— ESTOU numa situação meio complicada.
Levantei os olhos: eu acabara de entrar na livraria, e do outro lado de uma pilha de livros um rapazinho de ar modesto conversava com um senhor bem vestido.
— Situação complicada como? Que foi que aconteceu com você?
— O senhor não pode imaginar.
— Nem que eu quisesse não poderia. Conte logo, rapaz.
— Estão me acusando de roubo.
O outro ficou calado, mas como o rapaz também se calasse, repetiu, sacudindo a cabeça:
— Sim. Estão te acusando de roubo. E daí?
— De roubo — tornou o rapaz, mais veemente agora: — Veja o senhor que situação.
— E que foi que você roubou?
— Eu não roubei nada! O senhor acha que eu era capaz?
— Não acho nada. Estou só perguntando. Você mesmo é que disse.
— Eu disse que estão me acusando de ter roubado — o rapaz reagiu com firmeza.
— Muito bem. Estão te acusando de ter roubado o quê?
— Um relógio.
— Um relógio? Conte essa história direito.
— Foi num trem da Central. Eu ia para Madureira, onde moro. Quando saltei na estação um sujeito passou correndo e largou qualquer coisa na minha mão: era o relógio.
— Que relógio?
— O relógio roubado do pulso de um sujeito que estava cochilando. Só falou assim: segura isso, meu chapa — e saiu correndo.
— Meu o quê?
— Meu chapa. Foi o que ele disse. Era um crioulo alto, assim do tamanho do Didi, só que diferente ...
— Que Didi?
— O Didi, jogador de futebol. Se eu encontrar sou capaz de reconhecer ele.
— Está bem, mas conte o resto da história.
— Pois foi assim como estou contando: quando vi, os outros estavam me segurando. Até em linchar eles falavam. Me levaram para o Distrito, fui fichado como punguista, veja o senhor.
— Quando foi isso?
— Na semana passada. Fizeram o diabo comigo lá no Distrito, para que eu confessasse. Até no pau-de-arara me botaram. Confessar o quê? Acabaram me soltando, mas agora andam dizendo que vou ser processado.
— Quem anda dizendo?
— Um investigador lá, que arranjou para me soltarem. Diz ele que ainda tem jeito de abafar o caso.
— E o que você quer de mim? O caso já não está abafado?
— Eu queria só que o senhor me desse um atestado, qualquer coisa assim. Já trabalhei para o senhor, afinal o senhor me conhece, sabe que eu nunca fui de coisa nenhuma.
— Mas filho, como é que eu posso atestar sua conduta, se até ficha na Polícia você já tem?
— Eu não tinha não, agora é que eles fizeram.
— Eu sei, mas a título de que eu vou recomendar você à própria Polícia?
— Me recomendar então para algum emprego... Qualquer coisa serve. Só pra mostrar que eu não sou ladrão.
— Uma recomendação, nessas condições, não teria nenhum valor.
— Então o senhor não pode fazer nada por mim.
— Nada. Lamento muito.
O rapaz ficou calado um instante, mordendo o lábio e sacudindo a cabeça. Depois se despediu e saiu. O outro voltou-se e perguntou ao empregado da livraria quanto custava, em edição Plêiade, a “Comédia Humana”, de Balzac.
Levantei os olhos: eu acabara de entrar na livraria, e do outro lado de uma pilha de livros um rapazinho de ar modesto conversava com um senhor bem vestido.
— Situação complicada como? Que foi que aconteceu com você?
— O senhor não pode imaginar.
— Nem que eu quisesse não poderia. Conte logo, rapaz.
— Estão me acusando de roubo.
O outro ficou calado, mas como o rapaz também se calasse, repetiu, sacudindo a cabeça:
— Sim. Estão te acusando de roubo. E daí?
— De roubo — tornou o rapaz, mais veemente agora: — Veja o senhor que situação.
— E que foi que você roubou?
— Eu não roubei nada! O senhor acha que eu era capaz?
— Não acho nada. Estou só perguntando. Você mesmo é que disse.
— Eu disse que estão me acusando de ter roubado — o rapaz reagiu com firmeza.
— Muito bem. Estão te acusando de ter roubado o quê?
— Um relógio.
— Um relógio? Conte essa história direito.
— Foi num trem da Central. Eu ia para Madureira, onde moro. Quando saltei na estação um sujeito passou correndo e largou qualquer coisa na minha mão: era o relógio.
— Que relógio?
— O relógio roubado do pulso de um sujeito que estava cochilando. Só falou assim: segura isso, meu chapa — e saiu correndo.
— Meu o quê?
— Meu chapa. Foi o que ele disse. Era um crioulo alto, assim do tamanho do Didi, só que diferente ...
— Que Didi?
— O Didi, jogador de futebol. Se eu encontrar sou capaz de reconhecer ele.
— Está bem, mas conte o resto da história.
— Pois foi assim como estou contando: quando vi, os outros estavam me segurando. Até em linchar eles falavam. Me levaram para o Distrito, fui fichado como punguista, veja o senhor.
— Quando foi isso?
— Na semana passada. Fizeram o diabo comigo lá no Distrito, para que eu confessasse. Até no pau-de-arara me botaram. Confessar o quê? Acabaram me soltando, mas agora andam dizendo que vou ser processado.
— Quem anda dizendo?
— Um investigador lá, que arranjou para me soltarem. Diz ele que ainda tem jeito de abafar o caso.
— E o que você quer de mim? O caso já não está abafado?
— Eu queria só que o senhor me desse um atestado, qualquer coisa assim. Já trabalhei para o senhor, afinal o senhor me conhece, sabe que eu nunca fui de coisa nenhuma.
— Mas filho, como é que eu posso atestar sua conduta, se até ficha na Polícia você já tem?
— Eu não tinha não, agora é que eles fizeram.
— Eu sei, mas a título de que eu vou recomendar você à própria Polícia?
— Me recomendar então para algum emprego... Qualquer coisa serve. Só pra mostrar que eu não sou ladrão.
— Uma recomendação, nessas condições, não teria nenhum valor.
— Então o senhor não pode fazer nada por mim.
— Nada. Lamento muito.
O rapaz ficou calado um instante, mordendo o lábio e sacudindo a cabeça. Depois se despediu e saiu. O outro voltou-se e perguntou ao empregado da livraria quanto custava, em edição Plêiade, a “Comédia Humana”, de Balzac.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
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