivesse, como eu, habituado a olhar para isto, já se não impressionaria assim. Vá-se embora... está pálido e não convém abusar de uma impressão nervosa.
Separaram-se. E o sujeito que conhecera a desgraçada morta, noutros tempos, em que ela era talvez alegre, jovial, risonha, ia andando despreocupadamente, a bambolear a grossa bengala de castão de prata, e a pensar no almoço do hotel, nas ostras frescas e no vinho leve. O outro, ao contrário, tremia, sentia as palmas das mãos úmidas e gélidas, como se as tivesse passado sobre a carne mole da defunta; olhava com raiva para o mar azul franjado de espuma alvinitente e semeado aqui e além por umas velas brancas como asas de cisne; sentia um cheiro de cadáver e de ácido fênico em tudo, na rua, no próprio fato, no chapéu, no lenço, nas mãos...
Todo esse dia foi para ele de sofrimento; numa obsessão doentia, cismava continuamente nessa morta desconhecida, por quem talvez tivesse passado e a quem talvez tivesse podido socorrer ou aconselhar.
A sua responsabilidade de ente humano ofendia-se àquela revelação de padecimento sem consolo. A felicidade depende às vezes de tão pouco!
Querendo reagir, procurou em vão entreter o espírito, arejá-lo com outras ideias. Afinal, não fora por causa dele que aquela mulher se matara! Depois, não lia ele todas as manhãs, já sem abalo à força do costume, tantas notícias de crimes, tão dolorosas revelações nos jornais?
Por que haveria agora este fato de o impressionar mais que tantos outros? Então, só porque os seus olhos tinham visto aquele corpo imundo, já a sua impassibilidade dava lugar a uma tamanha vibração de nervos?
Devia pensar em outra coisa; queria-o, mas era vão o esforço, à resistência acudia a curiosidade:
– Coitada, por que se teria matado?
Desgraças de amor, naturalmente. Uma paixão; sim, devia ter sido isso mesmo... Quando voltasse para casa passaria outra vez pelo Necrotério... esperava já lá não encontrar o cadáver, sabe-lo reconhecido pela família, tirado dali, daquela exposição ignominiosa.
Àquela hora alguém choraria a seu lado, já haveria flores sobre o seu corpo imundo, e o perdão da família sobre o seu crime nefasto!
Ainda dois dias antes ela devia ter sido bonita, fresca, louçã... Naturalmente aquele por quem ela se matou foi procurá-la, e, humilhado, arrependido, irá acompanhá-la ao cemitério, fazendo-lhe um enterro bonito e espargindo violetas sobre o seu túmulo, com saudosa ternura.
Talvez a matasse uma traição... o amante casaria... o marido amaria outra... a vergonha... o ciúme... Fosse o que fosse, ela estava morta, desfigurada, repugnante, e não lhe podia sair do pensamento, numa obstinação cruel.
E as mãos, e o fato e o lenço cheiravam a defunto e a ácido fênico!
Saiu de novo; girou pelas ruas; aqui um amigo alegre detinha-o, contando-lhe uma anedota picaresca. Os outros riam, ele sorria apenas, condescendentemente, pensando nuns olhos vítreos, parados, e num corpo hirto e manchado de escuro. Entrou num botequim: muita confusão. Gente e música estrepitosa. Mas todas aquelas pessoas, quase todas homens, pareceram-lhe tétricas, sombrias, pensativas. Nem uma gargalhada! Nem um dito de espírito faiscando no ar; bulha de passos, tilintar de vidros e metais, unicamente rostos amarelados, olhos fixos no café das xícaras, e ao fundo uns músicos, vibrando os seus instrumentos com desespero, num interesse de ganho mercenário.
Achou estúpido aquilo e saiu.
Mas na rua, como em casa, sentia o mesmo cheiro e o mesmo desgosto. Sempre aquela mesa de mármore branca, inclinada, a Virgem no seu nicho de madeira, e o cadáver da afogada, com os olhos abertos e as algas mirradas presas no cabelo.
Entretanto o outro, que a conhecera, já nem pensava nela...
E no espírito do impressionado rapaz voltava de vez em quando a impertinente pergunta:
– Por que se mataria... por quê?...
Voltando para casa, parou de novo no Necrotério. A morta já lá não estava. Sobre a mesa que ela tinha ocupado, agora vazia, o sol punha, através dos vidros vermelhos e amarelos das janelas, umas rosas de luz cor de ouro e cor de sangue. Trouxe-lhe aquilo algum sossego, mas não se coibiu de perguntar com interesse ao guarda se a infeliz fora, enfim, reclamada pela família.
– Não, senhor, respondeu-lhe o guarda com amabilidade, ajeitando no pescoço um lenço de lã azul.
– Então ninguém a reconheceu?!
– Ninguém.
– Ninguém a procurou?
– Ninguém.
– Coitada!
O guarda espantou-se de ver brilharem de comoção os olhos daquele importuno perguntador, que no entanto ia dizendo:
– Não teve a desventurada pai, irmão ou amigo que lhe viesse dizer um último adeus! Que coisa triste...
– Ninguém, repetiu o guarda; foi daqui para o cemitério.
– Antes a tivessem deixado no mar...
– Sim, mais valia...
O rapaz não respondeu; olhou outra vez para a mesa, onde tremulavam as rosas de sol, e seguiu.
Talvez se tivesse matado por ser sozinha. A mulher é uma eterna criança, precisa sempre que a conduzam pela mão... Sem lar, sem amor, sem amparo e sem conselhos, como poderia resistir e viver neste mundo? Faltou-lhe talvez o esposo... um amigo dedicado... talvez a mãe... um braço salvador, enfim, que a sustivesse em um outro nível.
Pobre rapariga! fascinou-a naturalmente a cor misteriosa do oceano, ora verde, ora azul... Supôs poder dormir entre os corais e as conchas nacaradas, enquanto as ondas rolassem sobre o seu corpo, marulhosamente!
Seria louca? É possível. Um pouco de espuma aparecendo e sumindo-se assemelhar-se-ia a um aceno que a chamasse...
Incógnita! passando pela terra sem deixar ninho nem vestígio, afundou-se no mar repentinamente, com todas as suas desilusões, ou quem sabe? Com todas as suas esperanças!
Talvez que ele, ele mesmo, já a tivesse visto e beijado!
Esta ideia fê-lo estremecer. Viu fixarem-se nos seus os olhos terríveis e impenetráveis da morta, nublados de cinzento, a cor sombria e muda.
Interrogou as suas reminiscências. E a voz do guarda pareceu dizer-lhe de novo, ao ouvido:
– Ninguém...
No caminho percorrido da sua vida, não a vira nunca. Antes assim! E ele respirou.
Por que se obstinava em pensar nela? Que estranho poder era esse, prendendo-o de tal forma a uma desconhecida? Vira-a pela primeira vez já morta, já putrefata e asquerosa. Acabou-se. A vida é bem pouca coisa para que a gente se ocupe tanto dela!...
Entrando em casa, a esposa correu a recebê-lo com a filhinha; ele beijou-as com ternura, demoradamente, sentindo como nunca a alegria inefável de proteger alguém.
Depois contou-lhes tudo, a sua dolorosa impressão, diante da mesa inclinada do Necrotério, onde um cadáver de mulher mostrava o rosto amarelo e os cabelos ásperos, sujos de areia e de algas secas.
Acabada a narração, a esposa tinha os olhos rasos d’água, e a vozinha débil da filha murmurava:
– Logo à noite, mamãe há de me fazer rezar pela afogada, sim?
– De vista.
– Devia ter sido feia!
– Não! Era formosa.
– Que nome tinha, sabe?
– Ignoro... Faz-me o favor do seu fogo?
– Pois não...
Houve uma pausa e, enquanto um dos interlocutores, o que perguntava, examinava com interesse o interior do Necrotério, o outro ia acendendo muito pachorrentamente o seu cigarro.
Em frente deles, sobre o mármore branco de uma das quatro mesas, estava o cadáver de uma mulher.
A claridade frouxa de um dia de inverno entrava pela larga porta e pelas janelas, indo cair sobre o corpo seminu da infeliz, a envolvê-la, como uma grande mortalha transparente.
Tudo triste, tudo cor da neve, tudo frio!
O vento entrava, cortante como uma lâmina bem afiada. No seu nicho, sobre fundo azul, a Virgem da Piedade, sustendo nos joelhos o corpo inerte do Cristo morto, evocava, como um exemplo de profunda agonia, a sua grande dor.
– Infeliz, dizia um dos espectadores, encostado ao umbral, olhando para aquele pavoroso espetáculo, numa fixidez de animal magnetizado.
O cadáver estava inchado pela absorção da agua e já manchado da gangrena. Os cabelos enovelados empastavam-se sobre as clavículas, numas madeixas pretas, curtas, ásperas, sujas de areia e de partículas de algas. Os olhos, entreabertos, pareciam, na sua névoa sinistra e glacial, feitos da água que os havia apagado e que se tivesse coagulado em dois grandes glóbulos gelatinosos e opacos. Expressão medonha, feita pelo terror da onda e pelo terror da morte!
O diálogo continuava:
– O senhor diz que ela não era feia! No entanto parece horrorosa! Como a morte transfigura... como a morte é má!
O outro sorriu-se, respondendo:
– Se estivesse, como eu, habituado a olhar para isto, já se não impressionaria assim. Vá-se embora... está pálido e não convém abusar de uma impressão nervosa.
Separaram-se. E o sujeito que conhecera a desgraçada morta, noutros tempos, em que ela era talvez alegre, jovial, risonha, ia andando despreocupadamente, a bambolear a grossa bengala de castão de prata, e a pensar no almoço do hotel, nas ostras frescas e no vinho leve. O outro, ao contrário, tremia, sentia as palmas das mãos úmidas e gélidas, como se as tivesse passado sobre a carne mole da defunta; olhava com raiva para o mar azul franjado de espuma alvinitente e semeado aqui e além por umas velas brancas como asas de cisne; sentia um cheiro de cadáver e de ácido fênico em tudo, na rua, no próprio fato, no chapéu, no lenço, nas mãos...
Todo esse dia foi para ele de sofrimento; numa obsessão doentia, cismava continuamente nessa morta desconhecida, por quem talvez tivesse passado e a quem talvez tivesse podido socorrer ou aconselhar.
A sua responsabilidade de ente humano ofendia-se àquela revelação de padecimento sem consolo. A felicidade depende às vezes de tão pouco!
Querendo reagir, procurou em vão entreter o espírito, arejá-lo com outras ideias. Afinal, não fora por causa dele que aquela mulher se matara! Depois, não lia ele todas as manhãs, já sem abalo à força do costume, tantas notícias de crimes, tão dolorosas revelações nos jornais?
Por que haveria agora este fato de o impressionar mais que tantos outros? Então, só porque os seus olhos tinham visto aquele corpo imundo, já a sua impassibilidade dava lugar a uma tamanha vibração de nervos?
Devia pensar em outra coisa; queria-o, mas era vão o esforço, à resistência acudia a curiosidade:
– Coitada, por que se teria matado?
Desgraças de amor, naturalmente. Uma paixão; sim, devia ter sido isso mesmo... Quando voltasse para casa passaria outra vez pelo Necrotério... esperava já lá não encontrar o cadáver, sabe-lo reconhecido pela família, tirado dali, daquela exposição ignominiosa.
Àquela hora alguém choraria a seu lado, já haveria flores sobre o seu corpo imundo, e o perdão da família sobre o seu crime nefasto!
Ainda dois dias antes ela devia ter sido bonita, fresca, louçã... Naturalmente aquele por quem ela se matou foi procurá-la, e, humilhado, arrependido, irá acompanhá-la ao cemitério, fazendo-lhe um enterro bonito e espargindo violetas sobre o seu túmulo, com saudosa ternura.
Talvez a matasse uma traição... o amante casaria... o marido amaria outra... a vergonha... o ciúme... Fosse o que fosse, ela estava morta, desfigurada, repugnante, e não lhe podia sair do pensamento, numa obstinação cruel.
E as mãos, e o fato e o lenço cheiravam a defunto e a ácido fênico!
Saiu de novo; girou pelas ruas; aqui um amigo alegre detinha-o, contando-lhe uma anedota picaresca. Os outros riam, ele sorria apenas, condescendentemente, pensando nuns olhos vítreos, parados, e num corpo hirto e manchado de escuro. Entrou num botequim: muita confusão. Gente e música estrepitosa. Mas todas aquelas pessoas, quase todas homens, pareceram-lhe tétricas, sombrias, pensativas. Nem uma gargalhada! Nem um dito de espírito faiscando no ar; bulha de passos, tilintar de vidros e metais, unicamente rostos amarelados, olhos fixos no café das xícaras, e ao fundo uns músicos, vibrando os seus instrumentos com desespero, num interesse de ganho mercenário.
Achou estúpido aquilo e saiu.
Mas na rua, como em casa, sentia o mesmo cheiro e o mesmo desgosto. Sempre aquela mesa de mármore branca, inclinada, a Virgem no seu nicho de madeira, e o cadáver da afogada, com os olhos abertos e as algas mirradas presas no cabelo.
Entretanto o outro, que a conhecera, já nem pensava nela...
E no espírito do impressionado rapaz voltava de vez em quando a impertinente pergunta:
– Por que se mataria... por quê?...
Voltando para casa, parou de novo no Necrotério. A morta já lá não estava. Sobre a mesa que ela tinha ocupado, agora vazia, o sol punha, através dos vidros vermelhos e amarelos das janelas, umas rosas de luz cor de ouro e cor de sangue. Trouxe-lhe aquilo algum sossego, mas não se coibiu de perguntar com interesse ao guarda se a infeliz fora, enfim, reclamada pela família.
– Não, senhor, respondeu-lhe o guarda com amabilidade, ajeitando no pescoço um lenço de lã azul.
– Então ninguém a reconheceu?!
– Ninguém.
– Ninguém a procurou?
– Ninguém.
– Coitada!
O guarda espantou-se de ver brilharem de comoção os olhos daquele importuno perguntador, que no entanto ia dizendo:
– Não teve a desventurada pai, irmão ou amigo que lhe viesse dizer um último adeus! Que coisa triste...
– Ninguém, repetiu o guarda; foi daqui para o cemitério.
– Antes a tivessem deixado no mar...
– Sim, mais valia...
O rapaz não respondeu; olhou outra vez para a mesa, onde tremulavam as rosas de sol, e seguiu.
Talvez se tivesse matado por ser sozinha. A mulher é uma eterna criança, precisa sempre que a conduzam pela mão... Sem lar, sem amor, sem amparo e sem conselhos, como poderia resistir e viver neste mundo? Faltou-lhe talvez o esposo... um amigo dedicado... talvez a mãe... um braço salvador, enfim, que a sustivesse em um outro nível.
Pobre rapariga! fascinou-a naturalmente a cor misteriosa do oceano, ora verde, ora azul... Supôs poder dormir entre os corais e as conchas nacaradas, enquanto as ondas rolassem sobre o seu corpo, marulhosamente!
Seria louca? É possível. Um pouco de espuma aparecendo e sumindo-se assemelhar-se-ia a um aceno que a chamasse...
Incógnita! passando pela terra sem deixar ninho nem vestígio, afundou-se no mar repentinamente, com todas as suas desilusões, ou quem sabe? Com todas as suas esperanças!
Talvez que ele, ele mesmo, já a tivesse visto e beijado!
Esta ideia fê-lo estremecer. Viu fixarem-se nos seus os olhos terríveis e impenetráveis da morta, nublados de cinzento, a cor sombria e muda.
Interrogou as suas reminiscências. E a voz do guarda pareceu dizer-lhe de novo, ao ouvido:
– Ninguém...
No caminho percorrido da sua vida, não a vira nunca. Antes assim! E ele respirou.
Por que se obstinava em pensar nela? Que estranho poder era esse, prendendo-o de tal forma a uma desconhecida? Vira-a pela primeira vez já morta, já putrefata e asquerosa. Acabou-se. A vida é bem pouca coisa para que a gente se ocupe tanto dela!...
Entrando em casa, a esposa correu a recebê-lo com a filhinha; ele beijou-as com ternura, demoradamente, sentindo como nunca a alegria inefável de proteger alguém.
Depois contou-lhes tudo, a sua dolorosa impressão, diante da mesa inclinada do Necrotério, onde um cadáver de mulher mostrava o rosto amarelo e os cabelos ásperos, sujos de areia e de algas secas.
Acabada a narração, a esposa tinha os olhos rasos d’água, e a vozinha débil da filha murmurava:
– Logo à noite, mamãe há de me fazer rezar pela afogada, sim?
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
Nenhum comentário:
Postar um comentário