sábado, 6 de maio de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “05”

 

Machado de Assis (Salteadores da Tessália)

Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure.

Tal era a reflexão que eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia, até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra.

Repito, que me trariam os diários? As mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de Varsóvia, os Mistérios de Paris, a Lua de Londres, o Carnaval de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas colunas abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer o que liam. Julgai por vós mesmos.

Antes de ir adiante, é preciso saber a ideia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é com ele.

Dadas estas noções elementares, imaginai com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas: "Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a província da Tessália." Dou-vos dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a notícia; e, se vos acomodais da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante acumulação. Chamai bárbara à moderna Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.

Sim, essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas horas da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsídio, não é comum, nem rara, é única. As instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrário, quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regime das câmaras difere pouco, e, ainda que difira muito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul* Catão e Caco. Há alguma coisa nova debaixo do sol.

Durante meia hora fiquei como fora de mim. A situação é, na verdade, aristofanesca. Só a mão de grande cômico podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A folha que dá a notícia, não conta nada da provável confusão de linguagem que há de haver nos dois ofícios. Quando algum daqueles deputados tivesse de falar na câmara, em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa, agredindo um viajante, pedir-lhe-ia dois minutos de atenção. E nada ficaria, em absoluto, fora do seu lugar; com dois minutos de atenção se tira o relógio a um homem, e mais de um na câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso.

Mas, por todos os deuses do Olimpo! Não há gosto perfeito na terra. No melhor da alegria, acudiu-me à lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma coisa semelhante à notícia. Corri a ele; achei a cena dos maniotas, que ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não desse uma pequena quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local. About chega, ameaça por sua vez os homens, e, para assustá-los, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recomendação. "Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo: Conheço muito, é dos nossos."

Assim, pois, nem isto é novo! Já existia há quarenta anos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira vez que ele se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dois ofícios discretamente. Fiquei triste. Eis aí, tornamos à velha divisão de classes, que a terra de Homero podia destruir pela forma audaz de Talis. Aí volta a monotonia das funções separadas, isto é, uma restrição à liberdade das profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, pode ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas operações diversas, e a diversidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha ilusão de um instante! Tudo continua a ser velho: nihil sub sole novum.

Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condenem os demais se querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um funcionário duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hélade deite os ministérios abaixo, se lhe apraz, mas não atire às águas do Eurotas um elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este modernismo, que é outro turco, diferente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britânico para fugir à discussão da resposta à fala do trono. E repare que não há, entre os seus poemas, nenhum que se chame O presidente do conselho, mas há um que se chama O Corsário.
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* curul diz-se de ou cadeira portátil, dobrável, de pernas curvas e incrustada de marfim, reservada na Roma antiga ao uso dos mais altos dignitários (censores, cônsules, ditadores, imperadores etc.), símbolo do poder judiciário.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
A Semana - Gazeta de Notícias - 26/11/1893.

Antero Jerónimo (Poemas avulsos)

Abracei-te 
com os meus olhos
absorvi o teu brilho 
o teu sorriso 
a doçura desse menear
bebi e saboreei 
cada palavra
cada gesto
cada contorno sedutor
na volúpia do poema
que alimenta os sentidos
embriagado de ti
sorrio para mim
num sorriso que se alinha
com um rasto imaginário
um rasgo de inspiração
que dá mais sentido à vida.
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Arquiteto-me nas palavras
e de sensações me construo;
naquelas onde preencho os alicerces
e edifico a coragem para me questionar.

Nas raízes das sombras profundas
brotam resistentes e maturados caules 
libertando alvas pétalas de esperança.

O poema resistirá às intempéries temporais.
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DÁ-ME UM ABRAÇO

Dá-me um abraço
Que seja espaço bem estreitado
Onde apenas caiba a sintonia de vontades

Dá-me um abraço
Que recomponha formas quebradas
Das vicissitudes que nos atropelam a alma

Dá-me um abraço
Que seja singelo na sua inocência
Não corrompido pela rudeza da indiferença

Dá-me um abraço
Que seja corrente de seiva unificada
Palpitando no aconchego do seio apaziguador

Dá-me um abraço
Que seja pele, amor e poema
Um abraço onde caibam todos os silêncios.
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Defensor da Humanidade
tu que furtaste o fogo celestial
provocando a ira divina

Desamarra-me da lógica enfadonha
destes dias em que me enleio

Deste relógio que nos acorrenta
ao rochedo da abnegada complacência

Que nos debica,
implacavelmente
até à mais ínfima porção

Nesta vontade resiliente
de resistir à opressão.
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MEMÓRIA ADORMECIDA

A revolta corrói por dentro, intensa
no corpo cansado de reprimir
mastigam-se côdeas de desespero no resistir
no dizer não ao sobreviver de sentença
a liberdade atraiçoada em desumana condição
moldes em série de vontades amordaçadas
verdades construídas sobre mentiras subornadas
o cravo encimando espingardas é disforme ilusão
a ignomínia promessa já não cabe nesta hora
aviva as frias cinzas repletas da nossa história
corpo adormecido ergue pensamento d’outrora
onde a coragem encheu páginas de glória.
Acorda breve que o dia já demora
ó Corpo de Gente, adormecido na memória.
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O amor conquista.
A saudade resiste.

Conquistar é ter asas na imaginação
Resistir é ter uma couraça no coração

O amor, qual casa de portas e janelas abertas
A saudade bate fundo em horas incertas

O amor persegue um ideal, de pureza
A saudade resguarda-se, indiferente, na tristeza

O amor é um farol a indicar o caminho
A saudade caminha por entre sombras de mansinho

A saudade não é mais do que a prova provada
De que o amor é marca indelével no tempo.
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Seduz-me
àquele ponto
em que as vestes tentadoras
tombam no chão sem pudor
Seduz-me
enquanto feixes de luz
moldam lascivamente os teus contornos
incendiando meu olhar de tentação
Seduz-me
com aquele poder
que tu dominas com mestria
de cada gesto ser um convite ousado
alimentares em mim o teu desejo alado
Seduz-me
tira tudo de mim
eleva-me ao teu altar
e saboreia cada trago
nesse cálice de ressurreição.
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TENTAÇÃO

Quero
que me surpreendas
me tires o chão
e me prendas

que me soltes as amarras
me dispas de preconceitos
nesse teu jeito

que me envolvas
num círculo viciante
sem afrouxar

que me bebas
até à última gota
da vertical tentação

que me sorrias
com os lábios febris
de orvalhada satisfação.
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QUADRIVERSOS DIVERSOS

Artesão de silêncios 
é tão simplesmente 
aquele que aprendeu a arte
de acertar os ponteiros do tempo.
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A saudade são alvos fiapos 
dependurados na imensidão 
do pensamento, nesse lugar
onde a lembrança se faz eterna.
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Em promessa de renovado acreditar
à luz da ressurreição da palavra 
a natureza veste-se de singelo milagre
na fé que absolve o espinho dos dias.
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Existem capítulos felizes 
de livros que já não lemos,
mas que guardamos religiosamente,
na biblioteca de nossa existência.
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Inebria-se o olhar 
preso ao fogo ardente dos lábios
estilhaçando os contornos da lucidez
onde se reveste o meu corpo trémulo.
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Saibamos sabiamente costurar
com o fio resistente da humanização
um mundo em vontades dilacerado
pela imprudente cegueira da ambição.

Fonte:
– Página do poeta no facebook: Na Pele do Sentir. https://www.facebook.com/antero.jeronimo.autor

Hans Christian Andersen (O elfo da rosa)


No meio de um jardim nasceu uma roseira, em plena floração, e na mais bela das rosas vivia um elfo. Ele era uma criatura tão pequenina, que nenhum olho humano podia vê-lo. Atrás de cada folha da rosa ele tinha um lugar onde ele dormia. Ele tinha uma perfeita constituição como toda criança linda pode ter, e tinha asas que iam dos ombros até os pés. Oh, que deliciosa fragrância havia nos quartos onde ele dormia! E como as paredes eram limpas e belas, pois eram as folhas mais vermelhas da rosa.

Durante o dia todo ele adorava passar o tempo sob a luz do sol, voava de uma flor a outra, e dançava sobre as asas das borboletas enquanto voavam. De repente, ele resolveu contar quantos passos ele teria que dar para atravessar os caminhos e os cruzamentos que haviam numa folha de um pé de tília. Aquilo que chamamos de veias da folha, ele entendia como sendo caminhos que ele tinha de percorrer e, aí, eram caminhos muito longos para ele, pois, antes que tivesse terminado metade de sua tarefa, o sol já tinha ido embora: ele havia começado o seu trabalho tarde demais. Começou a ficar frio, o orvalho já estava caindo, e o vento soprava forte, então ele achou que o melhor que ele teria a fazer seria voltar para casa. Ele se apressou tanto quanto pode, mas descobriu que todas as rosas já haviam se fechado, e ele não conseguiu entrar, nenhuma rosa estava aberta.

O pobre do elfo ficou muito assustado. Ele nunca havia ficado fora durante a noite, mas sempre tirava uma soneca escondido atrás das aconchegantes folhas das rosas. Oh, isso com certeza poderia ser a morte para ele. Na outra extremidade do jardim, ele sabia que havia um caramanchão, coberto com lindas madressilvas. As flores eram semelhantes a grandes chifres decorados, então, ele pensou consigo mesmo, que ele iria dormir em cima de uma delas até o amanhecer. Ele voou até lá, porém, "façam silêncio" duas pessoas estavam no caramanchão — um jovem belo e garboso e uma encantadora mulher. Eles se sentaram lado a lado, e desejavam jamais terem de se separar. Eles se amavam muito mais do que uma linda criança pode amar seu pai e sua mãe.

"Mas nós temos que nos separar," disse o jovem, "o seu irmão não apoia o nosso namoro, e por isso ele me mandou para longe a negócios, para além das montanhas e dos mares. Adeus, minha querida noiva, pois é isso o você que significa para mim."

E então se beijaram, e a garota chorou, e lhe ofereceu uma rosa, mas, antes de fazer isso, ela deu um beijo tão ardente na rosa que a flor se abriu. Então o pequeno elfo voou correndo para dentro, e encostou sua cabecinha nas paredes delicadas e perfumadas da flor. Ali, ele pode ouvir claramente quando eles disseram: "Adeus, adeus," e ele sentiu que a rosa tinha sido colocada no peito do jovem. Oh, como o seu coração batia forte! O pequeno elfo não conseguia dormir, porque o coração dele batia forte demais. O jovem retirou a flor ao caminhar sozinho pela floresta, e a beijava muitas vezes e com tanto ardor, que o pequeno elfo quase era esmagado. Ele podia sentir através da folha como eram ardentes os lábios do jovem, e a rosa se abriu, como se fosse o calor do sol do meio dia.

Eis que veio um outro homem, que tinha um aspecto sombrio e malvado. Ele era o perverso irmão da bela jovem. Ele sacou uma faca afiada, e quando o jovem apaixonado estava beijando a rosa, o homem impiedoso o apunhalou até a morte, depois ele cortou a cabeça e a sepultou junto com o corpo sob a terra macia debaixo de um pé de tília.

"Agora ele não existe mais, e logo será esquecido," pensou o irmão malvado, "ele nunca mais voltará. Ele está fazendo uma longa viagem para além das montanhas e dos mares, é fácil para um homem perder a vida em viagens desse tipo. Minha irmã irá acreditar que ele morreu, pois, ele não pode voltar, e ela não ousará duvidar de mim sobre o que aconteceu."

Então, ele espalhou, com seus pés, folhas secas sobre a terra fofa, e voltou para casa no meio da escuridão, mas ele não voltou sozinho, como ele pensava, — o pequeno elfo o acompanhou. Ele estava sentado numa folha de tília enrolada, que havia caído da árvore sobre a cabeça do homem malvado, quando ele estava cavando a sepultura. O chapéu estava em sua cabeça agora, o que deixava tudo escuro, e o pequeno elfo tremia de medo e indignação com o ato impiedoso.

Era o início da manhã, e o homem perverso ainda não havia chegado em casa, ele tirou o chapéu, e se dirigiu até o quarto da sua irmã. Lá estava a garota bela e exuberante, sonhando com aquele a quem amava tanto, e que estava agora, assim pensava ela, viajando para longe, para além das montanhas e dos mares. Seu irmão impiedoso parou diante dela, e sorria por dentro, como somente as pessoas más sabem rir. A folha caiu de seus cabelos sobre a colcha, sem que ele percebesse, e ele saiu para dormir um pouco durante as primeiras horas da manhã. Foi aí que o elfo escorregou da folha seca, e foi parar no ouvido da garota que dormia, e contou para ela, como num sonho, tudo sobre o terrível crime, e descreveu o lugar onde o seu irmão havia matado aquele a quem ela amava, sepultando depois, o seu corpo, e lhe falou também do pé de tília, todo florido, que havia ali.

"E para que você não pense que este foi apenas um sonho que eu lhe contei," disse ele, “você encontrará em sua cama uma folha seca."

Então ela acordou, e encontrou a folha seca. Oh, quantas lágrimas amargas ela derramou! E ela não conseguia abrir seu coração para ninguém para se consolar.

A janela ficou aberta o dia todo, e o pequeno elfo poderia ter ido facilmente até uma das rosas, ou qualquer outra flor, mas em seu coração ele não poderia deixar alguém tão aflito assim. Perto da janela crescia um arbusto que produzia rosas todos os meses. Ele se sentou em uma das flores, e ficou olhando a pobre garota. O irmão dela várias vezes ia até o quarto, e ela teria ficado muito feliz, não fosse atitude covarde dele, então, ela não ousava dizer nem uma palavra para ele sobre a dor que lhe ia no coração.

Assim que a noite chegou, ela saiu de casa sem que ninguém visse, e caminhou até a floresta, no lugar onde ficava o pé de tília, e depois de remover as folhas secas da terra, ela retirou a terra e ali encontrou aquele que havia sido morto. Oh, como ela chorava e rezava para que ela também pudesse morrer! Teria ficado feliz em levar o corpo para casa com ela, mas isso era impossível, então, com os olhos fechados, ela pegou a cabeça, beijou os lábios frios, e sacudiu a terra dos lindos cabelos.

"Vou ficar com esta cabeça," disse a jovem, e assim que cobriu o corpo novamente com terra e as folhas, ela pegou a cabeça e um pequeno ramo de jasmim que florescia no meio da mata, perto do lugar onde o corpo havia sido sepultado, e os levou para casa com ela. Assim que ela entrou em seu quarto, ela pegou o maior vaso que ela conseguiu encontrar, e nele colocou a cabeça do homem que amava, cobriu-o de terras e plantou o galho de jasmim dentro do vaso.

"Adeus, adeus," sussurrou o pequeno elfo. Ele não conseguia mais suportar a visão daquela cena de dor, e foi voando até a sua rosa no jardim. Mas a rosa havia murchado, apenas algumas folhas secas ainda estavam penduradas na cerca viva que ficava atrás dela.

"Oh, meu Deus!, porque será que tudo que é belo e bom dura tão pouco," suspirou o elfo. Depois de algum tempo ele encontrou uma outra rosa, onde ele passou a viver, pois, no meio de suas folhas delicadas e perfumadas ele poderia viver com segurança. Todas as manhãs ele voava até a janela do quarto da pobre garota, e sempre a encontrava chorando perto do vaso de flores. As lágrimas amargas caíram sobre o ramo de jasmim, e todos os dias, a medida que ela ia ficando cada vez mais pálida, o ramo parecia ir ficando cada vez mais verde e mais fresco. Uma gota após a outra ia caindo, e os pequenos botões brancos começaram a florescer, os quais a pobre garota beijava com muito carinho. Mas o irmão malvado ralhava com ela, e lhe perguntou se ela estava ficando louca. Ele não conseguia imaginar porque ela estava chorando sobre o vaso de flores, e isso o aborrecia.

Ele jamais poderia imaginar que olhos fechados haviam sido colocados ali, nem que lábios rubros estavam se decompondo debaixo da terra. E um dia ela se sentou e encostou a cabeça no vaso de flores, e o pequeno elfo da rosa viu que ela estava dormindo. Então, ele se sentou perto do ouvido dela, e falou para ela sobre aquela noite debaixo do caramanchão, sobre o doce perfume da rosa e os amores dos elfos. Ela se entregou totalmente ao sonho, e enquanto sonhava, sua vida ia passando calma e suavemente, e o espírito dela ia com aquele a quem ela amava, no céu. E o jasmim abriu suas sépalas grandes e brancas, exalando uma deliciosa fragrância, pois ele não tinha outra maneira de demonstrar a sua dor pelos que se foram. Mas o irmão malvado achou que a flor bela e exuberante fosse propriedade sua, e que a sua irmã havia a deixado para ele, e ele a colocou em seu quarto, perto da sua cama, porque ela era encantadora na aparência, e a fragrância doce e deliciosa.

O pequeno elfo da rosa acompanhava tudo, e voava de flor em flor, e contava para todos os espíritos minúsculos, que moravam dentro delas, a história do jovem que fora assassinado, e cuja cabeça agora fazia parte da terra que estava debaixo deles, e sobre o irmão perverso e a sua pobre irmã. "Nós já sabíamos," disse cada pequeno espírito das flores, "nós já sabíamos, porque fomos gerados dos olhos e dos lábios daquele que morreu. Nós já sabíamos, já sabíamos," e as flores balançavam suas cabeças de maneira peculiar. O elfo da rosa não conseguia entender como eles poderiam estar tão tranquilos diante daquela situação, então ele voou até as abelhas, que estavam coletando mel, e contou para elas sobre o irmão malvado.

E as abelhas contaram isso para a rainha delas, a qual ordenou que na manhã seguinte eles fossem e matassem o criminoso. Mas, durante aquela noite, que era a primeira depois que ele havia morrido, enquanto o irmão dela estava deitado na cama, perto da onde ele havia colocado o perfumado jasmim, todos os cálices das flores se abriram, e como seres invisíveis que eram, os pequenos espíritos saíram, armados com suas lanças envenenadas. Eles se posicionaram ao lado do ouvido do dorminhoco, e contavam para ele histórias assustadoras e depois foram voando até os lábios dele, e picaram a língua dele com suas lanças envenenadas. "Agora nós vingamos o morto," disseram eles, e voaram de volta até as sépalas brancas das flores do jasmim. Quando a manhã chegou, e assim que a janela foi aberta, o elfo da rosa, junto com a abelha rainha, e todo o enxame de abelhas, correram para matá-lo.

Mas ele já estava morto. Haviam pessoas ao redor da cama, e dizendo que o cheiro do jasmim o havia matado. Então, o elfo da rosa entendeu a vingança das flores, e explicou isso para a rainha, e ela, bem como todo o enxame, começaram a zumbir em torno do vaso de flores. As abelhas não poderiam ser expulsas. Então, um homem resolveu afugentá-las, e uma das abelhas o picou na mão, ele deixou cair o vaso de flor, e o vaso se partiu em pedaços. Foi aí que todos viram a caveira branca, então eles descobriram que o homem que estava morto na cama era o assassino. E a abelha rainha zumbia no ar, cantarolando a vingança das flores e do elfo da rosa, e disse que atrás das folhas mais minúsculas existe um Elfo, que consegue descobrir as maldades, e também pune quando necessário.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 19 de maio de 1839.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VI


Parece, à primeira vista, que eu passaria mal na cabeça de um boticário porque, se houvesse quem receitasse piolhos para alguma icterícia, não ficaria piolho vivo nas cabeças de casa. Mas onde os outros julgam o mal, aí é que eu achei o remédio. Boticário jamais dá o que se lhe pede. Por isso mesmo sempre vendem gato por lebre e nunca lhes falta nada na botica. Suponhamos nós que o Médico receitava piolhos. Que fazia ele? Ia ao leito, apanhava percevejos e analisava, dizendo: —Tanto é bicho o piolho como o percevejo. Com que se sustenta o piolho? Com sangue. Que faz o piolho? Morde. E o percevejo, que faz? Também morde. E demais, se o piolho é balsâmico, o percevejo não só o é mas também odorífero. O piolho morre, o percevejo remoça. O piolho é triste, o percevejo é alegre. A cor deste é muito mais bonita que a daquele. E concluía: — O percevejo anda por leitos recamados de ouro e damasco e quando chega lá um piolho? Nunca.

No tempo dos porcos, era o meu São Martinho, porque, como o boticário fazia banha, andava sempre limpando as mãos à cabeça. Mas esta lambição ia-me dando que entender, porque uma vez que tinha lidado com os pós de Joanes, limpou também as mãos. Eu fui muito abelhudo, parecendo-me grangeia (drágea). Por um nada que os não como. O que valeu foi ter tido uma indigestão na véspera e entrar no receio de comer coisa doce, porque eu, a este tempo, já me sabia curar a mim próprio pela prática de todos os dias estar ouvindo casos e decisões sobre a Medicina, principalmente a um que era a vera efígie do Doutor Sangrado.

Ele estava justo com o boticário. Repartiam os ganhos, à exceção do defunto. E o tal amigo era tão hábil na tal nigromancia de curar que teve a habilidade de receitar trinta e três receitas para um que já estava morto havia trinta e três horas, dizendo à gente da casa que era um acidente interior mas que ainda podia tornar a si e que os remédios eram para o fim de que o acidente saísse do interior para fora, o que nunca saiu. Foi com ele à cova.

Tinha também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes? — Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê, antes de eu o curar, via-as? — Não senhor.

—Então para que se queixa, se vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.

Na verdade um homem como este nunca havia de morrer. Tinha muitas receitas particulares e foi tão bruto que morreu sem deixar nenhuma aos parentes. Alguma, que se sabe, pilhou-se a dente. Também tinha uma para a espinhela caída, que era um pasmo. Fazia uma massinha e, em lugar de formar pílulas, fazia uma espinhela, secava-a, moía-a e, dissolvida em sal amoníaco, fazia-a beber ao doente, deitado da banda da espinhela. Ao fim de três horas tornavam os pós à sua primeira forma e eis o doente com uma espinhela nova. Compôs um Tratado para tirar dentes, em cinco livros de fólio, que ensinava o método de tirar as raízes sãs deixando os dentes podres de forma que, no seu bairro, ninguém tinha raízes. Um sujeito, para pôr umas de Quaresma no seu quintal, foi-lhe pedir licença. Também tinha ópio para todo o mundo. Quem queria dormir ia lá. Houve ali um sujeito que se queixava que havia quarenta dias que não pregava olho e ele, sem prego nem martelo, apresentou-lhe tanta quantidade de ópio que ainda hoje o não abriu. Todos os anos tinha um presente do coveiro da Freguesia pelo bem que lhe fazia. Nunca comprou pevide (semente) de melão e de melancia. Comprava as das abóboras que eram quase de graça e dizia: — Para que é amendoada? Para refrescar. Pois a abóbora é muito mais fresca.

Sabem com que ele quinava qualquer remédio? Com macela e nunca isso matou ninguém. Tinha um conhecimento de ervas que não lhe faltava senão comê-las. Uma vez que um médico receitou sal inglês para uma purga (laxante), exclamou ele: — Ó tempos! Ó costumes! Não se faz caso senão dos gêneros estrangeiros. Pois não há de ser assim. Fez a purga de sal português e o pobre doente esteve a beber água todo o dia. Sobreveio-lhe uma febre à noite e no outro dia foi para a Eternidade. Mas à portuguesa. Na verdade, tinha coisas muito galantes. Um remédio que ele tinha para defluxos ajudava-os a cair no peito e depois, então, é que os levantava, se podia. Também tinha um remédio para pólipos que, dentro de meio minuto, secava pela raiz pólipo e nariz. O que lhe valia era um amigo Poeta que tinha, que lhe os fazia depois de cera, para os doentes não ficarem com defeito.

Um dia, trazendo-lhe o tal duas dúzias deles, entrou o boticário a teimar que um não prestava e o Poeta a dizer que era o melhor. E pondo-lhe na cara, disse: — Para um homem assim da sua idade, com barrete na cabeça, está-lhe pintado. Que faz o boticário? Põe o nariz no Poeta, saca o barrete e põe-lhe também. Eu, que tinha estado a ouvir a conversação e morria, havia muito, por estar numa destas cabeças, passei muito depressa para o barrete e com o mesmo para a cabeça deste Virgílio, que é o assunto da Carapuça VII.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Coelho Neto (O Milagre)

Indo um homem à floresta lenhar, descobriu na broca de um tronco um ídolo grosseiro e logo, acendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e regressou contente à vila.

Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a notícia do achado e não faltaram presságios felizes, atribuindo o aparecimento da imagem a intuitos de mercês com que Deus queria premiar as pessoas.

Na tarde do mesmo dia, que foi de alegre alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o «santo», entre luzes e flores, sobre uma mesa forrada de linho alvo, avultava como uma tora apenas falquejada (desbastada). Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas e, como eram indistintas as feições do ídolo, cada qual o apelidou conforme a sua devoção, e foi assim que o santo teve vários nomes, prevalecendo, porém, o de “Senhor Aparecido”.

A nova propalou-se ás povoações vizinhas. Começaram as romarias e, com elas — porque a cabana não podia comportar a turba de devotos — veio a ideia de levantar-se uma capela, onde a imagem tivesse agasalho digno e todos a pudessem contemplar à vontade, pedindo-lhe o que pretendessem.

Não faltaram materiais nem obreiros e, pouco a pouco, ao som de cânticos, foram subindo os muros da capela.

Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de várias partes — cegos, febrentos, lázaros e paralíticos, todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas. 

O santo, sempre entre flores e luzes, parecia indiferente aos rogos dos infelizes.

Uma manhã, porém, certa velha que chegara, entrevada, pôde deixar o estrame (esteira de palha) em que jazia e, por seu pé, sem auxilio, dirigiu-se, entoando louvores, à cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a proclamar e a agradecer o milagre.

Tanto bastou para que se divulgasse, com maravilhosos detalhes, a notícia da cura espantosa. Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém, rezaram e prometiam, nunca mais houve quem saísse do seu grabato (catre), vendo, se era cego; ouvindo, se era surdo; caminhando, se era entrevado; livre da febre ou sem dores. 

Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia quem lhes respondesse “que a razão estava em eles não terem fé” e com isso os desgraçados resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama crescia.

Com a afluência dos devotos, o povoado desenvolvia-se, o seu comércio, que era mesquinho, tornou-se considerável, e à volta da capela, ergueram-se tendas de trabalho: o oleiro apolejando (amassando) o barro, o ferreiro malhando a bigorna, o carpinteiro acepilhando (aplainando) a tábua, o imaginário esculpindo cópias do “santo” que os devotos traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada de crivo e, como sempre chegavam famílias, iam os pedreiros edificando e as oficinas todas laboravam.

Apesar de não se ter realizado outro milagre depois do desentrave da velha, a romaria não cessava e se alguém, por desânimo, mostrava-se descrente, logo lhe citavam o caso da paralítica, descreviam os seus passos, diziam como chegara à cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçais de prata que ela mandara ao santo com um quadro em que estava miudamente referido o milagre sublime.

E assim, os mesmos que regressavam aos lares sem melhoras, faziam o louvor do santo “que curara a velha de uma paralisia de longos anos”. Outra cura não fez a imagem do santo que da cabana, passou ao altar-mor da capela, mas só com haver andado uma entrevada — benefício para o qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande faina, que se alguém, nas terras de longe, aludia á sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom maravilhado:

— “Não há santo mais milagroso!” E lá vinha a referência à paralítica.

Para milhares de desiludidos só havia aquele consolo, e esse bastava para manter a crença o prestigiar o santo. Como esse ídolo da floresta — a que se atribuiu milagre — quantos há de carne e osso que são potentados por terem tido a sorte de achar uma velha entrevada e de fé... que se levantou do estrame e proclamou a sua virtude.

Ídolos e homens... tudo está em criarem fama.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXI


A CARTA
(Lendo o Soneto A Carta Interrompida, de COLOMBINA - 1882-1963)

A carta interrompi. Ninguém resiste
que tanto amor acabe desprezado.
Meu mundo colorido ficou triste,
quando escrevi: está tudo acabado.

O trauma deste amor inda persiste,
— por que viver assim amargurado?
A minha mão se agita e ainda insiste
em terminar o show já começado...

Basta postar a carta já escrita,
tudo acabou, a vida é só desdita,
vou aprender viver no meu limite...

No envelope lacrado — quanto medo,
o correio há de levar o meu segredo,
mas o meu coração já não permite!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

AMOR SUPREMO

Meu coração recorda, emocionado,
o amor que norteou a minha vida,
e continua presente e bem guardado
na inspiração dos versos meus, querida.

Envolto nas lembranças do passado
preservo o que vivi, de fronte erguida.
Vou galopando pelo verde prado
onde a Esperança mora e faz guarida.

E enquanto o coração bater, sedento
vou prosseguir buscando o meu intento:
— continuar feliz por onde eu for.

Quero rever a Luz da madrugada
e despertar ao som da passarada
para viver, contrito, o nosso amor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

BARRA DO MENDES

Barra do Mendes no Sertão Baiano,
és bela, culta, forte e hospitaleira,
povo trabalhador, feliz e humano
em busca da amizade verdadeira.

A vitória de um povo veterano
na construção da paz alvissareira
garante que o progresso, soberano,
já chegou na cidade brasileira.

E quando chega alegre, o viajante,
ela oferece abrigo ao visitante
e as belezas do nosso Chapadão.

Eu quero te saudar, Barra do Mendes,
pelo denodo, fé e luz que acendes
nas glórias imortais de Militão*!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 
* Coronel Militão Rodrigues Coelho (1859 – 1919) obteve a emancipação de Barra do Mendes.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

CONSEQUÊNCIA

Brigamos sem motivo. Era Setembro,
o campo estava verde e havia flores.
O céu cheio de estrelas, eu me lembro,
e recordo também dos dissabores.

Bem alto ela me disse; "não sou membro
desta família que me trouxe dores.
Quero partir, não fico outro dezembro,
quero ter, pelo mundo, outros amores".

E partiu... Nada fiz, fiquei calado,
o silêncio, por certo, dá um jeito
e não carece de nenhum cuidado...

O tempo vai passando e quando a vejo,
ela disfarça a dor que vai no peito,
e eu finjo que não sinto mais desejo.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

ETERNA BUSCA

Nunca quis navegar por outros mares
que a vida, por acaso, me levou,
nem quis rezar também noutros altares,
pois tua imagem nunca me deixou.

Mas parti procurando outros pilares
para atracar do barco, o que sobrou,
porque no temporal dos meus azares
só saudade, no mundo, me restou.

E agora, já no fim desta procura,
confesso que não tive essa ventura
de esquecer, para sempre, a minha dor.

E tudo que busquei nesta jornada
se resumiu, talvez, num quase nada:
— felicidade, eu sei, só com amor.

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça V

Que cabeça! Que cabeça! Nunca me vi tão farto. Tudo andava untado. Se os piolhos tivessem ocupação, eu não tomava outra. E até mesmo para trazer a consciência desembaraçada. Ali não há que arranhar, é vender medida por medida. Compro uma canada. Vendo uma canada. E ainda às vezes se põem linhas de casa, pois todos sabem que nas medidas pequenas sempre há quebras. E então, que homem tão escrupuloso com que eu dei! Eu conto, para pintar e conhecerem a sua boa alma, um caso sucedido na sua loja.

Tinha um caixeirinho que era um ladronete (ladrão). E que fez para furtar ao povo? Na balança oposta à dos pesos, pos-lhe, pela banda de baixo, uma bolinha de cera no fundo e, como da outra banda ia o gênero, já se sabe que, quanto a bola pesava, tanto ele furtava em cada peso que vendia. Vai o tendeirinho da minha alma dar com o furto. Ora que lhe parecem que ele faria? Pois eu lhes digo: salta-me no caixeiro e fez-lhe confessar que tempo havia que ele fazia aquele furto. O mesmo confessa que havia cinco meses. Diz o patrão: — Pois não importa. Eu quero pagar o furto que tu fizeste ao público. Passa-me já essa bola de cera para a banda dos pesos e outro tanto tempo quero dar o de César a César. E, no mesmo instante, fez mudar a bola. Mas também mudou os pesos e continuou a pesar como dantes.

Numa cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a ser econômico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: — Quanto mais grandes são, mais gastam. Os queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro. Cebolas, era um pasmo! Ninguém fazia molhos com mais elegância. Tinha a habilidade de transformar o sebo em manteiga. Também se aquele não está no céu, mal por nós. Tinha a pachorra, só para fazer bem, de andar procurando ovos que estivessem chocos. Comprava-os a trinta réis a dúzia e vendia cada um por um vintém, quando muito por vinte e cinco, um ovo e um pinto.

Ouviu dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe areia e desta forma unia o asseio ao benefício. Nos feijões, seguia aquele ditado: Uma verde com uma madura. Comprava, por exemplo, os novos a oito tostões, os velhos a cruzado, misturava uns com os outros e vendia-os pelo mesmo que lhe tinham custado, isto é, a oito tostões. Não queria ganhar nada com o próximo e dava a razão, dizendo: — É alimento que só comem pobres.

Também dava crédito a alguns oficiais mecânicos. Mas não lhes vendia os gêneros por mais que os vendia aos outros. Só apenas no rebate das férias é que levava sessenta por cento. Sim, senhor, é nesta cabeça que eu passei uma vida regalada. Chupava-lhe o sangue e ele nada sentia. Suponho que era por ser alheio. Não tinha tempo nem para se coçar. Mas que desgraça! Uma noite, pela volta das três horas, deu-lhe um estupor, não disse nem guarde Deus a vossa mercê. Eu apenas o senti frio, quis-me safar. Mas neste tempo chega um boticário vizinho que chamaram com muita pressa e pos-lhe o ouvido ao pé da boca para ver se o sentia respirar. Eu, sem perder tempo, me passei para a cabeça do dito, na qual ponho a minha Carapuça VI.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 4

 

A. A. de Assis (Por que “Vós”?)

“Por que vós, tão gravata-e-colarinho? O você comunica muito mais”
. Quem disse isso foi Carlos Drummond de Andrade, o megapoeta.

Os portugueses são muito bons em pronomes e lidam sem dificuldade com essa coisa de “tu” e “vós”, mas na maior parte do Brasil o tratamento habitual é “você”. Tanto que, nas regiões onde o “tu” é mais usado como indicativo de intimidade, é comum o falante escorregar em discordâncias como “tu gosta”, “tu viu”. Nesse caso, por que não eliminar de vez o “tu” e o “vós”? A gente ficaria com o “você”, que é menos complicado e “comunica muito mais”.

Veja como seria fácil conjugar verbos: Eu estou, você está, ele está, nós estamos, vocês estão, eles estão.... Se for preciso usar tratamento cerimonioso, bastará substituir “você” por “o senhor”, “a senhora”. E se, por exigência de algum ultrarrigoroso protocolo, não for possível simplificar as coisas, o “você” se transformará em “vossa senhoria”, “vossa excelência”, mas sempre com o verbo na terceira pessoa.

Os políticos, que por ofício precisam se aproximar do povo, poderiam ser os primeiros a arquivar o tal de “vós”, até pelo perigo de misturar “vós” com “vossa excelência” e formar aquela salada: “Saúdo vossa excelência e vossa luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazeis ao nosso próspero município...” Ora, “vossa excelência” concorda com “seu/sua” e pede o verbo na terceira pessoa do singular; “vós” concorda com “vosso/vossa” e pede o verbo na segunda do plural. “Vossa excelência” é apenas a roupa de gala do “você” (forma reduzida do antigo “vossa mercê”).

Dessa trapalhada no uso das expressões de tratamento não escapam nem mesmo pessoas mais cultas, igualmente sujeitas a ocasionais cochilos na concordância. 

“Tu” e “vós” são pronomes realmente complexos para uma população habituada a conversar usando o familiaríssimo “você”. Seria, portanto, sábio e prático aposentar logo os dois tropeços que só servem para aumentar os desarranjos gramaticais. Diríamos simplesmente assim: “Eu quero, você quer, ele quer, nós queremos, vocês querem, eles querem”. E nenhum estudante precisaria mais dizer o que de um deles certa vez ouvi: que “o verbo se fez problema e habitou entre nós”...

Ninguém, na fala real, diz “vós gostais”; dizemos “vocês gostam”. Até a Bíblia, para comunicar mais, tem aparecido hoje em versões populares, onde o “vós” cede lugar ao “você”: “Amem-se uns aos outros como eu amo vocês”.

Esquecer o “tu” e o “vós” seria um bom passo em benefício da descomplicação da língua. Acabaria a vexação de dizer “tu vai”, “vossa excelência quereis...” E o discurso ficaria mais leve: “Saúdo o senhor e sua luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazem ao nosso próspero município”. 

Penso até que a comitiva ficaria mais luzidia e bem mais próspero o município... 
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 02-11 -2022)

Fonte:
Texto obtido no facebook do autor.

Jaqueline Machado (Poemas Avulsos)


DIAS NUBLADOS 

Às vezes, o céu da nossa vida fica nublado. 
A névoa toma conta 
de todas as paisagens. 
Da paisagem 
das coisas de dentro 
e das coisas de fora. 
A beleza do mundo 
fica destorcida 
e a gente chora... 
E é preciso chorar 
para desabafar e limpar 
o que parece 
não ter cura. 
Precisamos 
nos permitir a isso, 
pois nem tudo 
é nossa culpa. 
Às vezes viver dói, 
arde, queima. 
Acontece... 
Em dias assim, 
é preciso ter paciência. 
Deixar os olhos chover... 
Mais cedo ou mais tarde 
o céu torna a ficar azul. 
O sol volta a brilhar! 
E a gente volta a sorrir. 
=====================================

TUAS CAMADAS 

Durante teu sono, 
sem aviso, 
visitei o teu coração. 
E nele, avistei temporais. 
Benzi teus ventos 
e a tua tempestade cessou. 

Depois, visitei tua mente, 
e enfrentei teus temores. 
Recitei palavras de amor. 
E na minha canção 
te fiz repousar. 

Mais tarde, passeei 
por tuas entranhas. 
Nelas, me deparei 
com os teus abismos, 
fontes e montanhas. 
E assim, 
desvendei teus véus. 
Me revesti de tuas luzes 
E nos teus breus 
me perdi. 

Busquei sair de volta 
pela porta de saída 
do teu coração. 
Repousei em tua superfície 
E as tuas cicatrizes, beijei 
com emoção. 

Depois 
de todos os beijos, 
acordaste de repente. 
Para mim 
sorriste lindamente. 
Banhou-me em teu amor 
de paraíso 
até me fazer adormecer em teus braços. 
Ao despertar, constatei: 
Amo-te de forma plena. 
E como adorei 
repousar em cada uma 
das camadas 
do teu ser…

Fonte:
Versos enviados pela autora.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça IV

Não foi das melhores cabeças em que caí. Tive meus incômodos. O tal barbeirinho já endireitava o olho à coifa e tinha o maior cuidado na cabeça, quando, na verdade, era um traste que lhe não devia dar nenhum. Ele, ora em pente de bichos, ora em azeite para sacar as lêndeas, ora em pós e banha de cheiro, gastava quantos vinténs tinha. Chamavam-lhe por alcunha o Amola do que ele se picava tanto que esteve cinco vezes preso por bulhas que teve por amor deste ditério (troça). Mas ultimamente, quando lhe chamavam o Amola, já amolava, fazia que não entendia. Era um falador eterno. Sabia quanto se passava duzentos passos em redor da loja, de forma que só pelas novidades tinha mais gente na loja que o resto dos barbeiros do bairro. Não posso deixar de contar um ópio que lhe sucedeu com um freguês dos avulsos e que achei lindo, principalmente por se julgar ele tão esperto.

Entra-lhe um dia um homem pela porta dentro, que teria os seus quarenta anos, com umas barbas de quarenta dias. Contou-lhe quarenta histórias. Disse-lhe que as suas barbas sempre as pagava a quarenta réis. Que a causa de as ter grandes era por ter prometido uma quarentena não as fazer mas que, quarenta dias a fio, as havia de barbear. Depois de o ter aquarentado por todas as formas, vira-se para ele e diz-lhe muito admirado: — Vossemecê bota as barbas que rapa no pano? — Pois onde as hei-de botar?, lhe respondeu o mestre. — Dessa me rio eu, ainda tinha mais esta para ver! Vossemecê certamente está doido? Esses cabelos têm uma grande serventia e se vossemecê quer guardar, eu lhes pago depois de enxutos, e bem secos, à moeda de ouro o celamim (1).

O barbeiro, que o único peso que tinha na cabeça era eu e o cabelo, ficou tão admirado como contente. Protestou pela conserva e o freguês pelo ajuste. Mas nestes dares e tomares acabou-se a barba e safou-se, com muitas cortesias, sem pagar nada, no que o mestre não reparou, na esperança do futuro ganho. Três meses levou o bom do homem a ajuntar cabelo e a pô-lo ao sol. E ainda que a barba fosse de graça, sempre a escanhoava duas vezes. Já tinha quase meio alqueire, apareceu o maroto do freguês. Muita festa para a festa. Então ajuntou? — Sim, senhor, não me ficou barba em claro, tenho bastante quantidade. E eu muita precisão. Vamos a isto. Logo. Primeiro vamos à barba.

Aparelha-se a cara, bota-se-lhe a barba abaixo e, depois de feita, vai o papalvo buscar meio alqueire de barbas muito limpas e enxutas. Ainda agora o tratante se entra a esconjurar: Está tudo perdido! — Pois que tem? replica o mestre, — eu fiz tudo o que vossemecê me disse. — Não senhor, faltou o principal. — Pois que é? — Era preciso que vossemecê tivesse todos estes cabelos apartados; os loiros a uma banda, os negros à outra, os ruivos, os brancos, etc. O mestre arde, vira a buscar o chuço [2] e o magarefe safa-se com duas barbas de graça e duas horas de mangação que encaixou ao barbeiro, o qual entrou num frenesi que o julguei doido. E ficou tão zangado com homem de barbas grandes, que barba que passasse de uma semana era como confissão de um ano: jamais a fazia ainda que lhe dessem um tostão. De forma que a alcunha que tinha do Amola mudaram-lha e lhe chamavam o Barba-curta. Mas sempre sou obrigado a dizer que era um dos homens mais regulares que tenho conhecido na minha vida.

Ele erguia-se pela manhã, bebia um copo de aguardente e comia o seu dente de alho. Assoava-se, lavava o rosto, tocava o seu bocado de viola. Se aparecia algum amigo, punha a viola aos outros. Era um bocadinho de língua que fazia molho de tudo. Depois afiava as suas navalhas e, se era dia de fregueses, dava-lhe uma volta, e sempre pedia a algum amigo que lhe ficasse na loja, para demorar alguém que entrasse, no caso de ele ir perto. O seu comer era sopa, vaca e arroz [3] e não se fartava de dizer aos amigos que era a sua diária. De tarde, quando não tinha que fazer, lia Carlos Magno* ou dizia mal da vizinhança. De forma que estava já tão senhor destes autores que citava as folhas e conhecia os vizinhos pelos seus nomes, ocupações e costumes. Umas inquiriçõezinhas tiradas por ele, não havia nada que lhe chegasse. Era um dos melhores genealogistas e tinha feito a árvore de geração de Judas. E dava razão por que se não comiam as maçãs de Arcipreste e não deixou de lucrar com isso.

Defronte dele moravam umas raparigas de quem ele compôs a vida. E, antes de a dar ao prelo, deram-lhe uma navalhada na cara que não deixava de lhe dar sua graça. Mas deixou de compor. Ultimamente descompunha qualquer pessoa por dá cá aquela palha. Numa dessas descomposturas que teve com um tendeiro, agarrou-se-lhe este aos cabelos com tanta ânsia que lhe trouxe uma mão-cheia deles, nos quais eu vim pegado por casualidade. E foi felicidade e esperteza minha passar-lhe para a mão antes que os botasse fora. A poucos passos estava na cabeça onde lhe encaixei a Carapuça V.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Notas
(1) O celamim ou selamim é uma antiga unidade de medida de capacidade para secos, usada em Portugal e no Brasil, correspondendo à décima sexta parte de um alqueire. Hoje em dia, o celamim é usado no Brasil para medidas agrárias. (wikipedia)
(2) Chuço: Zagaia, na língua piolha. [N. do A.]
(3) Almoçava a sopa, jantava a vaca e ceava o arroz. [N. do A.]

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.