domingo, 31 de outubro de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 40 e 41


PODER DA ETIMOLOGIA


Quando o professor Nemésio explicou a Cacilda que o nome dela, segundo Zambaldi, quer dizer “a que combate com lança”, a moça ficou triste. É tão doce esse nome (experimentem pronunciá-lo) e tão meiga a sua portadora, que a revelação lhe pareceu a mais injusta possível.

O pior é que os irmãos começaram a brincar com ela de maneira provocadora, dizendo a cada instante: “Cacilda, onde você escondeu sua lança?”. Ou: “O amolador de facas está na esquina da rua Júlio de Castilhos. Leve a lança para ele afiar, Cacilda”.

De aveludada que era, Cacilda tornou-se suscetível e mesmo agressiva. O namorado rompeu com ela, dizendo que tinha medo de uma lanceira polonesa. E Cacilda quedou, fera e tristinha, em seu quarto onde havia gravuras de guerras napoleônicas.

A família procurou o professor Nemésio que, benevolamente, se dispôs a pacificar a moça: “Minha filha, isso de etimologia é muito discutível, cada uma diz uma coisa, e esse tal de Zambaldi já foi desacreditado por pesquisas recentes. O verdadeiro significado do nome de uma pessoa é o que lhe confere a pessoa que o tem. Você é tão encantadora que seu nome só pode significar você mesma, isto é, encantos mil”.

Cacilda acreditou e voltou ao estado gentil, mas sucede que, de vez em quando…
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RICK E A GIRAFA

No Jardim Zoológico, neste domingo azul, a girafa olha do alto para as crianças, e parece convidá-las a um passeio no dorso. Há uma escada perto, e se for encostada ao animal, Ricardo (Rick é o seu apelido) poderá chegar até lá.

O garoto mede a distância que vai do chão ao lombo, e julga-se em condições de vencê-la. Uma vez lá em cima, cavalgando o pescoço, e segurando-lhe os chifres, pedirá à girafa, depois de umas voltas pelo Jardim, que o leve por aí, percorrendo o mundo.

Presa há tanto tempo, a girafa há de estar ansiosa de liberdade. Não será difícil transpor a cerca. Ela espera que Rick lhe proponha a aventura. Ninguém se atreverá a travar-lhe os passos, e Rick vai dirigi-la nos rumos que aprendeu no atlas escolar.

O problema é descer de vez em quando, para Rick alimentar-se de biscoitos, fazer necessidades e dormir. Camarada, a girafa irá se deitando aos poucos, primeiro dobrando devagar as pernas, depois se inclinando lentamente para o lado, e afinal arriando com suavidade a carga infantil.

Mas para subir outra vez, como se arranjaria ele? Escada não haverá. Mesmo deitada, a girafa é difícil de subir. A imaginação não lhe fornece recurso plausível. O sonho frustrou-se. Rick levanta o braço direito e, com a mão espalmada em gesto de adeus à girafa que gentilmente o convidara, esclarece:

— Muito obrigado. Fica para outra ocasião, quando eu crescer.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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