Era dos mais velhos, o conhecimento que eu mantinha com esse rapaz. Iniciadas na rua, nos ligeiros encontros dos cafés, as nossas relações se estreitavam dia a dia. Nos primeiros tempos, ele sempre me apareceu como uma pessoa inalteravelmente jovial, indiferente às pequeninas coisas do mundo, cético a seu modo; mas, em breve sob essa máscara de polidez, fui percebendo nele um queixoso, um amargo a quem uma melancolia, provinda de fugitivas aspirações impossíveis, revestia de uma tristeza coesa. Depois o seu caráter e a sua organização muito concorriam para sua dolorida existência. Muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer, Gabriel vivia isolado, bastando-se a si e aos seus pensamentos, como um estranho anacoreta que fizesse, do agitado das cidades, ermo para seu recolhimento.
Às vezes ele nos surgia com uns ares de letrado chinês, lido em Sai-Tsê, calmo, superior, seguro de si e contente de se sacrificar à lógica imanente das coisas. Não dava um ai, não se lamentava, talvez temendo que o alarido de seus queixumes não desassossegasse a viagem do seu espírito “par-delà du soleil, par-delà de l’éther, par-delà des confins de sphères étoilées”.*
Um dia o encontramos, eu e mais alguns da roda, e a um deles que lhe perguntava: “Que tu vais fazer agora?” aludindo às consequências do último desastre da sua vida, Gabriel respondeu:
— Nada! O soberano bem não é agir.
Dias depois confessava-me o contemplativo que seguia idiotamente, pelas ruas e pelos bondes, os belos olhos negros de uma preceptora francesa.
Sua natureza era assim, dual, bifronte, sendo que os seus aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem nunca se colarem, sem nunca se justaporem, dando a crer que havia entre as duas partes um vazio, uma falha a preencher, que à sua união se opunha um forte obstáculo mecânico...
Esta maneira biface de sua organização, a sua sensibilidade muito pronta e uma tentação delirante, para as satisfações materiais, tinham transformado a sua vida num acúmulo de desastres; pelo que, em decorrer dela, de todo se lhe fora aquela película cética, faceta, gaiata, ficando-lhe mais evidente a alegria e o sainete do filósofo pessimista, irônico, debicando a mentira por ter conhecimento da verdade, que é uma das povoadoras da imagem sem validade que é o mundo.
Pelos seus trinta e quatro anos, eu o procurava em sua casa, uma pequena casinha, numa rua da ponta do Caju, junto daquele mar de morte que beija as praias desse arrabalde, olhando defronte o cinzelado panorama das montanhas.
Não vivia mal, o emprego exigia pouco e dava relativamente muito; e solteiro, habitava a casinha com um africano velho, seu amigo, seu oráculo e seu cozinheiro; e um desgraçado poetastro das ruas, semilouco e vagabundo.
Era uma colônia de ratés animados pela resignação africana. Quando eu entrei em sua casa naquela tarde, a sua fisionomia irradiava. Pareceu-me que a iluminação interior que há muito sentíamos nele ia afinal exteriorizar-se. Seu rosto afinara-se, sua testa alongara-se, havia pelo seu olhar faiscações novas; era como se a graça descesse até ele, povoasse-lhe a alma e a enchesse de tal modo que se extravasasse pelo seu olhar brilhante, bondoso e agora calmo.
— Que tens hoje, fui lhe dizendo, a tua apaixonada rendeu-se ou achaste... o teu destino?
— Qual paixão, qual destino! interrompeu ele. O sábio não tem paixões para melhor poder contemplar a harmonia do universo.
E depois dessa sentença, não sei de que filósofo hindu ou chinês, ele me leu o seguinte, escrito com letra miúda e irregular em duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão.
Morava eu nesse tempo em rua remota de uma estação de subúrbio afastado. Sem calçamento e mal iluminada, eu a trilhava a desoras em busca da casa reconfortante. Afazeres e, em geral, a exigência do meu temperamento pelo bulício, pela luz da cidade, faziam-me demorar nas ruas centrais. A esmo, por elas à toa, passeava, vagava horas e horas, olhando e conversando aqui, ali; e quando inteiramente fatigado, buscava o trem e durante uma meia hora, tímido, covarde, encostado a um canto, pensava, sofria à menor risota e o mais imbecil dito cortava-me a alma. Era a constante preocupação das minhas ideias passar meu sofrimento, a outra pessoa, evitá-lo detidamente a alguém.
Sob a pressão daquela mágoa eterna, no meu íntimo ficava o seu segredo exigente de comunicação, fosse mesmo a quem não tivesse o refinamento do meu espírito e que a substância imortal lhe animasse a vida, não tivesse sido adivinhado e me sentia impelido a comunicá-lo. Era nessas ocasiões que eu pensava no amor, mas... Bem depressa, porém, meu espírito se perdia, caía em devaneio, não encontrava deleite, sorria. Do homem ia aos cães, aos gatos, às aves, às plantas, à terra, em busca de confidente.
Uma vez, em frente ao mar augusto, verde e translúcido, tive desejos de lhe contar o meu segredo, mas logo o temor me veio de que os ventos voltassem, e trouxessem para a vasta cidade as minhas palavras, tal como a planta que nasceu à confidência feita à terra do feitio das orelhas do rei Midas.
Quando a percepção do meu estado, da maneira da minha existência, era mais clara aos meus olhos, arquitetava planos de fugas para lugares longínquos, livros vibrantes como indignações de Deus; mas nada disso executei. Qualquer coisa muito obscura na minha estrutura mental, talvez mesmo o sentimento da lógica da hostilidade de que me via cercado, impedia-me de reagir ativa ou passivamente. Agachava-me por detrás do meu espírito e então bebia em largos prantos o fogo claro, claro que enche os límpidos espaços e, por instantes, era feliz porque:
Heureux celui qui peut d’une aile vigoureuse
S’élancer vers les champs lumineux et sereins,
Celui dont les pensées comme des alouettes
Vers les cieux le matin prennent un libre essor
Qui plane sur la vie et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes.**
S’élancer vers les champs lumineux et sereins,
Celui dont les pensées comme des alouettes
Vers les cieux le matin prennent un libre essor
Qui plane sur la vie et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes.**
Depois de ter carinhosamente ouvido essa linguagem, a amargura aumentava. O espírito dirigia, reclamava, queria qualquer coisa, não se bastava a si mesmo, esperava na sua prisão, no seu cárcere; e, para o meu caso, oh! que blasfêmia, o provérbio se modificara: “não é só de espírito que vive o homem...”.
Certa noite, demorando-me mais do que de costume, fui saltar à estação pelas duas horas da madrugada. Tudo era mudo e ermo. Um ventinho constante soprava, inclinando as árvores das chácaras e agitando as amareladas luzernas de gás como espectros aterradores. As casas imóveis, caiadas, hermeticamente fechadas pareciam sepulcros com portas negras. A escuridão aconchegava os morros nas suas dobras. Pus-me a andar rapidamente. A rua pouco larga, bordada de bambuais de um e outro lado, iluminada frouxamente e abobadada no nevoeiro, era como uma longa galeria de museu. Em meio do caminho, alguém saltou-me na frente e, de faca em punho, disse-me:
— Olá! Passe o “bronze” que tem.
Não tinha francamente grande prática desses encontros, contudo me portei na altura da sua delicadeza. Calmamente tirei das algibeiras o pouco dinheiro que tinha e, de mistura com alguns cupons de bonde, pálido, mas sem tremer, entreguei-o ao opressor daquele minuto fugaz.
O gesto foi belo e impressionou o bandido, a tal ponto que nem por sonhos desconfiou que eu poderia ter deixado algum oculto pelos forros. Há, já se disse, mais ingenuidade nos grandes criminosos do que a gente em geral supõe. Quase com repugnância ele recebeu o maço que lhe estendia; e já se retirava quando a uma onda de luz que em um vaivém da chama de gás lançou-me, percebeu alguma coisa nos meus cabelos e com ironia indagou:
— Tens penas? És azul? Que diabo! Estes teus cabelos são especiais.
Ouvindo isso, eu o fitei com as pupilas em brasa e minha fisionomia devia ter tão estranha expressão de angústia que o ladrão fechou a sua e estremeceu. É que as suas palavras relembravam-me toda a minha existência envenenada por aquele singular acidente; as desastrosas hesitações de que ela ficara cheia; o azedume perturbador, ressaibo do ódio e de amarguras de que estava tisnado.
Os suplícios a que meu próprio espírito impunha. E de uma só vez, embaralhado tudo isso se ofereceu aos olhos como uma obsessão demoníaca, algo premente, cruel, vivendo em tudo, em todas as coisas, em qualquer boca, na boca de um ladrão.
— Pois até tu! Que mais queres de mim? disse-lhe eu. Acaso além do dinheiro que trazem nas algibeiras, mais alguma coisa te interessa nos transeuntes? És também da sociedade? Movem-te as considerações dela?
Olhei-o interrogativamente. O homem tinha o ar mudado. Os lábios estavam entreabertos, trêmulos, pálidos, o olhar esgazeado, fixo, cravado no meu rosto. Olhava-me como se olhasse um duende, um fantasma. Contendo porém a comoção, pôde dizer:
— Dentes negros! Meu Deus! É o diabo! É uma alma penada, é um fantasma.
E o rosto dele dilatava-se, as pupilas estendiam-se; tinha os cabelos eriçados o homem que me assaltava; e desandaria a correr se o medo não lhe pusesse pesadas toneladas nas pernas.
Esteve assim minutos até que percebeu que a expressão do meu rosto era de choro e que nele havia a denúncia de uma grande mágoa fatal. O meu interlocutor transmudou as contrações de horror estampadas nas suas feições, abrindo-as num dúlcido sorriso de bondade.
— Desculpa-me. Desculpa-me. Não sabia. Quem não sabe é como quem não vê.
E sem ligação continuou:
— Não me creias um miserável gatuno de estradas, um comum assaltante de ruas. Foi o momento que me fez. Emprego-me em mais altos “trabalhos”, mas preciso de uns “miúdos” e, para obtê-los, o meio se impunha. Se me demorasse, a ocasião perdia-se. Bem sabes, a vida é um combate; se não se fere logo, morre-se. Mas... Deus me ajudará. Toma o teu dinheiro. Arranjarei sem ele como iniciar o meu grande “trabalho”, aquele que é a mira, o escopo da minha existência, que me vai dar, enfim, o descanso (resplandecia), a consideração dos meus semelhantes e o respeito da sociedade. Vai... Tu és sem esperança. Vai-te... Desculpa-me.
Aqueles meus cabelos azuis, cabelos que eram o suplício da minha vida, e aqueles meus dentes negros compuseram-se, dignificaram-se para sorrir ao herói jovialmente, de reconhecimento e ternura.
— Mas quem te faz sofrer, rapaz? perguntou-me o desconhecido.
— Ninguém, falei-lhe eu, ninguém. É o meu espírito, meu entendimento, é a representação que ele faz do mundo circundante.
Íamos nos separar, quando ainda ele insistia:
— Com isso deves sofrer muito?
Dessa vez, antes de lhe responder pensei ligeiramente. Quem seria aquele homem? Vê-lo-ia ainda uma vez? Nunca mais, era certo. Depois daquele minúsculo incidente de sua carreira, continuaria inflexivelmente na sua grande missão sobre a terra. Teria todo o interesse em me fugir, em desaparecer dos meus olhos, ou senão, reconhecido, se eu encontrando não o denunciasse, ligar-se-ia a mim pela gratidão. Por que, sendo assim, não havia eu de lhe contar o meu segredo? Ouviria, não compreenderia bem; se o quisesse contar a outrem as palavras me faltariam. Certo disso e de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem uma forma de elegância, quase espontaneamente, pus-me a lhe narrar a minha desventura:
— Dói-me, sim! Dói-me muito. É o demônio que me persegue, é o perverso desdobramento da minha pessoa. É uma companhia má, amarga, tenaz que me esporeia e que me retalha. Ela vai junto a mim, bem junto, no caminho que trilho, haja luz ou haja trevas, seja povoada ou deserta a estrada. Não me abandona, não me larga. Dorme comigo, sonha comigo; se me afasto um instante dela ela volta logo, logo, dizendo-me ao ouvido baixinho, com um cício cortante: estou aqui! É um símio irritante que me faz carantonhas e me vai às costas, pula na minha frente, dança, esperneia.
O ladrão tinha agora outra espécie de espanto: era o espanto das palavras, das altas palavras. A sua grosseria nativa, primordial, sem limitações de qualquer educação, ia por elas alto, entendendo-as a meio, seu espírito aguçava-se e penetrava melhor no meu.
— Se, em dia claro e azulado, continuei, vou por entre árvores, crendo-me só, e feliz, o miserável rafeiro que passa deixa a inexorável busca do osso descarnado, para olhar as caretas do símio em que me desdobro, e ri-se de mim, meio espantado, mas satisfeito. Então, como por encanto o caminho se povoa. Há por toda parte zumbidos, alaridos, risotas. Do farfalho das árvores ouço: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca? Os seixos rolam, crepitam, e na sua vileza não escolhem palavras, não ensaiam deboches, gritam: monstrengo, vergonha da terra.
O gatuno analisava-me a fisionomia. Detinha-se nos meus olhos, no meu nariz, nos meus lábios, até as minhas mãos, os meus pés mereceram a análise do seu olhar inquieto. Foi por esse tempo que me lembrou reparar quem estava na minha frente. Era um homem alto, de largas espáduas, membrado, e que em “sotaque” espanhol, me falou ainda:
— Tu és poeta. Fantasias... Vês demais.
— Talvez que a minha sensibilidade... Mas não, não! Meu organismo não mente, fala a verdade: é como o microscópio a descobrir um mundo hostil onde nada se vê, retorqui eu...
— Não andas por aí, pelos teatros, pelos cafés — como então é possível isso? inquiriu ele.
A pergunta me atrapalhava; era da minha natureza, estas contradições ostensivas, entretanto pude lhe responder:
— É verdade..., mas palmilho tais lugares escravo do meu gênio, servo dos meus sentidos, que são inimigos do meu corpo; posso fugir deles, mas muito me custa seguir o curso imperioso dos meus nervos. Não sei... Não sei... Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de cabelos azuis, o homem de dentes negros... É um suplício!
Tudo se apaga em mim. Isso unicamente brilha. Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros... Os meus sonhos, as minhas leituras são povoados pelos momos do símio. Se escrevo e faltam sílabas nas palavras, se estudo e não compreendo logo, o sagui salta-me na frente dizendo com escárnio: — fui eu que a “cumi”, fui eu que não te deixei compreender...
Meu peito arfava, meus olhos deviam brilhar desusadamente. A animação passava de mim ao ouvinte. Ele todo vibrava às minhas palavras...
— Mas trabalha, sê grande... combate, aconselhou-me.
— Bom conselho, bom... Ah! Como és mau estrategista! Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao instituído, podia... Agora... não posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me. Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso. Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um senhor de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa, anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza — esse berra alto, muito alto:
“Posso lhe afirmar que é um degenerado, um inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças bastardas, desprezíveis de estrutura física; vinte mil sábios alemães, ingleses, belgas, afirmam e sustentam”... Assim vivo. É como se todo dia, delicadamente, de forma a não interessar os órgãos nobres da vida, me fossem enterrando alfinetes, um a um aumentando cada manhã que viesse... Até quando será? Até quando? fiz eu exuberante.
Uma rajada mais forte do vento que soprava quase apagava o combustor próximo. Ao cantar dos galos já se juntava a bulha do rolar de carroças na rua próxima. O subúrbio ia despertar.
Despedi-me do salteador. Andara alguns passos e como me parecesse que me chamavam, voltei-me e dei com a figura retangular do ladrão, agitando-se ao meneio de sua cabeça, como a venerável bandeira de misericórdia das execuções.
Pelos anos em fora, pelos dias iguais e monótonos que minha vida presenciou, mais fundo que essa incurável mágoa muito sofrida na mocidade, doeu-me à minha alma mais, muito mais a sincera piedade que inspirei àquele homem.
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Notas: (Versos de “Elévation”, de Charles Baudelaire.)
*Além do sol, além dos éteres, Além dos confins das esferas estreladas, –
**Abençoado é aquele que pode com uma asa vigorosa
Elevar em direção aos campos brilhantes e serenos;
Aquele cujos pensamentos, como cotovias,
Em direção aos céus pela manhã voam livremente,
- Que paira sobre a vida e compreende sem esforço
A linguagem das flores e das coisas silenciosas!
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
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