sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Murilo Rubião (“Os Dragões”) Análise do Conto

Artigo de Vinícius Ferreira dos Santos (UEL)*


Antes de iniciar a análise do conto “os dragões” de Murilo Rubião, faz-se necessário entender as definições sobre o fantástico e sua relação com a ideia do real. O gênero fantástico lida com uma causalidade narrativa que não é atestada no real. O termo fantástico (do latim phantastica e antes do grego phantastikós) aponta para algo que é criado pela imaginação, que não existe na realidade.

A constituição do real tem características arbitrárias e é constituído pelo referencial do leitor: “Seus valores culturais, que se atualizam através da história, forjam padrões de julgamento (juízo) que caracterizam os aspectos normativos” (SCHWARTZ, 1981, p.54). Para tanto, o fantástico transpassa o universo do concreto, do real e do cotidiano, residindo a partir da linguagem.

Murilo Rubião “trazia em seu estilo as tintas do gênero” que, posteriormente, seria chamado de literatura fantástica. De escrita fácil, direta e inteligente seus contos invadem o espaço da fantasia para fazer uma crítica sutil à sociedade.

É notório nos contos de Murilo Rubião epígrafes bíblicas, especificamente, do antigo testamento, ele não as usa por seu sentido religioso, mas como chaves de leitura ou ampliação de sentido das narrativas.

No conto “Os Dragões” a epígrafe remete ao livro bíblico de Jó, capítulo 30 versículos 29 “Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes”. Tanto os dragões presente na epígrafe, quanto no conto, representam na cultura judaica uma literatura descritiva do mundo animal ligados a Jó - assim como monstros, corujas e dentre outros. Desse modo, os dragões que foram inseridos no texto possuiriam um caráter de estranhamento e desconhecido, e sendo assim não são aceitos pela sociedade. Os dragões representam uma idealização do bem e do mal e comumente eles têm uma energia que é criadora e outra destruidora.

Vale destacar que, os dragões, no conto cumprem uma função na sociedade que estimula o preconceito e a intolerância na comunidade que se instala. “Poucos souberam compreendê- los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer” (RUBIÃO, 1998). O ser humano necessita de uma história e de um contexto para compreender-se enquanto ente no mundo, enquanto, os dragões, são sujeitos históricos e sem contexto, por isso sofrem preconceitos de algumas pessoas da sociedade, pois, uma comunidade que é tradicional tem dificuldades de aceitar o que é diferente ao seu redor.

Apenas as crianças não se importaram com a presença dos dragões na comunidade, talvez por não serem influenciadas pelo modo de pensar dos adultos: “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões” (RUBIÃO, 1998).

Fazendo uma correlação com o conto “Teleco o coelhinho”(1) que tem como base as transformações repentinas do coelhinho em outros animais, que nos mostra a sua tentativa de adaptação a este mundo, no qual já não são tão comuns valores como a pureza e a bondade. Teleco que queria tanto ser humano torna-se no fim de sua vida, sem dentes e encardido. Neste momento do conto o narrador obriga os leitores a enxergar de fato que a imperfeição rege a vida humana.

A partir dessa análise foi possível constatar que tanto “Os Dragões”, quanto o “Teleco, o coelhinho” os personagens representam um elemento simbólico na narrativa que não é atestada no real, mas que causa estranheza e faz com que o leitor remeta a ideia do mundo real.

Com a chegada das criaturas na pequena cidade, muitas teorias foram discutidas pela população. Primeiro o vigário: que acreditava serem dragões enviados do demônio. Já o velho gramático negava “a qualidade de dragões, “coisa asiática de importação europeia”. Enquanto o jornalista via nas criaturas monstros antediluvianos, referindo-se ao dilúvio e a arca que figuram do Antigo Testamento.

Após o abandono dos dragões, por não terem serventia para a população, o personagem narrador, um professor, decide alfabetizá-los e dar-lhes um nome. Porém, era sabido por ele que eram dragões e deveriam ser tratados como tal. Muitos, assolados por moléstias e doenças provenientes dos homens, vieram a falecer, ficando apenas dois “infelizmente os mais corrompidos”: João e Odorico.

Ao serem perguntados sobre o passado, ambos não se lembravam, a não ser sobre a entrada na cidade: “Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha”. Tanto “montanha” quanto “precipício” são figuras que ecoam no Antigo Testamento. A primeira é lembrada enquanto fortaleza, protegida por Deus e simboliza segurança; e a segunda sinaliza perigo, devido à profundeza onde habita o desconhecido.

A preocupação maior do professor é a iniciação à maioridade de João: “João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade”. O fogo remete a figurações dúbias: pode significar tanto uma força criatura quanto destruidora; e pode, também, significar a iluminação pela sabedoria e purificação da compreensão; já a destruição de Sodoma e Gomorra, presente no livro de Gênesis no Antigo Testamento, foi a partir do fogo e do enxofre.

A presença de subtextos bíblicos também remete a uma possível finitude da cidade no conto: “Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município [...]”. No conto, os habitantes esperam a chegada de outros dragões, talvez por já estarem condenados ao fim. Enquanto a já referida cidade bíblica fora condenada a destruição, a cidade de “Os Dragões” é condenada a eternidade, dando esse caráter de reiteração, voltando assim novamente à epígrafe.

O subtexto bíblico parece revelar um paradoxo que acompanha a maioria dos contos de Murilo Rubião. Ao que tudo indica, ao preferir a eternidade na própria vida, nega a integridade católica, amplamente difundida na cultura da América-Latina.
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Fonte:
* Anais do X SEPECH - Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas da UEL. 2014. (Seminário). p. 733 a 743.

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